Caminhei por algumas ruas que ainda não conhecia ou, pelo menos, não me recordava. Consegui diminuir um pouco da fúria que sentia e que me fazia tremer. Usei muitos dos recursos que aprendi nos últimos meses: respiração, prestar atenção plena no presente, isto é, no som da água negra se movendo lentamente, as gaivotas já preguiçosas e uma ou outra criança feliz por estar ali com os avós, enquanto eu estava sentado no concreto espinhoso do trapiche, braços apoiados no metal frio. Não havia brisa, mas, mesmo assim, meus pensamentos foram aos poucos levados.
Também tentei, de algum modo, analisar a situação sabiamente. Não se trata de algo que eu possa resolver. Aqueles que podem não querem. A minha parte eu fiz e continuo fazendo. Então essa é a realidade. O concreto embaixo de mim é real, o metal frio é real. Ainda que a situação também o seja, eu não posso mudá-la.
Num pequeno parque, já bem próximo da minha casa, eu caminhei sentindo a grama molhada pelo orvalho. Não choveu hoje, mas a umidade próxima do mar sempre deixa as folhas das plantas assim. Também fiquei ali, sem me concentrar em nada, além de duas pessoas brincando com um pequeno cachorro perto dali. Francamente, queria poder caminhar assim a noite toda. Não estava particularmente agradável, mas ainda era melhor do que voltar para casa.
Aqui eu tento não ser dominado pelos pensamentos que me fazer querer jogar aquele monstro pela escada. Essa criatura tão espúria que eu me recuso a sequer chamá-la de gente. Quem dirá irmã. Gostaria de poder sair e não tornar a ver seu rosto senão tomado pela palidez da morte num caixão.
Tinha um compromisso, mas minha cabeça não me permitia ficar lá, daí decidir andar um pouco. Me enfureci comigo mesmo ao saber que, naquele momento, não tinha sequer uma pessoa para quem pudesse ligar.
Ninguém.
Nem mesmo uma sequer.
Todos distantes, ocupados, incapazes de compreender.
Aquela que diz me amar passou os últimos dias inteiros se preocupando com aquele demônio. Amigos? Namorado? Um luxo distante para um homem como eu. Talvez devesse ter me sentado em algum ponto do caminho e contado o que sentia para as árvores do mangue.
Também tentei me isolar um pouco, infelizmente o hábito de sempre tornar a abrir as notificações precisa ser controlado. Me irritei ao ler algumas palavras. O que é isso? Um casal, em demonstração de felicidade por terem um ao outro. Um casal gay. Aberrações, foi o que devem ter pensado ao vê-los. Deveriam preferir morrer a se amarem assim, não é mesmo? Deveriam preferir morrer a amar como eu amo.
Como uma aberração.
A fúria me enfraqueceu, meu sangue mais uma vez se transformou em veneno, pesado. Em algum lugar li que Viktor Frankl disse que "o homem se realiza a medida que se afasta de si mesmo." Não sei se era esse o sentido que ele quis dar, mas, admito, hoje me sentiria realizado se pudesse ser outro, ou nada. Mas o que posso fazer é apenas arrastar os pés sangrentos, e desejar que aquele anjo de pureza não sofra tanto naquelas mãos que sequer deveriam entre homens. E as quais me recuso chamar de irmã.
Começou a chover fraquinho lá fora, gosto desse som, talvez ele me faça companhia nesta que eu queria que fosse a derradeira noite.
~
Ao Acaso
(Carla Pais)
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