Recentemente o Dicastério para Doutrina da Fé, atualmente chefiado pelo Cardeal Victor Manuel Fernandez, publicou a "Mater Populis fidelis - Nota doutrinal sobre alguns títulos marianos referidos à cooperação de Maria" na obra da Salvação, com a aprovação do Santo Padre, o Papa Leão XVI.
Bastaram alguns instantes após a publicação da mesma e a internet começou a pulular de opinadores, em sua maioria, bradando com veemência contra o referido dicastério e também contra o Papa, citando ferozmente alguns daqueles já conhecidos jargões do tipo "o Papa só é infalível numa declaração solene (ex cathedra) e uma nota do dicastério não se enquadra como tal."
Muito embora seja verdade, o documento ainda é um ato válido, autêntico, do Magistério e, ao contrário do que muitos parecem pensar, não é a opinião aleatoriamente escrita de um teólogo formado em meia dúzia de vídeos no YouTube que o ensinaram não as bases da teologia, mas, como dito, apenas alguns jargões. O Magistério autêntico da Igreja não é, pasmem, um grupo do WhatsApp.
O próprio, em sua introdução, já explica seu principal objetivo: "Não se trata de corrigir a piedade do Povo fiel de Deus que encontra em Maria refúgio, fortaleza, ternura e esperança, mas, sobretudo, de a valorizar, admirar e encorajar;"
Algo que percebi foi que o documento revelou uma porção de "católicos protestantes" que tem o seu magistério paralelo e acham — do alto da autoridade conferida por ninguém — que podem julgar e declarar como errado um texto do Dicastério para Doutrina da Fé com aval do Papa. Aí citam algumas coisas e pronto, acham que refutaram o Papa e alguns dos bispos mais inteligentes do mundo em matéria de Cristianismo que, nos últimos trinta anos, analisaram a questão.
Com zero rigor teológico, as pessoas se acham especialistas em coisas que não são. O fato de eu gostar de futebol, não me faz um especialista. O fato de eu ler o catecismo, não me faz um teólogo. As pessoas hoje não têm rigor para ler um texto (o que me preocupa). Os comentários vêm normalmente acompanhados de: uma citação de um santo do século XVII, que a gigantesca maioria das pessoas não possuem lastro filosófico e muito menos teológico para entender. Enquanto a nota vem recheada de citações e apoiada na Tradição e no Magistério.
De repente então uma série de pessoas ladra, com espuma nos lábios: "Nossa Senhora, corredentora nossa e Medianeira de Todas as Graças, rogai por nós!"
A primeira vez que ouvi esse termo fora uns dez ou doze anos atrás, ainda iniciante nos estudos teológicos, e desde então só ouvia isso quando conversava com pessoas profundamente envolvidas nesses estudos. E então surpreendentemente, surgiram especialistas de todo lado, e eu sinceramente duvido que todos tenham lido mais do que uma manchete tendenciosa escrita, como sempre, em forma de denúncia contra um modernismo tenebroso.
Não nego que a fumaça do modernismo já há muito esteja na Igreja. Nos últimos anos, no entanto, os documentos raras vezes vinham com tal clareza, senão quando eram para tratar algum assunto tradicional, como a supressão da Missa Tridentina que, em sua maioria, é quem recebe a maior parte do ódio destilado pelos progressistas. Talvez por isso, pela constante presença de uma linguagem bifurcada, que sempre permitia a leitura de cada afirmação de uma forma conservadora ou progressista, o contato com um ensinamento real, resultou num estranhamento por parte do povo de Deus mais desinformado, leia-se aqui o Brasil.
Trata-se aqui de uma questão onde vigora os diversos níveis de predicação. Funciona mais ou menos assim:
Tenho um afilhado que estuda Química e trabalha num laboratório envolvido em algumas pesquisas iniciadas por doutores nessa mesma disciplina. De vez em quanto ele fala comigo sobre suas pesquisas, e há alguns dias ele participou de um congresso onde apresentou os primeiros resultados da mesma.
Quando ele me explica sua pesquisa, não usa de termos técnicos, complexos para o meu entendimento, já que sou de fora da área em questão. Eis o primeiro nível, aquele que se usa de figuras de linguagem, isto é, no âmbito do discurso poético, embora possa parecer estranho falar disso sobre uma pesquisa laboratorial. No entanto, é ainda um discurso poético por se valer de todas as formas de analogias e metáforas para que eu entenda.
Num segundo nível, essas analogias não são necessárias. Quando ele apresenta os dados das experiências aos seus colegas, estes possuem o entendimento necessário para compreender do que se trata, com os termos técnicos mais apropriados perfeitamente compreendidos pelo falante e pelo ouvinte.
Quando apresentado o trabalho num congresso, o expectador pode não ter familiaridade exata com aquela pesquisa em particular, mas o conhecimento geral daquela área lhe é tão suficiente que, basta uma breve introdução, para que ele possa integrar aquela pesquisa no todo da disciplina, compreendendo não apenas as consequências imediatas da mesma mas também algumas possibilidades que vão adiante e que o próprio estudante não havia considerado.
Por fim, quando meu afilhado fala aos seus orientadores, doutores em Química com anos de experiência na área e diversos projetos bem sucedidos, inclusive financeiramente, ele é que se torna aquele que não compreende completamente o que lhe é dito, pois, embora domine as suas atribuições aqui, ainda não tem aquela visão ampla e profunda do assunto, que vai desde a captação dos dados básicos até a compreensão de onde aquela pesquisa se enquadra no todo da disciplina e das diversas variações de mercado que ela envolve.
Da mesma forma, ler um documento desse, de fato tendo por destinatário o povo de Deus, há diversos níveis de compreensão do mesmo. O leitor sem a devida formação pode, sim, compreender e aceitar em seu coração, como nos ensina Santa Catarina de Sena ao tratar da obediência devida ao Magistério. O mesmo não possui linguagem profundamente técnica, embora trate de assunto teológico profundo e complexo, dado que o próprio dicastério estudou o tema por trinta anos. Teólogos mais versados, e isso exclui completamente os teólogos das seitas protestantes, compreenderão um pouco mais no âmbito das discussões mesmas da Teologia. É aos bispos e presbíteros que cabe uma compreensão maior, no todo que forma o povo cristão, explicar de modo que todos possam, com mais dignidade, como diz a nota introdutória: "valorizar, admirar e encorajar" a devoção a Nossa Senhora.
Por fim, além da já dita enorme precaução do mesmo dicastério, que analisou a obra por décadas, penso que a mesma não tenha sido publicada anteriormente, pois o papado de Francisco não era exatamente polemista, e creio que ele anteviu as eufóricas manifestações. Por outro lado, Leão prezou pela clareza sem, de modo algum, diminuir a ação da Virgem Maria, aliás pelo contrário, a exaltação da mesma é presente e contém ainda, mesmo sendo uma nota mais teologal, do carinho que a devoção desperta em nós.
Reiterando, não se trata de impor limites ao culto a Nossa Senhora, apenas de apontar certa imprecisão terminológica que justamente obscureciam esse mesmo culto. Não se trata ainda de um esforço para que os protestantes aceitem essa parte da Igreja, pelo contrário, todas as manifestações protestantes, a despeito de qualquer aprofundamento no documento para além dos três primeiros parágrafos, mostram a completa incompatibilidade da mesma devoção com as teologias difusas do protestantismo. Qualquer coisa além disso é analfabetismo funcional, isto é, incapacidade de compreender o texto em sua totalidade, incluindo as quase duzentas citações referenciadas, ou, desonestidade intelectual.
Que nenhuma injustiça tenha sido cometida nestas palavras. Maria, Mãe do Povo Fiel, rogai por nós.

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