terça-feira, 18 de novembro de 2025

Uma vigília com Rachmaninoff


Interpretação de referência:
Yunchan Lim e Fort Worth Symphony Orcherstra
Regência: Marin Alsop
Concurso Internacional de Piano Van Cliburn, 2022

Concerto para Piano N° 3, Op. 30 em Dm de Rachmaninoff

“A música nasce onde termina a palavra.” 
(Rachmaninoff)

 I. Allegro ma non troppo

A chuva cai fininha lá fora, e eu gosto de ver o reflexo dela na luz amarela dos postes. É como se ela caísse devagar, mas eu sei que isso é só uma impressão. Parece que o céu chora em silêncio. E eu, observando pela janela e sentindo o aroma doce e envolvente de uma caneca fumegante de chá, pareço competir, ou me unir, com o céu em melancolia. 

Assim como a chuva só parece cair lentamente, minha melancolia é apenas aparente: dentro de mim esconde uma verdadeira tempestade que, de tão barulhenta, se torna ensurdecedora, e então todo o som bravo e poderosos, desaparece, e tudo que ouço é isso, a chuva leve, triste e amarela lá fora. 

Já fazia algum tempo que não observava a chuva cair. Não digo a lá de fora, mas essa aqui dentro. Queria ter ficado um pouco mais sem escrever sobre mim, mas acabei interrompendo meus planos de regular o sono e recorrendo aos remédios de novo, de novo, e de novo... E eu não sei o que será daqui para frente. Essa é a tempestade que agora me aflige. 

Sinto como se caminhasse descalço na lama fria, e sentisse meus músculos e ossos congelarem, as minhas lágrimas caírem frias como aquelas gotas. Respiro profundamente o chá mais uma vez. Aroma doce de baunilha, o sabor suave me trazendo de volta à realidade enquanto o seu calor se espalha por meu corpo.

A melancolia vem e vai, assim como a cor de tudo ao meu redor parece perder o brilho e depois quase me cegar, apenas para sumir novamente. Yunchan Lim não se parece com um homem ao piano, mas se uniu a ele de tal modo que parece ser sua presença que eu sinto ao olhar pela janela, entre o barulho ininterrupto da água descendo pelas correntes das calhas até o chão. 

II. Intermezzo: Adagio

Ao lado da orquestra é também como essa paisagem ao meu redor: o chão já molhado, cada passo criando pequenas ondas que mudam a forma do reflexo da água que caiu do céu em gotículas preciosas de ouro e ainda não foi absorvida pelo solo, os animais que não vejo, mas sei que estão escondidos em suas tocas e debaixo de arbustos no mangue que cerca a ilha em que vivo.

Essa peça é um mergulho na depressão, talvez esse garoto tenha um coração tão inquieto que conseguiu incorporar o do próprio Rachmaninoff de tal modo que essa tem sido a minha interpretação definitiva desse concerto. É o movimento de quem vive com dor constante, mas suave. O contraste entre as pulsações das cordas e o desenho melismático do piano cria um diálogo de desamparo: um coração que fala e outro que apenas responde com silêncio.

O brilho do piano, e também da orquestra na segunda metade do movimento, não é algo caloroso como o sol, como o momento em que a chuva perde sua força: é um silêncio úmido e um homem que se recosta para chorar mais baixo. As harmonias do movimento oscilam entre esperança e desistência, como se a tonalidade tentasse erguer-se, mas fosse puxada de volta para o peso do grave.

Ele soa como a respiração irregular de alguém que tenta dormir após horas de tormento, mas continua acordando num sobressalto que não se explica. A progressão final do Adagio, quando a orquestra cresce em volume e densidade, soa quase como um soluço contido, um clímax que não explode, mas colapsa para dentro. Os arpejos de Yunchan Lim parecem carregar a mesma tensão das mãos de alguém que tenta estabilizar o próprio tremor. Essa inquietação profunda que culmina num corpo que já não consegue respirar em meio a um pesadelo e, debatendo-se, ergue-se num rompante.

III. Finale: Alla breve

A entrada do último movimento é quase triunfal, não fosse uma peça em que se imprimiu a dor de um coração e mente colapsados e que agora flutua nos dedos ágeis de outro coração perturbado. As notas fluem como se cada uma delas fosse uma gota de sangue a cair, ou uma lágrima pesada a rolar por um rosto frio. É o momento em que a alma, exausta, corre não para fugir, mas para não parar, porque parar é ser engolido. A tensão harmônica cresce em ciclos, como alguém que tenta controlar a respiração, mas sempre volta ao ponto em que o coração dispara.

Ao acordar do sonho horrível, ele reconhece o quarto em que está. O ar úmido impregnado de suor, uma camisa jogada numa cadeira, uma caneca com um café que esfriou. Olhando pela janela, ele vê a chuva cair e brilhar. Coloca a mão sobre o peito e percebe que seu coração ainda bate rápido, mas sem saber se isso é algo bom. A respiração cresce, parece que o pulmão vai explodir, mas é só outra noite difícil. Essas visões também vêm e vão, às vezes como se fossem minhas e ora como se fossem do Lim ou do próprio Rachmaninoff, ou talvez já nem consiga mais distinguir dentre os três. 

Numa agilidade sobrenatural, a melancolia retorna mesclada em loucura, na madrugada solitária e assustadora de um homem atormentado. A técnica de Yunchan Lim faz com que os saltos e escalas vertiginosas pareçam pensamentos acelerados, não exercício mecânico. A escrita rítmica do Finale cria a sensação de hiperventilação: motivos curtos, repetitivos, comprimidos, como impulsos nervosos em surto. É o rasgo final da noite: antes da aurora, o momento em que o desespero brilha mais do que a esperança.

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