sábado, 12 de setembro de 2020

Um mundo distante

De repente, mas não por acaso, ele se tornou um homem diferente. Já não estava mais disponível para os outros como antes, já não respondia as perguntas senão com o mínimo de atenção, já não se importava muito com as opiniões toscas e com a flagrante ignorância dos pares. 

Não foi por acaso que ele parou de prestar atenção as pessoas, afinal ninguém vale a pena ser observado por muito tempo. São todos rasos, não razão para derramar sobre eles mares de sentimentos, de desejos, apenas transbordariam espalhando pelo chão aquilo que se dá. As mesmas palavras, os mesmos assuntos, algo que se esgota em poucos instantes. Talvez seja melhor guardar tudo isso de forma egoísta dentro de si. 

Ele se sente cansado, não no sentido de quem precisa descansar, mas como alguém que já tendo visto tudo o que havia para ver aqui já não se deixa impressionar com nada. É como se nada fosse mais capaz de lhe despertar o brilho no olhar. Com efeito ele se tornou apático. O sorriso é falso, não se observa nele a marca de Duchenne ao redor dos olhos. Prefere calar mesmo quando os outros lhe jogam absurdidades modernas de um progressismo burro e cego. 

Não sente coragem para sair, sequer vai até o portão. Recusa os convites para sair e inventa desculpas para que não venham visitá-lo. Se alguém bate na porta ele finge dormir, até que escute os passos se distanciarem. Cansa-lhe olhar, para onde quer que seja ao seu redor. Tudo lhe é feio, tão feio que lhe causa uma repulsa profunda, uma ojeriza apavorante, e não fosse a sua languidez e o torpor que o envolve, já teria fugido para longe, ao menos teria corrido até que seu coração não aguentasse mais e parasse de vez. De que vale continuar batendo, como se quisesse garantir que seu senhor viva ainda mais, se ele apenas sobrevive? 

Prefere ler, sobre terras distantes e vidas melhores que as suas, ou ouvir aqueles que conseguiram vencer essa realidade e que agora estão num plano superior. Seus professores, que já o inspiraram, agora não são mais do que ideais inalcançáveis, devas, superiores demais para que deseje ser algo mais do que uma sombra pálida ou uma poeira que insistentemente prende-se aos sulcos de suas sandálias.

O escuro torna-se o refúgio, talvez o único nesse exílio de privações. No escuro não precisa olhar, para as janelas de vidros remendados, que dão para um muro de alvenaria que sequer mereceu ser coberto com uma camada fina de cal. O piso vermelho, riscado e cheio de manchas, que não combina em nada com o ladrilho que foi colocado nos outros cômodos, cômodos estes que estão abarrotados com uma quantidade de móveis muito acima do que o necessário, ou do que seria visualmente aceitável. Reflexo de uma casa onde moram pessoas demais, que falam coisas demais, alto demais. Os poucos elementos que poderiam servir de consolo são engolidos por uma onda de breguice e falta de senso sem precedentes na história da humanidade. Será mesmo que podem dizer-se humanos? Até mesmo os animais possuem algum senso estético. Essas pessoas não. 

Até seus corpos refletem sua condição. A pele causticada pelo sol, dos muitos dias de labuta e das muitas andanças para economizar o dinheiro do carro. A barriga saliente, sem vergonha, que é um flagrante para a constante fuga por meio da cerveja barata do mercado. As tatuagens tostas, a pele macilenta, o cabelo disforme e sem vida, o suor que se mistura ao cheiro desagradável típico da classe inferior a que ele pertence.

As paredes estão cheias de furos, flores artificiais e fios que se cruzam em gambiarras que, embora busquem facilitar a vida ainda gritam com uma profunda acusação de que sua existência é apenas um atestado de mediocridade. Os muros altos numa selva de ferro e concreto, as construções sem sentido de unidade, as calçadas desiguais, não se vê uma árvore e o único verde são as plantas colocadas a esmo aqui a acolá, para suprir uma necessidade demente de um mundo que se perdeu há muito tempo. Tudo é muito caro, aliás isso é o que mais se diz. As roupas são caras, a comida menos insossa é cara, o perfume é caro, a dignidade é cara. Tudo é adiado para um futuro incerto, até mesmo as necessidades mais óbvias são postergadas para as calendas gregas, como se não fossem nada. É uma vida que sobrevive num mundo que jamais funcionou. 

Mesmo que o quarto também seja um amontoado de elementos desconexos, ao menos pode se tornar escuro, quando com a ajuda de benzodiazepínicos ele busca dormir sem precisar perceber com mais frieza e realismo brutal a verdade a que está submetido. A covardia lhe pede por esses arroubos de sono, pelos momentos doces de sonhos que, no entanto, sempre terminam com um gosto amargo na boca. Os remédios impedem, ou pelo menos adiam, o surto definitivo.

É como se alguém tivesse colocado uma lente em seus olhos. Tudo lhe parece sépia, sem vida, empoeirado, feio demais para ser visto. Pensa que tudo ao seu redor poderia ser lançado ao fogo, que todas as coisas de seu mundo poderiam virar cinzas, e ele próprio reduzido a pó. 

Agora ele também foge do mundo virtual, do mundo de mentira, que apenas aponta realidades que não existem senão em mundos distantes, do outro lado de um oceano violento e intransponível. Lá onde não há choro, onde não há coisas feias chafurdando a beleza na lama. Onde os olhos brilham, os sorrisos cativam e as peles brilhantes e claras são como seda, onde deslizam com delicadeza os dedos dos amantes a lhe explorarem cada linha fina do corpo. Onde as cores são vivas, as flores de verdade são presentes que mostram o carinho com delicadeza. Lá onde as histórias de amor são contadas não como lendas banais e repletas de uma frivolidade nojenta, mas com a clareza de que a próxima história acontece há poucos quarteirões dali, ou que pode estar acontecendo nesse exato momento entre as pessoas que caminham despreocupadamente pelas vitrines de um Siam Paragon. Lá onde a música não é um barulho, que se sobrepõe ao choro das crianças insuportáveis, onde as pessoas não apenas conhecem e reconhecem o belo, como também vivem em meio ao belo, elevando seus espíritos a um mundo de bondade, justiça e verdade. Um mundo distante, realmente muito distante.

"Da nossa geração não se pode dizer que viveu, mas que rastejou em silêncio: os jovens rumo à decrepitude, os velhos rumo a sepulturas sem honra."

 (Tácito)

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