sexta-feira, 20 de outubro de 2023

Sob o orvalho e o vento

"Censurava-se intimamente, mas acabou por pensar que, no fundo, não se saber o que se deve querer é normal..." (Milan Kundera)

Não é que eu acredite que você me veja como monstro. A realidade é que eu me vejo como um monstro, uma besta tão horripilante que por isso afasto todas as pessoas de mim. E até no momento em que penso que essa própria atitude pessimista seja algo de bestial e que afasta os outros pela negatividade, eu vejo que acabo perdido então nesse ciclo, como um ourobouros, de novo, que morde a si mesmo, que se alimenta da própria carne. Eu me alimento desse pessimismo e, por ser a única coisa que eu dou aos outros, as pessoas já se afastam por isso, o que me faz gerar mais e mais desse sentimento negativo. Eu sou então esse dragão voraz que, desejando devorar você, devoro apenas a minha própria cauda, devoro apenas meu coração e, alimentado do meu sangue repleto de veneno, exalo pelos poros esse mesmo veneno. 

X

Tenho me cansado e desistido de tudo que me dá trabalho, de tudo que me força a ir além. E isso porque estou no limite. Estou sempre no limite. 

Todos são assim? Todos estão tão cobertos de compromissos e prazos que se sentem o tempo inteiro soterrados de obrigações? E, além disso, ainda preciso me preocupar com todas aquelas demandas as quais já me referi há muito, de que preciso administrar não somente os meus mas também os sentimentos daqueles que me rodeiam, que se ofendem, que se desgastam, que jogam sobre mim a sua ansiedade. 

E então, eu que gosto da calmaria, que amo o longe e a miragem, me vejo no meio de tempestades, de oceanos revoltos e terremotos... Como folha fico sujeito as pequeninas gotas de orvalho como também dos ventos impetuosos. Não gosto de dizer que os outros têm inveja de mim, afinal basta ler algumas linhas para ver que em nada eu sou invejável, antes disso. Mas ainda encontro coisas assim quando olho ao meu redor. Essa constante guerra por nomes, cargos e autoridades, essa coisa que parece alimentar a alma dos outros ainda que os corroa.

Mas também seja essa a forma de conseguirem a validação externa de que necessitam suas alminhas medíocres, assim como eu também busco de todas as formas. Minha reclamação é apenas a de que, sendo uma forma diferente de chamar atenção, me incomoda por me fazer participante de uma disputa que, em nenhum momento, eu pedi para participar. 

De que vale tudo isso? Afinal de que vale ser reconhecido, amado, querido se, ao fim de tudo, continuamos tristes, feridos e sozinhos? De que adianta toda essa ansiedade, todo esse anseio em agradar o outro? 

Bom, de todo modo preciso encontrar uma forma de descansar em meio ao caos, de conseguir fechar os olhos enquanto todos se enlouquecem ao meu redor e nem mesmo percebem que já estou no meu limite, ou melhor, que estou prestes a colapsar a qualquer momento.

Mas então que objetivos eu tenho que me fariam competir com o mesmo sangue nos olhos? Que me fariam apunhalar o outro pelas costas, que me fariam realmente querer conquistar algo? Não sei, realmente não o sei. Gosto de ver as minhas séries quando chego em casa de noite, só gostaria de aproveitar um pouco mais, e gosto de conversar sobre elas, sobre as coisas bonitas, sobre as reflexões que me dão. E gostaria de ser um pouco mais bonito, de também ser admirado, de também ser desejado. 

Porque, ultimamente, só me procuram quando precisam de algo, o que me fez acostumar a ser útil e ser usado. Mas ninguém parece me enxergar de verdade... Mas não sei se lutaria por isso...

Tanto que agora, aproveitando uma breve e chuvosa folga, com metade do estado debaixo das cheias dos rios e o mundo em novo furor internacional, na quietude da minha cama penso em como gostaria de prolongar esse sono indefinidamente, longe das disputas, dos olhos revirados e palavras de desprezo, longe do que torna essa humanidade podre e que faz com que até essa cama esteja infectada com minha própria sujeira. 

"Ninguém tem vida própria, ninguém constrói um mínimo de solidão. O sujeito morre e mata por idéias, sentimentos, ódios que lhe foram injetados. Pensam por nós, sentem por nós, gesticulam por nós." (Nelson Rodrigues)

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