segunda-feira, 21 de setembro de 2020

A Rainha

Depois de dias de um intenso calor, sufocante, daqueles que nos faz perder as forças, que nos prende num vórtice impaciente incapaz de pensar com clareza, apenas fugindo para o girar rápido das hélices que pouco aliviam nosso incômodo. Depois de uma quase interminável semana agravada pelas labaredas que consomem a vida selvagem, que estragam o ar que respiramos 

O cheiro veio de muito longe, abafando as vozes cansadas, aliviando a sensação ruim. Todo o ar ficou tomado pela doce terra molhada, um perfume agradável e delicado que prenuncia boas novas. As primeiras visitantes chegaram tímidas, há muito reunidas na antessala do céu, esperando a hora de entrarem no seu próprio espetáculo. Tão logo deram inícios aos primeiros compassos de sua música o cortejo já estava formado: dançavam em profusão, rodopiando e lançando-se com violência graciosa rumo ao chão. Onde quer que tocavam pintavam a superfície com uma cor mais escura, úmida, e a secura que antes tanto nos maltratava se amenizou, nos deixando mais conscientes do quanto estávamos feridos. 

Elas se atiram contras as janelas, paredes e tetos. Os sons de cada uma se unem numa sinfonia, algo ainda maior do que qualquer compositor jamais se atreveu a tentar copiar. Não só fizeram de todos os sons uma lembrança distante como preencheram o mundo com suas vozes frias, anunciando uma breve pausa no calor do cerrado. O sol saiu para descansar de seus árduos dias de plantão em que mesmo à noite podíamos sentir o seu reinado todo-poderoso.

O sono, antes algo forçado que mesmo prolongado não era capaz de nos devolver o vigor agora é uma realidade que nos traz de volta a antiga disposição para ficar um pouco mais na cama, para deixar-se levar por sonhos tranquilos, em uma pequena cabana de madeira no alto de um amontanha, rodeada por um bosque de arvores altas e pedras cobertas por um musgo verde escuro, onde o único som é o dos pássaros que passam no alto alegres e o farfalhar dos pequenos bichinhos nas folhas secas que logo se decomporão no solo úmido quando a nova estação chegar. Ali, acompanhado de uma caneca fumegante de chocolate quente, os pés enrolados em meias em cima de uma mesinha, com um livro no colo e o ressonar de um amor dormindo ao lado, ali a vida encontra um significado feliz e singelo. O que mais poderia querer? 

Como um novo sentimento que vem para trazer alegria ao coração árido e traumatizado também ela, a rainha da misericórdia desce do alto de seu trono onde reina acima dos céus congelados para nos presentear com as finas flores de gelo que caem no chão espalhando suas pétalas em pequenas gotas que logo somem espalhando uma nova cor ao chão empoeirado, como a tinta traz nova vida ao espalhar belas palavras de um poema dedicado a pessoa amada nas páginas amarelas de um livro em branco.

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