domingo, 12 de julho de 2015

Sinfonia N° 4 em F maior, Op. 36 - P. Tchaikovsky

Carta de Piotr Ilitch Tchaikovsky a Nadezhda von Meck, sobre a Sinfonia nº 4 em Fá menor Op. 36. Traduzido por Galina von Meck para o inglês – e por Amancio Cueto Jr., do finado Blog Euterpe, do inglês para o português.


A Sinfonia Nº 4 em Fá menor, op. 36, foi escrita pelo compositor Piotr I. Tchaikovsky entre março e dezembro de 1877. Teve sua estréia em Moscou, Rússia, dia 22 de fevereiro de 1878, regida por Nikolai Rubinstein. A quarta sinfonia foi dedicada à mecenas de Tchaikovsky, Nadezhda von Meck, a quem ele se referiu como "minha melhor amiga" na dedicatória. Esta sinfonia é conhecida por seu curioso terceiro movimento, no qual as cordas tocam apenas em pizzicato.

Florença, 17 de fevereiro / 1º de Março de 1878

Quanta alegria você me proporcionou com sua carta hoje, minha incomparável Nadezhda Filaretovna! Quão imensamente afortunado eu me sinto sabendo que você gostou da sinfonia; que, ouvindo-a, você experimentou as mesmas sensações das quais eu estava cheio quando estava escrevendo-a, e que minha música produziu uma profunda impressão em seu coração.

Você me pergunta se existe um programa definido nesta sinfonia. Geralmente, quando este tipo de questão me é colocado sobre uma de minhas obras sinfônicas, eu respondo: “não, absolutamente nenhum”. E realmente é muito difícil responder a uma questão como essa. Como alguém pode exprimir as sensações indefinidas que experimenta enquanto escreve uma composição instrumental sem um assunto definido? É um processo puramente lírico. É a confissão musical de uma alma em que muitas coisas vêm à tona e que, por sua própria natureza, transborda em forma de sons, da mesma maneira que um poeta lírico diz o que ele tem a dizer em poesia. A diferença é que a música tem recursos incomparavelmente mais poderosos e uma linguagem mais sutil à sua disposição para expressar mil diferentes nuances do sentimento interior.

Em geral a “semente” de uma futura composição aparece de repente e de maneira inesperada. Se o solo é fértil, isto é, se há disposição para o trabalho, essa semente germina com força e rapidez inacreditáveis, brota pelo chão, cria um tronco, depois folhas e galhos e, finalmente, flores. Não há outra maneira que eu possa explicar o processo criador a não ser por esta analogia. A parte mais difícil consiste em certificar-se de que a semente apareça e encontre condições favoráveis; todo o resto acontece por si próprio. Não haveria jeito de eu expressar a você em palavras toda a imensa euforia que me invade quando a ideia principal se manifesta e começa a desabrochar em formas definidas. Tudo é esquecido, você se torna quase louco, tudo dentro de você estremece e pulsa, você mal consegue criar um esboço e já vem uma ideia depois de outra. Algumas vezes durante este processo mágico um choque exterior te despertará deste transe. Alguém toca a campainha, ou algum empregado entra, ou mesmo um relógio bate as horas e te faz lembrar de algum compromisso… Interrupções como esta são difíceis, muito difíceis de suportar. Algumas vezes a inspiração voa para longe por um tempo; você tem de ir e procurar por ela, muitas vezes em vão.

Com muita frequência os processos técnicos, racionais e completamente frios têm de ser invocados para prestar sua ajuda. Talvez isto explique por que até nos maiores mestres você encontra momentos onde há uma falta de coesão orgânica, onde uma costura mostra que partes do todo estão coladas artificialmente. Se o estado da alma do artista que é chamado de “inspiração”, o qual eu estou tentando te descrever, continuasse de maneira ininterrupta, seria impossível sobreviver um único dia.

As cordas arrebentariam e o instrumento seria quebrado em pedacinhos! Só uma coisa é indispensável: que a ideia principal e o contorno geral de todas as partes separadas venham não por meio de uma “busca” mas por vontade própria, como resultado daquela força sobrenatural, inescrutável e inexplicável que é chamada “inspiração”.

Em “nossa” sinfonia “há” um programa, isto é, é possível explicar em palavras o que ela tenta expressar, e a você, somente a você, eu posso e irei indicar o significado de ambos, a obra inteira e os movimentos em separado. Desnecessário dizer, eu só posso fazer isso em termos gerais.


1° Movimento -  Andante sostenuto – Moderato con anima

A introdução é a “semente” de toda a sinfonia, sem dúvida a ideia principal.

Este é o “Destino”, esta é a força fatal que impede o impulso para a felicidade de alcançar seu objetivo, que vigia com zêlo para que o bem estar e a paz nunca sejam completas e sem nuvens, que pende sobre a cabeça como a espada de Dâmocles e de maneira inflexível e constante envenena a alma. Esta força é invencível, e você nunca irá dominá-la. Tudo o que resta é ceder a ela e definhar inutilmente...

O sentimento de solidão e desespero se torna mais forte e mais corrosivo. Não seria melhor se afastar da realidade e se refugiar em devaneios.

Oh alegria! Pelo menos um devaneio doce e meigo apareceu. Uma forma humana, graciosa e brilhante, passa esvoaçando e está acenando para algum lugar.

Que coisa boa! Como já soa distante o obsessivo primeiro tema do allegro! Pouco a pouco os devaneios envolveram a alma por completo. Tudo o que era sombrio e sem alegria está esquecido. Aqui está ela, aqui está a felicidade! …

Não! Eram apenas devaneios, e no meio deles o “Destino” te acorda!

Assim a vida toda consiste de um ininterrupto revezamento da dura realidade com sonhos fugazes e visões de felicidade… Não há refúgio… Você tem de flutuar neste mar até ele te engolfar e te lançar em suas profundezas. A grosso modo, é esse o programa do primeiro movimento.


2° Movimento -  Andantino in modo di canzona

O segundo movimento da sinfonia expressa outra fase da depressão. É o sentimento de melancolia que você tem ao final da tarde quando, cansada do trabalho, sentada sozinha, você pegou um livro mas ele escorregou de suas mãos.

As memórias surgem abundantes. É triste saber que tantas coisas vieram e se foram, ainda que seja agradável lembrar-se da juventude. Há saudades do passado, mas não há desejo de começar a vida de novo. A vida te cansou. É agradável poder descansar e fazer um balanço. Memórias transbordam. Houve momentos de alegria quando o sangue jovem borbulhava e a vida era cheia de prazeres. Houve momentos difíceis também, de perdas irreparáveis.

Agora tudo isto está em algum lugar, distante. É ao mesmo tempo triste ainda que um tanto doce mergulhar-se no passado.


3° Movimento - Scherzo — Pizzicato ostinato
  
O terceiro movimento não expressa sensações definidas. Ele é feito de arabescos caprichosos, de imagens evanescentes que passam pela sua imaginação quando você acabou de tomar um gole de vinho e está experimentando a primeira fase da embriaguez.

Seu estado de espírito não está nem animado nem triste. Você não está pensando em nada; você liberta sua imaginação, e por alguma razão ela começou a pintar estranhas imagens… Entre elas veio à mente um pequeno quadro de camponeses numa farra e uma cantiga de rua… Então, em algum lugar à distância, uma parada militar vai passando.
São estas as imagens completamente inconsequentes que correm pela sua cabeça quando você está adormecendo. Elas não têm nada em comum com a realidade: elas são estranhas, selvagens e incoerentes.

4° Movimento - Allegro con fuoco

O quarto movimento. Se você não pode encontrar razões para alegrar-se consigo mesma, olhe para os outros. Saia com as pessoas comuns. Veja que bons momentos elas têm abandonando-se inteiramente aos sentimentos de alegria. Uma imagem do povo comemorando num festival.

Mal você tratou de esquecer a si mesma e ser arrebatada pelo espetáculo da alegria das outras pessoas quando o implacável “Destino” aparece novamente e te faz lembrar de sua existência.

Mas os outros não reparam em você. Eles nem se viraram ou te olharam de relance, e eles nem repararam que você está só e triste. Oh, que momento amável eles estão tendo! Que sorte eles têm de todas as suas emoções serem diretas e descomplicadas. Censure-se a si mesma e não diga que tudo no mundo é triste. Há prazeres simples mas poderosos. Alegre-se na alegria dos outros. Sim, “é” possível viver.

Está tarde agora. Não gostaria de dizer nada sobre Florença nesta carta, exceto que eu sempre terei memórias muito, muito agradáveis dela. No final da próxima semana, aí pelo dia 24 (no nosso calendário), eu planejo partir para a Suíça, onde eu gostaria de passar todo o mês de março escrevendo pequenas peças em várias formas.Isto, então, minha querida amiga, é tudo o que eu posso te contar sobre o sentido da sinfonia. É claro, tudo isto é obscuro e incompleto. Mas é típico da música instrumental desafiar análises detalhadas. “Onde as palavras terminam, a música começa”, como disse Heine.

E assim, quando você receber esta carta, meu endereço será novamente: Clarens, Canton de Vaud, Villa Richelieu.

Muito obrigado, minha querida, pela carta de hoje. Ainda não recebi nenhuma palavra dos meus amigos de Moscou. Eu escreverei para você em detalhes sobre a reação deles.

Seu, P. Tchaikovsky.

PS: Antes de colocar esta carta no envelope, eu a li novamente, e estou horrorizado com a confusão e insuficiência do programa que eu estou te enviando. Pela primeira vez em minha vida eu tentei colocar em palavras e frases meus pensamentos e imagens musicais. Não consegui dizê-los apropriadamente. Eu estava para baixo, abatido no último inverno quando escrevi a sinfonia, e ela é um eco fiel do que eu estava passando naquela época. Mas ela é apenas isto, um “eco”. Como é que isto pode ser traduzido em sequências de palavras definidas e claras? — Não posso, eu não sei como. Há também muitas coisas que eu já esqueci. O que fica são recordações gerais de sentimentos de natureza  apaixonada e horripilante que eu experimentei. Eu estou muito, muito ansioso de saber o que meus amigos de Moscou terão a dizer.

Au revoir,
 Seu, P. Tchaikovsky


E aqui termina sua carta sobre essa poderosíssima composição. Sem igual. Resolvi postar pois muito me identifico com as confusões da cabeça de Tchaikovsky e por estar passando por um momento de delírio agora achei que seria bom fazer de novo essa experiência, de ouvir uma sinfonia com programa. Talves poste ainda hoje sobre as Sinfonias N° 6  e 'Manfred' também, já que estas são as obras mais perturbadoras do mestre e ainda estou no clima...

Fontes: Wikipédia (informações iniciais) e Blog Euterpe (carta).

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