terça-feira, 15 de setembro de 2020

Jornada

Rita nasceu num tempo diferente, 1961 para ser mais exato, signo de virgem, esforçada e perfeccionista. Naquela época, plenitude de uma explosão populacional, as famílias tinham muitos filhos, ainda que isso significasse uma vida de privações e dificuldade. No entanto isso não parece ter afetado muito a esses pobres mineiros que sempre muito esforçados chegaram a idade adulta com força e vigor que não observo em minha geração. 

Presidente Olegário, uma viela, um tipo de aldeia, não chega a ser exatamente uma cidade, de algum lugar quente e seco de Minas Gerais, ali ela nasceu ou foi registrada com alguns de seus irmãos. Os pais, Raimunda e José, tiveram muitos filhos, dezoito para ser mais exato, dos quais doze sobreviveram aos primeiros cinco anos de vida, numa época em que os moradores do interior não tinham acesso a acompanhamento da gestação e nem a partos saudáveis. A mortalidade infantil não é, no entanto, algo novo no mundo, antes que é um indicativo de uma medicina e de um desenvolvimento político ainda precário. 

Casaram-se cedo, os pais de Rita, mais ou menos aos quinze ou dezesseis anos. Ela não tinha muita paciência para as investidas do jovem e acabou aceitando o pedido inconveniente de casamento para se livrar das investidas. Viveram uma vida difícil, quase como retirantes que se mudavam com frequência em busca de terras mais férteis, condições mais favoráveis a manutenção da família. Não me recordo dos nomes dos lugares em que moraram, mesmo que os tenha ouvido inúmeras vezes nas rodas de conversa entre avós e netos ávidos pelas histórias e causos do interior. Amendoim, Pescoço Fino, brasileiro gosta de dar nomes estranhos aos lugares, falta ou excesso de criatividade, não sei precisar muito bem.

Criaram os muitos filhos com cerviz dura e disciplina de um colégio de freiras. As moças aprendiam logo cedo a cozinhar para muitas bocas e costurar para que as poucas roupas da família pudessem vestir várias gerações.  Além dos muitos filhos os mineiros são conhecidos por sua afabilidade em receber conhecidos e parentes. O número daqueles que comiam junto a família facilmente ultrapassava o número de dez ou vinte. Quando elas, raramente, podiam brincar o faziam com bonecas feitas de espigas de milho e pedaços de pano que sobrara das costuras. Os meninos logo cedo iam para a roça e aprendiam todos os segredos das plantações, de homens que, não tendo a educação formal que lhes permitisse ler e escrever, conheciam bem o que deveria ser feito para sobreviver. 

Dada ocasião em que recebiam uma conhecida em casa, esta se sentou próxima a uma grande peneira contendo uma boa quantidade de grãos de café que esperavam para serem torrados. Não se compravam certos gêneros que podiam muito bem ser cultivados no quintal ou na roça. Ela se empolgou em alguma conversa e esbarrou na peneira, derrubando tudo pelo chão. Duas das filhas, uma delas Rita, recebeu um castigo severo do pai que pensara serem elas as culpadas. Por dias não conseguiram direito e ficaram com grande marcas de cinto e cipó verde nas costas que custaram a sair. As marcas da surra na mente ainda estavam vivas na última vez que ouvi a história, pelo menos quarenta anos depois. Acho que isso ilustra por si só a sua infância. 

Os pais, analfabetos até o fim da vida, que somente nos últimos anos da quase nonagenária existência aprenderam a escrever em garranchos o próprio nome, esmeravam pela educação dos filhos Caminhavam por duas horas diariamente, levantando quando o dia sequer havia amanhecido ou sendo levados por um caminhão até a escola onde pouco a pouco foram dando rumos diferentes a família. Rita aprendeu a ler com facilidade e, depois de ajudar os irmãos mais novos, se dedicou a bons anos de ávida leitura, coisa que dela herdei com felicidade. 

Ter muitos filhos significa uma confusão em casa, pode-se imaginar as refeições e momentos comuns. Nem digo dos momentos de lazer que só são típicos dos jovens de minha geração, filhos únicos com pais em empregos estáveis com alguma sobra de capital, ainda que mínima. Atenção, afeto, coisas assim nunca foram comuns entre os pais e seus filhos, não tinham tempo o bastante, a fome precede os beijos e abraços, mas ainda assim o afeto dos irmãos é algo que admiro ainda hoje,. 

Depois de se mudaram para Brasília, e depois Goiás, em busca de novas oportunidades, seguindo o mesmo movimento de tantas outras famílias dos mais diversos estados que buscavam na nova capital oportunidades melhores de vida, as coisas foram pouco a pouco melhorando. Os homens descobriram-se capazes de se adaptar a vida na cidade, as mulheres também, ainda que de outra maneira. 

Rita passou a trabalhar em casa de família, que muitas vezes sequer pagava o ordenado merecido com a desculpa de que teto e alimentação era mais que suficiente para alguém que vivera na penúria e agora tinha a doce oportunidade de estar presa entre os muros da nova classe média. Muitas humilhações, noites sem sono, refeições frias e sem diversidade. Aprendera na as dificuldades e a sobreviver com o pouco. Cozinheira de mão cheia recebe elogios até hoje por todos aqueles que provam desde o simples pão de queijo até os pratos mais complexos, cheios de sabores e texturas de uma terra que, mesmo infértil, produz muito sob o esforço dos seus. Mas as coisas eram assim, e ainda o são. A vida não parece facilitar muito.

As suas irmãs e irmãos foram constituindo família, cada um a seu modo. Mães solteiras, número bem menor de filhos, ainda que os número de netos de Dona Raimunda e Seu José, ou Dona Preta e Seu Negrin, passe facilmente dos sessenta mancebos. 

Rita casou-se tarde para a época, já contava quase trinta anos, com um conhecido da família que já fora casado e que se divorciara depois de muitos acessos de loucura da primeira esposa, que chegou a ser internada em um hospital psiquiátrico por um tempo considerável. Casar-se com um homem separado não era algo muito bonito, ainda mais sob as suspeitas mais do que confirmadas de traição. Mas ainda assim se casaram, depois de ter sido expulsa de casa, sendo aceita somente anos depois quando o seu pai finalmente aceitou o marido. Ironicamente foi esse mesmo marido que, muitos anos mais tarde, segurava na mão do moribundo sogro, quase abandonado por filhos e netos e gemendo sob o peso das muitas surras, traições e brigas que dera a sua família. 

Planejavam melhorar a estrutura familiar antes de pensarem em filhos mas, como disse, já casara-se tarde e os anos já se avançavam com velocidade. Moravam num casebre quase sem a mínimas condições de sobrevivência, o que não os impedia de beber e reunirem-se com os amigos. A gravidez foi inesperada, um erro na tabelinha, e foi de alto risco por conta da idade e das poucas condições de fazer um acompanhamento adequado. Algumas coisas não mudaram. 

Nasci doente, porém grande, ainda que a situação financeira não tenha melhorado em nada. Precisavam agora aceitar, pra tudo dar-se um jeito, uma geração inteira de homens e mulheres extremamente fortes, sobreviventes numa terra que em tudo conspira contra sua subsistência. 

Anos mais tarde a situação melhorara consideravelmente. Ainda não tinham casa, o tiveram por pouco tempo depois de grande esforço empreendido na construção. Mas conseguiam morar de aluguel, ainda que tudo o mais fosse muito caro para seus padrões. Ainda usavam roupas aproveitadas, compravam os mantimentos mais baratos, economizavam onde podiam, e ainda hoje é assim. Sem ambições mas também sem aquela dificuldade de antes. O marido, Gabriel, como o mais tarde viria a ser o filho, conseguira estabilidade no funcionalismo público. Ela passou a se dedicar a casa, e já não lia mais, senão que desde o nascer do sol até o fim da tarde se ocupava de uma casa que nunca ficava arrumada. 

Adotou uma filha, antigo sonho de ter um casal de filhos correndo pela casa, abandonada pela mãe relapsa e o pai presidiário na época ainda com apenas dois dias de nascida. Essa fora, anos mais tarde (hoje) razão para intensas crises na família, tendo então herdado a rebeldia e descontentamento que as gerações passadas não ousaram demonstrar. 

Rita sempre suportou o peso da família, o marido apenas o peso do sustento financeiro. Preocupada ao extremo, em parte responsável pela indolência e insegurança dos filhos, viu-se muitos anos mais tarde depressiva e ansiosa, sem controlar as lágrimas que rolam pelo rosto com facilidade. Ainda é forte como sempre, mesmo com os braços flácidos e a pele do rosto já cansada, refletindo as dificuldades de antes. O pescoço vermelho e mais escuro do que o resto do corpo, muito branco, é resultado das muitas caminhadas para economizar o dinheiro do carro. As manchas nos braços denunciam muitos dias sob o sol quente sem nem sequer saber da existência de protetor solar, verdadeiramente artigo de luxo impensável a qualquer pobre.

Ainda não mora em sua própria casa, embora seja de um desprendimento material ímpar que a impele a sempre ajudar o próximo, mesmo na dificuldade. Suporta as traições e grosserias do marido, as crises depressivas do filho excêntrico e as rebeldias da filha. Uma vida inteira de lutas infindáveis, uma situação que há mais de meio século persiste em crise atrás de crise. Nunca podendo descansar, sem precisar fazer a janta, sem precisar lavar a louça porque ninguém mais o faz, sem comprar roupas para que os filhos comprem as suas frivolidades, sem nunca exigir e ambicionar, algo de uma conformação com a dificuldade. As coisas são assim, não adianta discutir, a paciência atravessa as décadas como uma chama fraca. Ainda assim, o não desistir da vida, a força para continuar levantando cedo diariamente, para não desistir dos filhos problemáticos, não abandonar o marido, enfim, continuar insistindo e persistindo, tudo isso é algo do povo que não desiste nunca. 

Não procuro uma lição aqui, tampouco acho que uma atitude conformista seja a melhor, mas ainda assim algo dessa história ainda me emociona. Talvez seja por ver todos os dias aqueles olhos claros, que sofrem silenciosamente uma dor que sequer posso imaginar, tentando sorrir e fazer do meu dia e de todos nessa casa o melhor dia possível. 

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