terça-feira, 30 de setembro de 2025

Um Coração Sem Testemunhas

"Pense não nas almas mortas. Mas em sua alma viva." (Nikolai Gógol)

Eu nem sequer tenho palavras pra descrever essa sensação. É mais vazia do que qualquer vazio que já senti antes. É a dor daquela traição de novo, o ser abandonado na lama, moribundo, ferido, com vermes nos meus machucados, e ainda assim ouvindo os gritos e os sorrisos, as danças, bem perto de mim. Não me importo com nenhum daqueles idiotas, não. Mas com ele sim.

Com aquele que se dizia meu companheiro, que estaria ao meu lado, e que na primeira oportunidade me deu às costas.

Quantas traições eu vou ainda suportar? Não, essa pergunta está errada, pois eu não suportei. Caí, como naquela antífona "o insulto me partiu o coração, não suportei, desfaleci de tanta dor, eu esperei que alguém de mim tivesse pena, mas a ninguém pude encontrar." De algum modo eu cantei, ou lamentei, isso, no meu peito durante todo o fim de semana.

Senti dores lancinantes, seja por conta dos remédios que tomei, na esperança de não mais acordar ou, quando percebi que não havia sido suficiente e, então, percebi que se tivesse sido, não faria diferença. E essa é uma verdade brutal que precisa ser aceita: se, ou melhor, quando, eu morrer, pois já estou resolvido, ninguém vai sentir e, se o sentir, não será por muito tempo. Em cada passo que dei esse fim de semana caiu um pouco de minha vida. E ele nem sequer percebeu. 

Mas não eram nossos corações que estavam unidos? Isso me foi um golpe tão forte que nem mesmo sei como falar sobre. Ou não sei se exagerei. Nem mesmo o martelo da 6° Sinfonia de Mahler tem aquele devastador que sempre teve em mim. Estou indiferente. Nem sei o que dizer.  Eu já não sei mais nada. Só sei que não haverá outra tentativa.

Eu sei que precisava falar, precisava colocar para fora de algum modo. E ainda tinha uma parte de mim que achou que fosse possível que ele entendesse. Mas não entendeu, não completamente. No fim, como esperado, eu fiquei como maluco, exagerado. É assim que me sinto. Aliviado por dizer, mas desacreditado, por mais um que vai pensar em mim como um homem completamente desequilibrado, que não vai me contar as coisas, que... Ao mesmo tempo, não suportaria ficar sem ele. É sempre assim, eu me apego de um jeito que me machuco demais enquanto o outro... É, uma vez mais, preciso lidar com as consequências de sentir demais.

Perdi a esperança como uma carteira vazia...
Troçou de mim o Destino; fiz figas para o outro lado,
E a revolta bem podia ser bordada a missanga por minha avó
E ser relíquia da sala da casa velha que não tenho.

(Jantávamos cedo, num outrora que já me parece de outra incarnação,
E depois tomava-se chá nas noites sossegadas que não voltam.
Minha infância, meu passado sem adolescência, passaram ,

Fiquei triste, como se a verdade me tivesse sido dita,
Mas nunca mais pude sentir verdade nenhuma excepto sentir o passado)

(Álvaro de Campos)

segunda-feira, 29 de setembro de 2025

A Solidão em uma xícara de chá

“A humanidade existe, e é justamente isso que me desagrada.” (Albert Camus)

É apenas um momento, mas, de vez em quando, consigo me deixar levar pela simplicidade de uma xícara de chá. O aroma delicado, o sabor em contraste, o calor por entre as mãos. Por alguns instantes eu posso pensar apenas naquilo. Mas o calor da xícara de chá não é como o calor dos lábios, e nem dos amplexos do amado. 

Mas acho que pedi demais. Foi como um estalo a me lembrar de algo que vi de passagem nos últimos dias: falava da imensa dificuldade de pessoas com idades distintas se entenderem, e como há espaço para que, na verdade, aconteça justamente o contrário. A moça no vídeo perguntava "como eu posso conversar com uma pessoas dez anos mais nova e querer que ela entenda as mesmas coisas que eu?" E é verdade, e é bem o que tenho feito.

Com trinta anos, e só agora começando a entender as dificuldades de um, ou mais, transtorno de personalidade, com mudanças agressivas de humor, muitas das quais nem mesmo eu suporto. E então, numa amizade com onze anos de diferença, esperar por compreensão e acolhimento? Eu não tinha essa maturidade dez anos atrás, não a tenho completamente agora. Só hoje a importância de ficar em silêncio ao lado de alguém. E é só isso que eu desejo, mas parece que não é assim tão óbvio, e mesmo dizendo o obvio, o outro não consegue fazer isso.

Eu escrevo sobre meus sentimentos porque é o que eu posso fazer. Ele ignora os sentimentos dos amigos e corre atrás das meninas porque é só que ele sabe fazer. Não há nada de novo nisso. As coisas são assim. O céu é azul, a grama é verde e meninos vão atrás das meninas. Só após uma certa idade, muitas decepções, é que enxergamos um pouquinho mais além dos nossos desejos individuais imediatos. 

Isso mexeu mesmo comigo. Estou completamente abalado. Sinto febre e dores abdominais fortes, odeio quando o psicológico mexe assim comigo. Odeio ser fraco assim. 

É só depois de um tempo que o jovem cresce e aprende a apreciar um bom chá. O de hoje era um Puerh com um delicado aroma de baunilha.

“Quando penso na humanidade, tenho vontade de vomitar.” (Louis-Ferdinand Céline)

sábado, 27 de setembro de 2025

Ensaios para um Adeus

“Eros nasceu do Caos, mas dele também nasce a Morte: é sempre do desejo que brota a mais funda exaustão.” (livremente inspirado na Teogonia de Hesíodo)

Hoje eu só quero morrer. Apenas. E estou escrevendo aqui porque sim. Mas não acho que hoje vai adiantar alguma coisa. Na verdade, nunca adianta. Eu só vou empurrando, dia após dia. Mas não aguento mais. Não aguento mais esperar e ser feito de idiota. Não aguento mais essa maldita esperança que fez querer, que me faz desejar e então me deparar, como um grande quadro numa exposição, com a verdade diante de mim. 

É mais uma sexta, mais uma maldita sexta! E mais uma vez sozinho, e descubro que, enquanto me lamentava pelo nosso afastamento, ele procurava meninas. Enquanto não tinha tempo para conversar comigo, tinha para sair com elas. Nos últimos dias e meses, enquanto dizia que não tinha tempo pra mim devido aos numerosos afazeres, a verdade era essa. Sempre foi, e eu já devia saber, só fingia que não via. É, mais uma vez, a verdade. Eu mais uma vez feito de idiota. 

Idiota. 

Idiota. 

Idiota. 

Hoje eu só queria morrer. Apenas. Eu só queria isso. Eu não quero mais tentar. Eu não quero mais um amanhecer. Não quero mais. Eu não aguento mais. Eu não quero  mais ser assim. E ele ainda reclamou que não dei parabéns de um jeito que todos poderiam ver no seu aniversário. Com que objetivo? Para ter assunto para rir com elas? Olha só aquele idiota, diz a todos que me ama, mas eu estou aqui com vocês. Sim eu sou realmente patético. 

Minha mãe percebeu que algo não estaca certo, e ficou me rodeando, até que eu disse com voz embargada que, naquela noite, tudo o que eu queria era finalmente o doce abraço da morte que, ao me envolver em seu manto negro como a noite mais escura, poderia então fechar os olhos para o silêncio do eterno não-ser.

Sim eu sei que essa é uma reação exagerada. Mas em dois meses ele vem para cá, e por quê? Porque pra ele é fácil passar alguns dias com um amigo, afinal ele não me vê como nada além disso. Um amigo, um banco de respostas.  

Mas eu mudei. Minha memória já não é mais a mesma. Eu sou como uma espécie de fantasma, pairando, mas sem materialidade algum. O que eu sabia se desfez, como pó. Assim como o sentimento, que ele esmagou com as mãos e jogou fora. Já não tenho mais valor.

E então eu esperei até que meu corpo pesasse de sono por causa de sei lá quantos remédios eu tomei, e acabei dormindo. Acordei duas vezes, numa delas eu gritava, porque minha mãe entrou no quarto às pressas. Mas não me lembro o que sonhava. Do segundo já me lembro um pouco mais.

Estávamos no velório do meu avô, que acontecia numa espécie de hotel fazenda. O velório acontecendo ao centro, depois de uma longa escada, e a família dormia nos bangalôs ao redor. Não me lembro com qual primo estava mas parecia divertido, e ninguém estava realmente triste. O que pairava no ar era apenas aquela austeridade típica dos velórios em que dizemos "meus pêsames" sem parar, mesmo enquanto entregamos aos convivas alguma tigela de sorvete de chocolate superfaturado, pagos por uma prima que ficou rica ao se casar com um europeu e fez questão de ficar todo o tempo ao lado da família, em partes para jogar na cara do ex que estava bem melhor do que ele, que não sai da academia, não malha pernas e nem consegue correr dos sinais da velhice que dizem que ele já não é mais tão bonito assim. e não é mesmo. 

Talvez tenha sonhado com isso por passar tanto tempo com a morbidez em mente. Eu não apenas pensava em me matar, mas as minhas lágrimas haviam secado e eu sabia que a única coisa que eu podia fazer era levantar e tomar todos os remédios que tinha. E misturar com energético e, quem sabe, isso explodiria dentro de mim. Tudo que eu não queria era acordar na manhã seguinte.

Mas acordei. Droga!

Para mais um dia terrível. E hoje também eu só quero morrer e não pensar em mais nada. Não são nem nove da manhã e já tomei remédio o bastante para, espero, me fazer dormir até parte da tarde. Já deixei separado também mais alguns para quando acordar. Sei que isso não resolve o problema, e acredito que poderia ser resolvido se eu aceitasse a verdade. Mas não simplesmente aceitasse. A aceitação aqui é aquela radical: eu devo deixar para trás tudo isso, pois não há possibilidade de mudança, e seguir em frente, seja trabalhando ou estudando, mas sem buscar nenhuma companhia. Aceitando que meu destino é, sim, o da solidão, total, completa, absoluta. 

Eu achava que nossa conexão era real. Achava que os sentimentos fossem reais. Que ele só tinha medo de dizer em voz alta o que sentia. Mas não. Quem tinha medo de encarar a realidade era eu. A realidade de que o silêncio dos últimos meses não era apenas cansaço, mas era o sinal de um interesse cujo eixo se deslocara. Como sempre eu fui um substituto, tapa-buraco, conversar comigo era bom enquanto não houvesse uma mulher para isso. Uma mulher! 

Sempre elas, sempre elas! 

Malditas! 

Quisesse poder esmagar cada uma delas debaixo de meus pés.

Mas, mesmo com esse rompante de fúria, eu entendo a verdade. Ele não me contou porque temia justamente que eu ficasse bravo, como agora. De que adiantou de me fazer de idiota? Será que eu sou assim tão descartável que ele pode até vir me visitar, do outro lado do país, e não sentir nada? 

Me senti como se levasse um golpe violento. Aquelas palavras, ditas de modo tão simples, são, na verdade, um poderoso martelo do destino a me quebrar os ossos. Quantas vezes eu lutei, perdoei, implorei, não só a ele mas tantos outros? E agora eu já não tenho mais forças. O último golpe foi o derradeiro: um homem incapaz de se levantar cuja única ação será seu último suspiro, um suspiro de um amor não correspondido. 

A violência desse golpe vem justamente do fato de ter sido dado por alguém de confiança. Mas é sempre assim. E ele ao menos se importa em saber como me sentiria? Deve ter pensado "ele já é um homem, deve se virar sozinho."

Malditos, todos eles. 

E os médicos, minha mãe, conhecidos, dizem que eu não devo me matar? Como não me matar? Querem que eu prolongue essa existência miserável? Quantas vezes mais eu deverei me sentir assim? Traído, sem valor, sem outra razão de ser a não ser a da constante traição. 

Todos eles sempre me trocam pelas mulheres. 

Eu já não quero amigos. Eles também me trocam, por outros amigos ou mulheres. Sempre elas. 

Além dos remédios para dormir, engoli um vidro de antialérgico. Isso não é, nem de longe, o suficiente para me matar, mas talvez me deixe um pouco grogue. Sem ver nada. Não que se morresse fosse algo ruim, claro. Afinal, eu não entendo o motivo de tantas pessoas não quererem que eu me matem. Quem que eu continue sendo vítima de meus próprios sentimentos. 

Não quero conversar. Não tenho dinheiro. Não vou conseguir morar sozinho, e me dedicar a escrever, como se isso me desse um centavo sequer! Não vou nem mesmo aproveitar a promoção daquela loja que gosto. Não vou pagar as dívidas do cartão que tenho. Não vou ter dinheiro para nada na viagem de novembro. 

Os médicos, quando realizarem a minha autopsia, colocarão a desilusão como causa. E constatarão o grande coração que um dia eu tive, vísceras repletas de sentimentos um dia estiveram ali. Pelo estômago passaram muitas poesias. Mas agora tudo está vazio. 

Por fim, me sinto sozinho, mais uma vez. 

É a minha única sensação antes do último suspiro.

"Ah, não há saudades mais dolorosas do que as das coisas que nunca foram." (Fernando Pessoa)

Em Busca da Consolação

Tenho pensado cada vez mais, nos últimos dias, no desejo de morar só. Simplesmente não tenho aguentado minha família e até os menores hábitos deles me irritam muita. Me incomoda tanta gente numa casa tão pequena, não poder ficar sozinho quando quero assistir em silêncio, mas ficar em silêncio quando quero conversar porque ninguém entenderia. Então não vejo vantagens. Na verdade, já é mais do que sabido que eu não vejo vantagem nenhum na vida em si. 

As pessoas continuam criando compromissos para mim. Eu preciso isso, ou aquilo. Será que eu faço isso com os outros também? Deve ser muito irritante. É que não quero, estou cansado de mover um dedo sequer para o outro. No fim, quando estou em crise, fico sozinho, sempre sozinho, ou então sou alvo de piadas. E pouca coisa machuca mais do que a indiferença. Sobre a indiferença eu conheço bem.

Meus dias podem ser resumidos então nesses incômodos. Amigos ausentes, amores não correspondidos, uma comunidade tão displicente com a fé que acaba afetando a minha própria, incômodos familiares, barulho demais quando quero silêncio e silêncio quando quero uma voz. 

Antes de dormir estou ouvindo uma interpretação do Daniel Lozakovich do Concerto para Violino do Brahms, é uma bela interpretação, e ele tem apenas 24 anos, já conseguindo imprimir muito da carga romântica do compositor. E então me pergunto se ele, um rapaz tão jovem e tão bonito. Tão habilidoso, também se sente assim. Será que só quando toca música ele se sente realizado? Será que as horas de ensaio lhe são um suplício enfadonho? 

Sempre me pergunto se o outro também sente esse vazio tão incômodo. Se, quando busca por companhia e consolação, também encontra apenas o frio. 

Onde se buscava o calor de um abraço, 

ficou apenas o silêncio,

o silêncio frio do vazio. 

Se não acordasse amanhã, talvez alguém chorasse, mas depois de amanhã, não mais. Não sou lembrado em vida, quem dirá na morte. Por isso penso na morte como alívio e libertação: se em ambas somos condenados a solidão, ao menos na cova experimento a solidão sem o incômodo do dia a dia. Em meu funeral até poderia cantar-se que "será uma cova grande para meu defunto parco, porém mais que no mundo me sentirei largo." 

"Mas a vida é real e de viés
E vê só que cilada o amor me armou
Eu te quero, e não queres como sou
Não te quero, e não queres como és."
(Caetano Veloso)

sexta-feira, 26 de setembro de 2025

Arquitetura do Delírio

"O corpo que imagino me queima mais do que qualquer corpo real poderia." (Anaïs Nin)

Na noite escura eu busco aquele por quem minha alma clama... 

Na escuridão velada me vem esse ímpeto de desejo. Me vem a imagem daquela pele alva, tornando-se vermelha pouco a pouco. E eu começo a ofegar, mas o que sai de meus poros não é suor, e sim o querer que me transborda. Sinto as fibras do meu corpo se retesarem: uma chama arde bem no meu peito, e vai me destruindo de dentro para fora. Espalhando-se lentamente, do coração para as extremidades. Os músculos dos meus braços e pernas preparam-se para algum esforço. De meus lábios escapam pequenas lufadas de ar, inebriadas de um prazer que ainda não se fez. O calor aumente a medida que se aproxima de minhas mãos: tenho certeza que poderia queimar a pele dele se o tocasse. E então, se fecho os olhos, esses archotes impregnados de óleo, sentem o membro dele pulsar. Não é tão grande, ligeiramente mais escuro que o restante de seu corpo. A cabeça, vermelha, brilha com o líquido que dela escorre, evaporando em contato comigo. 

Posso sentir também o corpo dele desejando por isso, sua respiração diz mais do que palavras seriam capazes de dizer. Começo os movimentos de vai e vei, ele morde os lábios, que ficam vermelhos como se fosse sangrar, e isso aumenta ainda mais meu desejo. Aquele pequeno corpo entre minhas mãos treme de prazer, e eu tenho vontade de fazer mais, de abrir suas pernas, de penetrar aquele corpo enquanto ainda o seguro firmemente até que me entregue aquela explosão nívea. Mesmo sendo uma fantasia, eu consigo sentir cada detalhe: as veias pulsantes, cada choque percorrendo seu corpo quando toco sua glande ou desço um pouco mais. 

Ele se retorce, completamente dominado pelos meus braços. Enquanto seus gemidos se intensificam, o meu olhar se acende completamente em chamas. Freneticamente eu continuo a tocar, e ele, já sem controle de si, aperta uma almofada com as mãos e deixa seus lábios ainda mais vermelhos quando, num rompante, faço com que seu corpo fique coberto daqueles fios prateados, enquanto ele arfa, sem fôlego. Me curvo diante dele e o faço estremecer de novo ao tocar com os lábios o topo de seu membro, sentindo o gosto daquele momento e, depois, seguindo adiante, com a língua, buscando cada pequena gota daquele precioso líquido, enquanto ele me olha, enrubescido e envergonhado, principalmente quando me aproximo de seu peito e, ao engolir a última pequena poça de leite, beijo seu mamilo, antes de lhe dar um beijo de verdade...

Até que, então, ao abrir os olhos, eu vejo que continuo no mesmo cômodo escuro, e vazio. O fogo cessou. Meu corpo agora apenas cinzas. E em breve, nada. 

Na noite escura eu busco aquele por quem minha alma clama... 

E sei que esses desejos são reflexo da carência, que me fazem sonhar, que me fazem desejar, que me fazem delirar desse modo, numa situação que nunca vai acontecer. Também sei o quanto esses sonhos podem ser perigosos. Sonhos são esperança, elas vão alimentando nosso ser, dizendo que devemos lutar mais um dia, superar, tentar e tentar... Mas, no fim, tudo que a esperança nos dá é o desespero frente ao fracasso. 

Nada disso é ou será real. É apenas uma fantasia, um delírio, um devaneio luxurioso. O reflexo do desejo, esse, sim, real, crescente e permanente, acaba encontrando na esperança um raio de luz, que nada mais é do que um chamariz. Mas não creio que exista algo contra nós, no sentido de um deus ou um destino, que se diverte às custas das decepções, não. Aqui deve-se guardar aos homens sua devida insignificância. 

Por isso os homens escrevem, desde tempos imemoriais, histórias de deuses e heróis que combatem forças malignas. De Gilgamesh até a Liga da Justiça. Sonhamos com heróis que tenham algum poder, que conseguem influenciar de algum modo e mudar seu destino. Até existem potentados hoje com poder de controle de informação que podem, de algum modo e até certo ponto, mudar as coisas. Mas, basta um câncer, para que essa pessoa morra sem que sua fortuna prolongue sua vida de modo realmente significativo. Claro que bons tratamentos ajudam, mas a morte não pode ser adiada, o destino não pode ser mudado. 

E alguns possuem destinos visivelmente mais trágicos, como a mãe que vê o filho adoecer sem que possa fazer nada. E outros, como eu, apenas vivem de modo miseravelmente vazio. Por isso o desejo do outro faz com o sonho da companhia se torne delírio. É o coração alimentando-se de mentiras, o ciclo infernal de novo, o dragão mordendo a própria cauda. 

Por isso sonho não só com o sexo bom, mas com aquele tão bom, tão inexplicável, em que cada um devora a alma do outro. Mas, ao acordar, percebe que a realidade trata-se de um interminável pesadelo. 

Por isso, depois de me jogar de cabeça nesses cenários idílicos de prazer, ao abrir os olhos, eu vejo que continuo no mesmo cômodo escuro, e vazio. O sexo sonhado não me saciou; apenas me lembrou que sou fome eterna. E no fim, restou apenas o silêncio viscoso de um corpo que nunca existiu. O fogo cessou. Meu corpo agora apenas cinzas. E em breve, nada. 

Todo gozo é apenas o prelúdio do vazio: o orgasmo da alma sempre termina em pó.

“Eu nunca fiz senão sonhar. Tem sido esse, e esse apenas, o sentido da minha vida. Nunca tive outra preocupação verdadeira senão a minha vida interior. As maiores dores da minha vida esbatem-se-me quando, abrindo a janela para dentro de mim pude esquecer-me na visão do seu movimento.

Nunca pretendi ser senão um sonhador. A quem me falou de viver nunca prestei atenção. Pertenci sempre ao que não está onde estou e ao que nunca pude ser. Tudo o que não é meu, por baixo que seja, teve sempre poesia para mim. Nunca amei senão coisa nenhuma. Nunca desejei senão o que nem podia imaginar. À vida nunca pedi senão que passasse por mim sem que eu a sentisse. Do amor apenas exigi que nunca deixasse de ser um sonho longínquo. Nas minhas próprias paisagens interiores, irreais todas elas, foi sempre o longínquo que me atraiu, e os aquedutos que se esfumam — quase na distância das minhas paisagens sonhadas, tinham uma doçura de sonho em relação às outras partes de paisagem — uma doçura que fazia com que eu as pudesse amar.” (Fernando Pessoa)

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

A Morte do Sagrado

Nem preciso dizer que meus planos de escrever foram completamente frustrados por toda sorte de barulhos insuportáveis que abafaram meus pensamentos de tal modo que nem consigo me lembrar direito de minhas ideias. É sempre assim. Um inferno cheio de horror, onde a estética oprime a alma até seu estágio mais baixo, e o barulho que impede que ela possa chegar a níveis superiores.

Continuo minha leitura, mais lenta do que gostaria, dos Cadernos do Concílio, e me revolto em ver o quanto tentar, a todo custo, pintar o Concílio Vaticano II como sendo uma renovação da Igreja que trouxe novo frescor a todos os seus aspectos. No mundo ideal dos padres conciliares e daqueles que defendem as reformas empreendidas por eles, hoje vivemos uma Igreja que se alimenta diariamente da Palavra, pois os tesouros da Revelação foram entregues a todos os fiéis. Os mesmos fiéis que participam ativa e consciente da sagrada liturgia que, despida dos ornamentos e orações exageradas, conseguem compreender a grandeza do rito por meio da língua vernácula.

Parece que nenhum desses teólogos visitou uma paróquia média no Brasil, qualquer uma, e viu que, na verdade, nada proposto pelo concílio sequer chegou ao conhecimento do povo senão de forma truncada, insípida, brega e tosca. 

A Palavra de Deus, em diversas traduções, deram lugar a disputas editoriais, o que em si não seria problema se cada uma buscasse uma tradução mais digna e aproximada do original, mas ainda possibilitando o conhecimento do texto. A realidade: interpretações arbitrárias da mesma, nos moldes do protestantismo. Com efeito, um grupo de oração carismático em nada se diferencia de um culto protestante qualquer. E nem me refiro às tradições protestantes mais robustas, conquanto igualmente heréticas, mas os católicos estão no mesmo nível que essas igrejolas de seitas protestantes que explodem a cada esquina como verdadeiras pragas.

A litugia, simplificada e em português, parece que contribuiu para que o fiel compreendesse menos ainda. O latim, que só era desconhecido pela população que não tinham um pequeno missal cotidiano com as traduções de todo o rito, parece que nunca existiram. Os padres atearam fogo aos antigos paramentos, nobres e dignos, para usarem no lugar túnicas amplas e estolas de adornos duvidosos. Não havia nada daquele encantamento que fazia o homem querer se aproximar e conhecer aquilo que parecia o céu nada.

Multiplicam-se os abusos. Entradas da Bíblia (sic!) durante o mês de setembro, decorações bregas, cheias de talhas de barro, tecidos, e um infindável número de bugigangas que simbolizam isso e aquilo. O simbolismo próprio a missa, as reverências ao nome de Nosso Senhor e da Virgem Maria, as batidas no peito, o ajoelhar-se no ato penitencial e da oração eucarística até a Doxologia final, expressão de contrição e adoração, foram esquecidos. Gestos vazios, diziam eles. Mas entradas com livros, bandeiras, cestas de comida (num ambiente urbano, diga-se), tudo isso é repleto de significado. Fui acusado de perder o foco da liturgia por não providenciar uma moça grávida para acender a vela da coroa do advento. Nem preciso dizer mais nada. A coroa em si já é algo de tradição protestante e, dizem, de origem pagã. Antes fosse apenas pagã, afinal a Igreja sempre se apropriou desses elementos dando a eles novos significados. Mas uma prescrição de uma moça grávida acender a vela? Loucura. 

E a quem devemos culpar? Aqueles que, no desejo demoníaco de demolir a Missa de Sempre, buscaram uma simplicidade tão grande que o homem hoje sente necessidade acrescentar algo, pois só a Missa parece pouco. É preciso, como o altar que agora faz com o que o padre se volte ao povo, que o homem seja o centro. Cada vez mais participação dos leigos e diminuição das vocações sacerdotais e religiosas. Quem poderia prever não é mesmo, que se as pessoas podem servir de qualquer jeito, por qual razão iriam se dedicar ao estudo no seminário ou a oração nas casas religiosas? 

Agora chegamos na paróquia e há dezenos de ministros (sic!) que se denominam dos mais diversos modos, como se todo lugar fosse terra de missão. O número dos acólitos diminui, porque aqueles aumentas, a permissão das mulheres junto ao altar aumenta, e os meninos, cuja proximidade com a Eucaristia ali, bem diante de seus olhos, e de cada gesto do nobre do padre em reverência ao sagrado, cada vez menos se interessam pela austeridade da vida sacerdotal. E então criam-se campanhas estapafúrdia, em desespero, quando percebem, tarde demais é claro, que as casas religiosas estão fechados, as freiras estão velhas, e os padres não dão conta das comunidades. Daí aceitam qualquer um nos seminários e depois eles dão continuidade e essa dedicado projeto de destruição da Santa Igreja: construções horrendas, a arte sacra reduzida a rabiscos mais pobres do que aqueles encontrados nas catacumbas dos mártires dos primeiros séculos, celebrações insossas ou que mais se assemelham a shows e Nosso Senhor esquecido no sacrário, sem que ninguém possa sequer adorá-lo em silêncio.

"Tende piedade, ó meu Deus, misericórdia!" (Sl 50)

terça-feira, 23 de setembro de 2025

Céu Claro sobre o Abismo Interior

“O pior da solidão não é não ter ninguém por perto, mas sentir-se desajustado no meio de todos.” (Cioran)

A mudança da estação já trouxe mudanças: há poucos dias o sol já brilha com força desde cedo. Sentirei saudades das manhãs nubladas e dos dias inteiros sem ver a luz. Bem, posso dizer que é sempre cinza no meu coração, mas ninguém vê isso. Parece que dias ensolarados criam uma obrigação quase moral de estar de bom humor. E lembro, com um gosto amargo na boca, dessa cobrança maldita cada manhã no trabalho, por pessoas cujo maior problema do dia era precisar estacionar longe da entrada. Nem preciso dizer o desprezo que sinto por essas pessoas. Isso porque odeio esse peso que colocaram em mim sem que pedisse. 

Reclamavam que eu chegava de cara feia todas as manhãs. Que motivo eu teria para sorrir? É que esses idiotas não entendem. Levam suas vidas em coquetéis e conversas toscas. Transam depois de duas garrafas de vinho toda noite. Quando se sentem triste, podem ir à praia, ao teatro, à ópera, algum jantar na casa de amigos, pois os convites não faltam. Não sito inveja, pelo contrário, prefiro morrer agora mesmo a ter que enfrentar toda essa situação social. Porque cada palavra que sai da boca deles é irrelevante. Como todos são irrelevantes, com a diferença que alguns nunca chegam a perceber isso e passam a sua existência patética achando que foram importantes. 

Importante foi Platão, Aristóteles, São Francisco, pessoas assim, todos os outros são célebres desconhecidos, cuja memória se perdeu nas areias do tempo. E é bom que pessoas assim sejam esquecidas. É bom que ninguém saiba da existência desses párias. É bom que ninguém saiba que um dia existiu alguém tão desprezível como eu. 

Já sinto uma certa nuvem pairando sobre mim. E não me refiro mais ao tempo, pois lá fora continha irritantemente ensolarado. Me refiro aquela vontade de ficar quieto, de deitar e dormir e sem que ninguém me perturbe. Queria me entregar a um sono profundo sim. Mas admito que já não sei mais o que fazer para conseguir isso. Os remédios já não fazem efeito, e eu fico cada vez mais irritado. Acabei surtando no fim de semana, mas, como ninguém se importou, eu só dormi. Precisei lidar com as consequências, claro, mas ainda assim, bem, é isso. 

E hoje ainda vieram me mostrar conteúdo de prevenção ao suicídio. Sobre ser gentil com todos porque muitas vezes os sinais são sutis demais, mas se ignoram até os mais óbvios, o que se dirá dos sutis. É mais uma daquelas inversões de pensamento tão comuns hoje em dia: a pessoa confunde o dizer algo ou, no caso, compartilhar algo, com o fazer aquele algo. É um raciocínio metonímico claro. Entender é apenas parte do fazer. Mas ao simplesmente arranhar a superfície, já acredita que sabe tudo o que há dentro da coisa. É como alguém que por comprar um livro de um assunto sobre o qual nunca leu, já se acha especialista no assunto. 

É por esse motivo que não consigo deixar de pensar no quanto a minha existência é patética. Os outros podem ter suas inspirações, aquilo que os fazem levantar todos os dias. Sejam seus sonhos, sua responsabilidade com os filhos, coisas assim, mas eu... Quando eu acordo e abro os olhos pela manhã e, como hoje, vejo o sol brilhar por uma fresta da minha cortina, invadindo o quarto sem ter sido convidado, eu só consigo amaldiçoar a minha existência, e virar para o outro lado para o sol não pegar na minha cara.

Pelo menos as mudanças na rotina de sono têm dado resultados. Bem, é melhor dormir do que pensar demais. E hoje sinto a carência crescer, e eu desejar a presença de alguém, mas alguém específico. Mas, como sei que não vai acontecer, é melhor só dormir. Nunca conseguirei criar uma conexão real. Sou um eterno condenado ao abismo solitário, donde olho para cima e vejo um céu claro, inalcançável, como uma serpente que sonha em voar.

“Pertencer? Nunca pertenci a nada. A ninguém. Nem a mim.” (Fernando Pessoa)

Somente Eu, e o Barulho da Chuva

"Eu estava condenado antes mesmo de nascer. O resto foi só entretenimento barato." (Charles Bukowski)

Um pouco de energia ainda circula pelo meu corpo. Não deve durar muito tempo. Acordei por volta das três da manhã com o barulho da chuva. Mesmo estando numa cidade que chove bem mais do que o normal, por alguma razão aquele som me encantou. Levantei, passei um pouco de chá Puerh com Baunilha, coloquei uma pequena luz quente no canto e fiquei ali, ouvindo aquela sinfonia, sentindo a brisa leve entrando por uma pequena abertura na porta e olhando a rua deserta, povoada apenas pelos meus pensamentos. Foi um momento agradável.

O meu nervosismo dos últimos dias passaram e, claro, agora chegou a vergonha da raiva desregulada, exagerada. Não totalmente sem motivo, mas certamente desmoderada. Sei que minha reclamação não deu em nada, apenas deve ter confirmado para uma meia dúzia de pessoas que eu sou maluco. Bem, não estão de todo errados. Pelo menos não preciso fingir normalidade, de todo modo mais cedo ou mais tarde eles veriam meu descontrole. De todo modo se afastariam. Três anos aqui e ainda não posso dizer que sou realmente próximo de alguém. 

Mesmo assim ainda pulula no meu peito essa vontade do outro. Quase como uma necessidade, da mais básica, de ser um só, de estar com alguém. Como se eu fosse incompleto. Isso me fez, por exemplo, ignorar o fato de ter sido ignorado, porque a pessoa que me machucou estava justamente me trocando. Isso me fez perceber que não posso confiar, que devo guardar para mim o que me incomoda, afinal ninguém se importa. 

Basta uma conversa breve para que eu entenda que não vou conseguir me conectar a ninguém. Por mais que tente. Sou criatura estranha. Os outros me são estranhos. Bastou uma conversa para entender quem estava do meu lado em meio a tempestade: ninguém. Gritava em meio as ondas que me lançavam de um lado para outo com violência, e ninguém me ouvir. Esperei que a tempestade se fosse, que o mar se acalmasse depois da ressaca. Olhei para o céu, ainda nublado, como se, a qualquer momento, tudo pudesse voltar. E sei que, se voltar, estarei sozinho mais uma vez.

Acho que preciso me acostumar que os melhores momentos que terei serão justamente esses simples, um chá aromático, o barulho da chuva, um ciclo de concertos para piano, algumas séries. Sem ninguém. E é isso. 

"Jovem, eu exigia das pessoas mais do que elas podiam me dar: uma amizade contínua, uma emoção permanente. Agora eu sei pedir a elas menos do que podem me dar: uma companhia sem frases." (Albert Camus)

segunda-feira, 22 de setembro de 2025

A Condescendência da Mediocridade

“Estamos todos ferrados 
e sorrindo para o nada, 
como se fôssemos especiais.” 
(Charles Bukowski)

Hoje algo daquele vazio permanece. Ou talvez eu o queira de volta. Uma certa dose de ira me domina, e isso me faz sentir algumas dores incômodas, no corpo e na alma. A ingratidão ecoa no meu peito. Uma dor lancinante me fere enquanto ele dorme, com a doce satisfação de tê-la ajudado.

Malditos. 

E eu nem sequer consigo silêncio o bastante para externalizar isso. Parece que o barulho é algo tão confortável aos outros quanto o silêncio é para mim. Mas sei que isso não é verdade, eles apenas o toleram, porque sabem que não podem lutar contra, o que só é verdade até certo ponto, afinal, se cada um pudesse se ater a própria insignificância, o silêncio seria mais aceitável. Ouvi dizer que muitos países têm no silêncio algo comum, necessário ao bom convívio, e então chego a conclusão que se trata de uma verdade aquilo que o pessimismo de Schopenhauer disse ao afirmar que a quantidade de barulho que alguém suporta está na razão inversa de sua capacidade mental.

Não é que o brasileiro seja burro e não saiba pensar e, por isso, faz barulho. Não, nem é bem esse o mecanismo. Parece que o brasileiro tem medo de pensar, porque isso lhe coloca diante de uma aceitação radical da existência que lhe parece tão aterrorizante, que o barulho se torna um refúgio de seu próprio pensamento. Cindindo sua persona o homem vive. Ou finge. 

Eu, no entanto, não quero viver. Minha fuga não é para o barulho, eu quero fugir para o inferno. Com um olhar distante e vazio, percebo que as cores foram perdendo o brilho. Estou do lado de cá, onde as cores se misturam como aquarela, pouco a pouco perdendo o contorno, confundindo-se cada vez mais umas com as outras. Assim como as pessoas ao meu redor. As sucessivas decepções e frustrações me ensinaram que vai ser sempre assim. Ninguém vai sequer dar por minha falta, e aqueles que perceberem, será porque precisaram de algum favor. Como na música, talvez eles não deem a mínima. E é verdade. 

"Maybe they just don't give a damn." (Rie Fu)

Malditos.

E trata-se de uma verdade. Eles não se importam. Não adiante ser esforçado como amigo, parceiro. No fim eles só estão interessados em encontrar uma namoradinha. E esses moleque nem sequer sabem como foder uma boceta. 

Em se tratando de mim, os resultados precisam vir rápidos e precisos. Quando uma garota faz algo, há sempre a condescendência da mediocridade. O pau responde por eles. Largam trabalho, faculdade, qualquer coisa, para agradar na esperança de terem uma chance de enfiar algo no meio das pernas delas. Tentam atrair atenção e desejos com fotos do membro duro, e talvez consiga, já que elas estão com tanto fogo quanto eles. Uma rola dura é sempre sincera, mas uma sinceridade que até os animais possuem. E a sinceridade de coração? Aquela que mostra verdade de quem somos? Assusta demais não é? É mais fácil manter-se apenas do lado de cá. Por isso eles se merecem. Toscos. 

Malditos.

E enquanto eles buscam isso, eu vou continuar quieto, no meu quarto, torcendo para que a irritante luz do sol não penetre com força demais e que me deixe dormir. Apenas isso. 

"Se amar algum dia, guarde bem seu segredo! Não o revele antes de saber perfeitamente a quem está abrindo o coração. Para preservar antecipadamente esse amor que ainda não existe, aprenda a desconfiar deste mundo." (Honoré de Balzac)

domingo, 21 de setembro de 2025

A Melancolia de uma Xícara de Chá

"A tua alma não é para tomar conta de ti.
Tu é que tens que tomar conta dela.
Dar-lhes de comer. Solidão. Consciência.
Vagar. Amor. Lembrança.
São estes os nossos alimentos."
(Miguel Esteves Cardoso)

Hoje foi um daqueles dias meio, sei lá. A primavera já vem dando seu ar, mais quente do que eu gostaria. Dormi a maior parte do dia, na verdade, acordei sem nem lembrar quando foi que adormeci. Mais por tédio do que por qualquer outra razão. Ando um pouco irritado. 

Vejo ódio nos olhares de algumas pessoas e sinto um profundo desprezo nelas. Eu também espero o pior de todos, mas, às vezes, vejo que ao fazer isso, alguns usam isso como desculpa para serem elas o pior possível. Sei bem dos meus defeitos, mais do que qualquer outro, mas isso não significa que me orgulhe deles. Pelo contrário, sei que a minha situação hoje é, por vezes, consequência desses mesmos erros movidos pelos defeitos mais arraigados na minha alma. De tal modo que, reconhecendo a baixeza do meu espírito, ainda que não veja no outro nenhuma razão para isso, vejo na minha capacidade, natural que todos os homens por definição também possuem, me fazem querer elevar-me, ainda que apenas um pouco. Eu sei que sou ruim, mas não quero ser. E ver que as pessoas usam a desculpa de que, como todos são ruins, posso supor e querer desejar ser ainda pior, de uma baixeza atroz. 

Parece que travei. É aquele momento Adélia Prado uma vez mais: olho para uma pedra e vejo isso mesmo. Também olho um canteiro de flores e só penso em como elas poderiam me dar alergia. Nada de especial há nisso, só o tédio absoluto o ser.

É mais uma sexta de solidão, com algumas mensagens bobas, mas que me explicam a razão de estar sozinho esta noite. Talvez seja a pressão para que hoje seja um dia para sair e ficar com os amigos. Mas para isso é necessário tê-los. Meus amigos serão os personagens das séries de hoje. 

Aquelas pessoas do mundo real são apenas incômodos. Sim, incômodos. Não quero mais ir a nenhum dos compromissos do fim de semana. De novo essa sensação amarga da ingratidão. Os homens são realmente criaturas irritantes. Seus discursos e valores valem apenas até aparecer uma menina bonita. Malditos, todos eles. Maldita raça humana. Estirpe desgraçada pelo desejo.

Acho que tanto pedi a mim que não mais amasse, que toda e qualquer sombra de uma alegria provocada por esse sentimento se desfez completamente. Sinto apenas que restou em meu peito os pedaços quebrados de um coração, como uma peça de cerâmica quase reduzida a pó.

Talvez tenha pedido tanto para não amar que hoje me foi tirado todo o amor.

Não só com relação ao mundo ao meu redor, mas também ao meu coração. Fechei os olhos sentindo o aroma do chá que fiz, a imagem dele veio a minha mente, tudo que senti foi uma leve tristeza, sutil como a fumaça que levantava da xícara, e desaparecendo no ar lentamente. Algo de uma aceitação. Embora soubesse que, se naquele momento colocasse o chá na boca me queimaria, fiquei esperando que ficasse morno. A imagem dele foi desaparecendo. 

As palavras que queria dizer a ele aos poucos se perderam no ar. Restou-me apenas o calor da xícara em minhas mãos, a fumaça pouco a pouco cessou. Ele dormiu sem nem se lembrar de mim. O chá estava frio.

"No primeiro dia pensei em me matar. No segundo, em virar padre. No terceiro, em beber até cair. No quarto, pensei em escrever uma carta para Marcela. No quinto, comecei a pensar na Europa e no sexto comecei a sonhar com as noites em Lisboa. Em seis dias Deus fez o mundo e eu refiz o meu." (José Roberto Torero)

sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Promessas Feitas ao Vento

“Não há nada mais ilusório que o outro. E nada mais cruel que depender dele para ser.” (Simone de Beauvoir)

Preciso admitir que venho sentindo uma coisa que não queria. Por mais que tenha lutado contra, buscado na razão e na realidade das coisas a verdade que deveria aceitar, o meu coração não aceitou. Infelizmente. E agora eu percebo, na noite escura, o meu coração em vivas ânsias inflado. Com temor e tremor eu me prostro diante dessa verdade que eu não queria, mas que uma parte de mim quis e que então, nessa divisão, oposição, acabei me perdendo: eu acho que estou amando. 

Isso porque eu jurei a mim mesmo, que na próxima vez que o amor viesse, me chamando baixinho, um sussurro por entre os agrestes escarpados que caminho sem rumo, arrastando os pés sangrentos, que faria diferente. Que que não me deixaria apegar, mas o efeito que o breve abraço dele, e aquele beijo, tem sobre mim mostra que me apeguei sem nem perceber, ou melhor, percebi, mas não consegui conter. Jurei ainda que não falaria meus pontos fracos, porque isso me faz ser visto como inferior, maluco, como alguém com mais problemas do que soluções, e que pode, deve, e vai ser descartado quando não tiver mais propósito. Pensei que conseguiria não falar do passado, mas disse a ele as coisas mais íntimas, e não encontrei a mesma sinceridade em troca. Que não faria promessas, pois elas sempre acabam sendo quebradas. Prometi que, se possível, não amaria. 

Mas em algum lugar profundo eu ainda espero, por um daqueles amores das séries. Mesmo sabendo que nada daquilo é real, que as pessoas não se amam daquele jeito, especialmente homens. Que as pessoas não lutam umas pelas outras, não, pelo contrário. É uma triste verdade. 

Esse parágrafo ficou patético, nossa. 

O que estou tentando dizer é que estamos cercados de ilusões. Conheço muitas pessoas que sonham com um amor perfeito. Homens que sonham com a namorada perfeita: bonita, simpática, safada e que necessite deles, ou do pau deles, quase como oxigênio. Esse desejo não raramente esconde apenas uma necessidade quase patológica de atenção. Ignoram os sentimentos sinceros de outrem, porque essa pessoa não corresponde as expectativas que eles criaram por causa de vídeos na internet. Não é uma acusação gratuita, pelo contrário, eu reconheço que sou cheio dessas expectativas, e que justamente elas são causa de boa parte de meu desespero constante. 

Fico chateado quando eles simplesmente vão dormir sem se despedir. Como se fôssemos namorados, com esse acordo prévio. Não somos, nem seremos. A verdade é que eles vão continuar atrás desse sonho ridículo, e no fim se contentar com uma menina medíocre, porque foi o melhor que conseguiram. E eu? Bem, não nego o amor, pois não me é ofertado. Eu sou apenas uma sombra, passando despercebido, em casa, na igreja, nas ruas. Porque ele não existe. Minhas idealizações não foram substituídas por uma realidade medíocre, não, elas foram destruídas, reduzidas a pó. 

E eles devem conversar com outras meninas enquanto escrevo sozinho. Vou ao cinema sozinho. Leio livros sozinho. Faço compras sozinho para tentar preencher esse vazio. Tomo chá sozinho. Bato punheta vendo pornô oriental sozinho. 

Bem, amanhã será outro dia, outro maldito dia. E o tempo já começa a esquentar com a chegada da primavera, o sol já desponta cedo, com seu calor infernal. Talvez durma o dia todo, sem responder ninguém, afinal... Bem, nem adiante reclamar de novo. O mais que faço não vale nada.

Vou dormir com os olhos pesados, passei o dia todo me arrastando de sono. Nem as várias xícaras de chá-preto ajudaram. Mas não é apenas o sono que pesa, também a constatação de que meu amor também não vale nada para nenhum deles.

O meu sobrinho, no entanto, dormiu no meu colo hoje. O levei para brincar no jardim da igreja, e ele ficou um bom tempo jogando as pedrinhas que ficam no caminho até a imagem de São Francisco. Uma das cenas mais lindas que já vi. Depois ele engatinhou pela igreja inteira, sorrindo por brincar sem que ninguém o segurasse. Depois que ele dormiu, completamente indefeso, mas apoiando a cabeça e as mãos no meu peito, confiante de algum modo em sua mente de criança, que o tio o protegeria, eu não consegui conter as lágrimas, que caem novamente agora. Talvez esse seja um amor que exista realmente.

“Não sofremos por amor, sofremos porque ele nos lembra que estamos irremediavelmente sós.” Fernando Pessoa (parafraseado a partir de seus fragmentos)

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Psicologia da Impotência

"Quero escapar, fugir de mim mesmo, mas é impossível" 
M, O Vampiro de Dusseldorf (1931)

Às vezes me vejo manipulado por esses impulsos incoercíveis. Sinto-me no meio de um intenso embate interno: de um lado, querer a liberdade da solitude e, do outro, o desejo constante da presença, do afeto, do carinho. Me pergunto constantemente quando deixei de receber afeto para me tornar assim tão carente, tão absolutamente dependente. 

Fui mais uma vez ao cinema, sozinho. Comprei os ingressos, a pipoca e o refrigerante. Mas a minha expressão não era de quem iria assistir ao filme que esperou por meses, mas de quem acabara de sair do enterro da mãe. Cheguei a notar alguns olhares, e sabia que meu rosto estava absolutamente fechado. Quando escrevo aqui, cada uma dessas palavras grita um impulso que não consigo conter, é o grito da fera que gritou Eu no coração do mundo, mas um Eu dividido, fendido, partido com um grande e impiedoso machado, o grito de terror de um sujeito que luta constantemente contra o que o impulsiona, a medida que esse mesmo impulso o leva a sofrimento tal que só quero lutar contra ele, vencer e aprisioná-lo no mais profundo da mente.

Continuo a odiar a maneira ele me trata, a frieza do toque, a distância da fala, a aparente relação de puro interesse... Mas, ao mesmo tempo, eu continuo desejando o corpo dele sobre o meu, o toque intenso dos nossos lábios, o pau dele dentro de mim e o meu dentro dele, sua expressão ruborizada ao gozar, entre o prazer lancinante e luxurioso e a confusão dos sentimentos descobertos e temidos. Eu quero falar o nome dele por entre gemidos, e ouvir sua respiração de desejo desesperado. Quero sentir o sei leite em minha pele, e depois em nosso lábios, transmitindo uma energia que, compartilhada entre os corpos, passa por baixo de nossa pele em chamas.

Aquela expressão bestial era então sinal não de ódio, mas reflexo de um coração e de uma personalidade dilacerada. A oposição entre essa aparência animalesca e meu comportamento normalmente delicado, atencioso, sorridente, revelam uma consciência esmagada pelo peso de ser ela mesma, sustentando esse conflito brutal. Constantemente, dia após dia, eu sou obrigado a ver no espelho, e nas vitrines por onde passei, a psicologia da impotência diante da compulsão. Enquanto por vezes eu me comporte como monstro absoluto, quando não controlo o tesão ou quando choro copiosamente ao ver a cama vazia, desvelo minha humanidade despedaçada.

Me recordo daquela cena dos minutos finais de M, O Vampiro de Dusseldorf, a confissão de Beckert com suas profundas camadas ainda são uma das mais marcantes para mim. Me coloco em lugar daquele assassino, com a diferença de que eu sou a única vítima.

Talvez me veja como um tipo de Édipo moderno, condenado por algo que não escolhi. E essa minha confissão, e tantas outras incontáveis que já fiz e que sei que ainda vou fazer, me soam como uma espécie de monólogo, no sentido shakespeariano, onde o lamento lírico revela que a dor da minha consciência é pior que qualquer consequência exterior a mim. Nenhum abraço frio, ou abraço nenhum, ou até mesmo um ato de covarde violência seria pior do que esse embate que constantemente venho travando comigo mesmo, no já devastado campo de guerra dos recessos da minha mente. Reconheço certa tensão poética no monstro que pede por compaixão ao próprio reflexo.

Constantemente me vejo diante da aporia fundamental do meu ser: a responsabilidade, individual, e o determinismo psicológico. Não busco justificar, nenhuma dessas palavras podem ser entendidas assim, mas são um clamor por uma compreensão impossível, condenado a viver entre o humano, dotado de razão e senhor de si, e do monstruoso, inumano, incapaz de me enquadrar onde quer que seja.

Quando Fritz Lang filmou sua obra-prima, a confissão é apresentada em planos fechados, com uma câmera fixa no olhar obcecado do assassino, o desespero daqueles olhos, daquela fala infantil a confessar crimes de violência extrema são de uma experiência sufocante. Olhar o meu reflexo, ou expor esse reflexo aqui, tem a capacidade de me aliviar brevemente desse sufoco em que me encontro ao examinar minha própria mente e meu coração. Por isso minha poesia, assim defino meus escritos, quase como diários de um cárcere, são um tipo de catarse psicológica, uma tragédia e uma questão filosófica insolúvel: o existencialismo é, em mim, o problema fundamental por excelência. 

Ser é a maior das dores. 

e eu sabia que mesmo as palavras mais apropriadas nunca 
resolveriam. 
eu estava sujo, sujeira, eu parecia sujeira,
eu estava sujo de sujeira suja, 
eu só queria entrar nela, 
ficar lá, eu não era nada a não ser um comedor de buceta e 
eu estava quebrado. eu não sabia soletrar, eu nem sabia 
como usar 
2 ou 3 garfos para jantar, eu não sabia nada sobre Harvard 
ou
diplomas ou 50 mil por ano, e ela sabia que tudo isso 
era verdade: eu havia sido chutado por aí por muito 
tempo, eu não sabia mais 
o caminho para cima ou para fora ou nem queria saber: eu 
estava destinado ao 
fracasso. 

(Charles Bukowski)

quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Notas amargas para uma manhã

“Aquele que tem um porquê para viver pode suportar quase qualquer como. Mas e se não houver porquê?” (Nietzsche)

Silêncio. Queria uma manhã calma e silenciosa, mas, a essa altura da vida, e olha que nem sou tão velho, mas já tenho um coração de muitas décadas e ainda mais decepções, já não acredito mais nisso. 

Lembro das intermináveis e repetitivas manhãs naquele inferno de trabalho, em que precisava escrever às pressas e torcer para conseguir fazer algo logo, antes que começassem a me fazer perguntas idiotas ou pedir coisas estúpidas que levariam dias. E com um sorriso no rosto, claro, sempre querem um sorriso. Malditos! Preso com pessoas que não sabiam o que fazer, com chefes que não deixavam fazer, e que ainda diziam zelar pelo nosso bem-estar ali, afinal éramos tão poucos que deveríamos ver aquele lugar como nossa casa, já que passávamos mais tempo ali do que em nossa casa de fato. Mas só de lembrar daquele tempo me vem náuseas. Hoje tenho nojo dessas pessoas. Sei que não é nada nobre, nem mesmo cristão da minha parte, desejar a elas um inferno de tormentos como o que me causaram.

Mas, voltando para a manhã silenciosa. Talvez eu tenha criado isso em algum delírio enquanto me entupia de remédios. Manhãs silenciosas não existem. Assim como a paz mundial, chefes que te respeitam, unicórnios e, quem sabe, o Pé Grande. Mas ainda acho possível que algumas dessas invenções da mente criativa e delirante do homem, possam ser verdadeiras em algum sentido. Me refiro, é claro, a paz mundial e unicórnios, no fim da lista, os chefes que te respeitam. A manhã silenciosa não. Por definição essa não parece ser possível de existir, senão que é algum tipo de conceito puramente mental ou verbal, algo que podemos dizer e até pensar, mas que não se concretizará. Talvez na alvorada dos tempos, quando Deus criou o universo do nada, tenha existido uma manhã silenciosa, em que ele dormiu no sétimo dia, certamente sem uso de remédios, como eu. 

Quando Van Gogh pintou a noite estrelada, ele estava em um hospital para doentes mentais, guardando na memória aquelas gravuras japonesas nas quais se inspirou, misturando a elas as diversas camadas de seus pensamentos. Alguns imbecis dizem que São Paulo tinha epilepsia, por isso ouviu a voz de Deus. Hemingway, Silvia Plath, Billie Holiday... Todos eram geniais, e doentes, e então questionam se deveriam condenar essas pessoas a mediocridade por meio de tratamentos. Pelo que me recordo, Van Gogh se matou num campo de trigo depois de pintar um quadro. Silvia Plath tinha trinta anos quando enfiou sua cabeça num forno a gás. Billie Holiday morreu por causa de uma cirrose hepática decorrente de abuso de álcool e de muitas drogas durante toda a vida. Daí a afirmação de que a normalidade não é condenação à mediocridade, mas cria tempo suficiente para a criação. É preferível ser excepcional e morto? 

Bem, não me incomodaria com isso. Principalmente dado o fato de que minha existência já é medíocre, a morte só seria um fim. Talvez encontrem nessas páginas uma dor profunda que alguém identifique-se, ou, pode ser que elas desapareçam subitamente. Milhares de páginas, nenhuma delas imortal. Todas tão passageiras quanto um longo poema escrito na praia. Já disse como me sinto um livro absurdamente longo e monótono que ninguém se aventurou ou teve paciência de ler.

Mas qual a razão desse monólogo, tão cedo numa, nada silenciosa, manhã? Bem, acho que tudo isso foi para dizer que, se a manhã não pode ser silenciosa, quem deve silenciar sou eu. E o mais que faço não vale nada! 

“A vida é uma prisão em que se espera a pena de morte.” (Fernando Pessoa)

terça-feira, 16 de setembro de 2025

Convicta Solidão

Apenas confirmei, uma vez mais, aquilo que já sabia com certeza. Acho que é próprio dos idiotas querer reforçar as próprias convicções. Com exceção de que, acredito, eu faço isso porque em algum lugar de mim há esperança de que dessa vez seja diferente. Mas não foi. Tudo aconteceu exatamente como eu esperava. Lamentavelmente eu tinha razão. A minha ausência foi perfeitamente imperceptível, exceto por aqueles que precisaram de mim. Quem o diria? E venho dizendo isso todos os dias. Apenas para constatar, pela enésima vez, a minha devida insignificância.

Mas de algum modo isso significa também a descoberta de uma liberdade. Sem precisar ir em lugares apenas para ser usado como pretexto. Se não tenho ninguém que se importe verdadeiramente comigo, não há razão para me importar de verdade com ninguém. Claro que, aquele pequeno ponto, pequenino, quase imperceptível, tão breve e fugaz quanto um piscar de olhos, brilhou em esperança, antes de desaparecer nas trevas profundas do ser. 

Me isolei de todos hoje. Mas então, depois de tudo, de perceber que sou absolutamente irrelevante, ainda me sinto culpado. A quem quero me explicar? Não há nenhuma explicação necessária. As mensagens que recebi eram todas pedidos de favores. Nenhuma, nenhuma delas preocupada comigo. O findar da vida não é um peso assim. É apenas libertação. E ainda assim eu queria correr até ele, tomar pela mão, abraçá-lo, pedir desculpas. Mesmo sabendo que, depois desse tempo, sou menos importante que qualquer menina que tenha chegado ontem na vida dele. Ou de qualquer outro. 

E então, tornei à minha casa, com a cara fechada, e vi que assustei algumas pessoas. Devo ter parecido feroz. Mas é que essas verdades ecoavam e me cortavam profundamente demais para que eu conseguisse controlar a expressão do meu rosto. Com efeito, devia ser a face de um assassino, uma fera, uma besta. E sim, me sentia capaz de extinguir toda existência, com requintes de crueldade, se me fosse dado poder para isso. O resultado seriam corpos desmembrados, vísceras espalhadas até o teto, sangue derramado como num rio, faces destruídas que amais tornariam a rir e nem sorrir. Nos crânios esmagados, apenas o terror absoluto. Coisa não muito diferente se vê no meu coração. Essa é a minha expressão: completamente esmagado, destruído em terror, num silêncio tão absoluto que não ouvia nem mesmo meus próprios pensamentos. Já não haviam mais pensamentos. Apenas a dor do vazio, vazio deixado por todos que se foram e que, um dia, eu acreditava que ficariam. 

Mas todos se foram.

E o resto é silêncio. 

Eu sabia que isso ia acontecer.  

Não importa o quanto de esperança possa haver: no fim, tudo retorna ao nada.

E tudo retorna ao nada.

"Sentia vontade de chorar, mas não saía lágrima alguma. Era só uma espécie de tristeza, de náusea, uma mistura de uma com a outra, não existe nada pior." (Charles Bukowski)

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Metafísica da Ausência

"A angústia revela o ser-no-mundo em sua totalidade." (Martin Heidegger)

Foi uma noite de fúria, é verdade, e sentia que não havia mais sangue correndo nas minhas veias, mas algo como veneno, ou lava. Sei que, depois daquela explosão, consegui respirar um pouco melhor, como se a pata pesada de uma fera fosse tirada de cima do meu peito. Essa é uma imagem comum, gosto de usar, algo nela me faz sentir familiar. As palavras sangue, veneno, fera... De algum modo refletem algo dentro em mim. Agora, no entanto, restaram apenas cinzas.

Isso porque, às vezes, a decepção com a vida, a desesperança, o olhar para o horizonte sem nenhuma perspectiva, ao invés de resignação, provoca uma onda de ira. E então um horror é liberado do peito. 

Senti raiva por parecer estar sendo usado. Odiei isso. Porque, de novo tornando a esse assunto, eu me esforço nas coisas que me proponho a fazer, e parece que querem tirar sempre proveito disso. Quando senti que ele poderia me usar para se aproximar de outras pessoas, ao invés de valorizar o que eu estava fazendo... Parece que algo se desfez. Talvez de novo um dos altares que ergui aos meus ídolos ruiu? 

Uma parte de mim acha que isso é só paranoia. Afinal, muitas das ideias que temos são minhas, mas parece, e isso eu sei que não é paranoia, que ninguém nunca olha para mim. Mas olha para frente, para outras pessoas. 

No fim, me incomodei por sentir que estava sendo usado por outra pessoa que só queria ser aceita, quando eu também faço muito do que faço apenas para ser aceito pelo meio. Um sinal bastante claro da imaturidade, de alguém que ainda não saiu da quarta camada. 

Ele não entendeu que as imagens pessimistas em alguns trechos de Bukowski que enviei eram, na verdade, analogias para algo que parece bom, mas que pode ser destrutivo se você voar perto demais, o que parece ser o desejo de todos. Não gosto do sol, nem do calor, porque isso me lembra as pessoas que amo, e todas elas, acabaram me machucando quando me aproximei demais. Como Ícaro eu fui lançado ao chão por tentar voar perto do sol. Hoje eu o vejo com desprezo. Porque há de iluminar um mundo nojento. 

Por isso eu tenho preferido ficar quieto. Meus planos de regular meu sono não se cumpriram completamente. De noite estou dormindo melhor, estou conseguindo me acalmar mais cedo e, por isso, a qualidade do sono tem sido melhor. Infelizmente, talvez pela redução abrupta dos sedativos na semana passada, eu tenha ficado demasiado sensível, e isso se refletiu num abuso dos remédios nessa semana. Seja por um motivo ou outro, acabei ficando deprimido, e isso me fez ficar doente. Não nego que me tornei dependente desses remédios, e que teria gasto três vezes mais se tivesse esse dinheiro. Qualquer quantia é válida para impedir que eu veja, que eu responda, que eu seja. 

Quero voltar a dormir. Não há um só dedo de Deus nessa existência miserável que justifique ficar acordado para ver essas desgraças. 

E a minha ausência nem sequer fez diferença. 

Não é como se eu estivesse surpreso. 

Se presente, eu sou útil. Se não estou, não faz diferença. 

Continuam cantando, rindo, sorrindo, falando das carnes das mulheres. Comigo nunca é assim. Eles não dão a mínima!

Então, se vai ser assim, diga a Maricotinha que mandei dizer que eu não tô. Nem vou. Triste, sim, mas não surpreso. Mas a tristeza não é uma novidade, é uma velha companheira. Formamos um trio: eu, a tristeza e a desesperança. 

Como se fôssemos um só.

E o resto é vazio.

" - Estou trabalhando em um poema para você.
- Um poema de amor?
- Sim, se é para você, é um poema de amor." 

"Paterson" (2016)

sábado, 13 de setembro de 2025

Elogio à Desistência

"Tenho náusea da vida, como os que têm náusea da comida só por verem comer." (Fernando Pessoa)

Expectativas demais em cima de mim. Agendar reuniões, formações, encontros de espiritualidade, fazer artes, criar campanhas, ir nas missas da minha comunidade, da comunidade vizinha, do setor inteiro... Mas hoje, hoje não tenho a menor condição de terminar esse dia. 

A psiquiatra aumentou duas das minhas medicações e tirou outra. Concordo com ela, me senti levemente melhor quando tomava um pouco mais. Mas o problema não é esse. É olhar as mensagens e ver que esperam demais de mim. Agendar reuniões, formações, encontros de espiritualidade, fazer artes, criar campanhas, ir nas missas da minha comunidade, da comunidade vizinha, do setor inteiro... É demais para mim. Esperam demais de mim, e eu? Bem, eu não sou bom assim.

E ninguém percebe e isso é normal. 

Uma amiga, anos atrás, me disse essas palavras, numa madrugada íntima, quando ela me falou sobre os abusos que recebeu na infância e início da adolescência: no fim, é você quem precisa lidar com seus problemas, sozinho, ninguém vai fazer isso, nem tampouco te ajudar. Dá seu jeito. Cada um precisa dar seu jeito. Mesmo que alguém morra, podem te desejar os pêsames e, no dia seguinte, exigirem que esteja bem. Não só os chefes imbecis fazem isso, eles também, mas, em geral, todos são assim.

Por isso, eu que disse que ia melhorar a qualidade do meu sono e diminuir os remédios, voltei a encher a cara de sedativos hoje. Porque me incomoda olhar para a janela, e ver o sol brilhando lá fora, e saber que esperam que eu seja assim: capaz de iluminar a todos, e corresponder as expectativas de todos. Mas, em verdade, a única expectativa que terei hoje é a minha própria: quero dormir.

Dormir para não ver e nem ouvir o que esperam de mim. Não quero olhar mensagens, não quero agendar reuniões, formações e encontros de espiritualidade, não quero criar campanhas, não quero sair e, acima de tudo, não quero ser usado como pretexto para tentarem conquistar meninas, as quais me enojam simplesmente pelo fato de serem mulheres. Elas sempre me roubaram os homens, e isso acho que nunca serei capaz de perdoar.

Quero dormir, e fingir que esse dia não existiu. Fingir que não senti tristeza ao ver que ele só pensa nas coisas que posso fazer, mas que não pensa em mim propriamente. Não pensa no que disse aquele dia. Mas se lembra das palavras das mulheres. Sempre elas.

Não quero mais ser feito de bobo, mesmo sabendo que a maior parte da culpa é minha. Agora não quero mais ir nos compromissos do fim de semana. Ele terá muitas meninas por lá. Aliás, a minha presença só é necessária quando eu posso ajudar a chamá-las, não é? No fim, eu sou só mais uma abominação. Nunca um amigo de verdade, tampouco um melhor amigo, como já chegaram a dizer. É que confundiram a minha vontade de querer ser bom e me aproximar, e ser amigo, com a disponibilidade para ser feito de idiota.

Eu estou cansado, cansado de agir assim, cansado mesmo. 

Cansado de ser assim, cansado de implorar assim, cansado de me humilhar assim. Cansado mesmo.

As pessoas lembram de mim quando veem algo da Igreja. Lembram de mim quando precisam de um favor. Lembram quando eu não faço o favor na hora. Lembram quando eu posso responder uma pergunta difícil com a precisão de uma Inteligência Artificial. Lembram quando eu sou útil. 

Elas só não lembram de mim.

E parece que mesmo que eu desista cem vezes, sempre algo no meu coração desperta e começa a sentir de novo. De novo. E de novo. Preso no eterno retorno de amores não correspondidos, num ciclo infernal de entrega e morte. A serpente mordendo a própria cauda. Eu sempre morro. Porque corro demais só para ver alguém. E morro. Porque nado demais. E morro. E voo demais, só para ver alguém. E eu morro. De novo.

Quero dormir, e fingir que esse dia não existiu. Quem sabe não se decepcionem comigo como fizeram no trabalho e, com isso, me descartem. Prefiro ser descartado a ser usado para algo tão baixo e estúpido quanto conquistar uma menina. Por isso hoje não tenho a menor condição de terminar esse dia. 

"A compaixão pelos homens deve ser substituída por compaixão por nós mesmos: libertar-se deles." (Nietzsche)

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

O Corvo


Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais.
“Uma visita”, eu me disse, “está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais.”

Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu’ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P’ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais –
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
Mas sem nome aqui jamais!

Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundindo força, eu ia repetindo:
“É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isto, e nada mais.”
E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
“Senhor”, eu disse, “ou senhora, de certo me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo
Tão levemente, batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi…” E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada mais.

A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais –
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse os meus ais,
Isto só e nada mais.

Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
“Por certo”, disse eu, “aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais.
Meu coração se distraia pesquisando estes sinais.
É o vento, e nada mais.”

Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um Corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nenhum momento,
Mas com ar sereno e lento pousou sobre os meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais.
E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
“Tens o aspecto tosquiado”, disse eu, “mas de nobre e ousado,
Ó velho Corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais.”
Disse o Corvo, “Nunca mais”.

Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivêssem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos seus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
Com o nome “Nunca mais”.

Mas o Corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento,
Perdido murmurei lento. “Amigos, sonhos – mortais
Todos – todos já se foram. Amanhã também te vais.”
Disse o Corvo, “Nunca mais”.

A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
“Por certo”, disse eu, “são estas suas vozes usuais.
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entorno da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp’rança de seu canto cheio de ais
Era este “Nunca mais”.
Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu’ria esta ave agoureira dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Com aquele “Nunca mais”.

Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sombras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sombras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais!

Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dêssem, cujos leves passos soam musicais.
“Maldito”, a mim disse, “deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz êsses teus ais!”
Disse o Corvo, “nunca mais”.
“Profeta”, disse eu, “profeta – ou demônio ou ave preta! –
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, e esta noite e este segredo
A esta casa de ânsia e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!”
Disse o Corvo, “Nunca mais”.

“Profeta”, disse eu, “profeta – ou demônio ou ave preta! –
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais,
Dize a esta alma entristecida, se no Éden de outra vida,
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!”
Disse o Corvo, “Nunca mais”.
“Que êsse grito nos aparte, ave ou diabo”, eu disse. “Parte!
Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!”
Disse o Corvo, “Nunca mais”.

E o Corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda,
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha dor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão mais e mais.
E a minh’alma dessa sombra que no chão há de mais e mais,
Libertar-se-á… nunca mais!

Edgar Allan Poe 
(Tradução de Fernando Pessoa)

Prelúdio do Desespero

"A esperança é o pior dos males, pois prolonga o tormento dos homens." (Friedrich Nietzsche)

Acho que, mesmo depois de tanto tempo, depois de todas as coisas que aconteceram, eu não consegui matar completamente a esperança dentro de mim. 

Será que isso é esperança? É isso que tanto chamam de esperança, que nos faz querer, de algum modo, seguir em frente e acreditar que as coisas vão dar certo?

É que, mesmo sem querer, eu me vejo de novo querendo estar envolto em um abraço, e queria que aquele meu beijo tivesse algum significado para ele, queria que ele entendesse que eu desejo a formação de um laço.

Mas me parece que todos os laços que criei, depois foram usados para me enforcar. E com esse não é diferente. Não é um laço entre nossos corações. É um laço para que eu coloque ao redor do meu pescoço, pondo um fim de vez a esse ciclo interminável de paixões não correspondidas e desespero.

Aquele beijo não significou nada para ele.

Eu não significo nada para ele.

Posso até tentar levar a conversa para outro rumo, tentar manipular as coisas de algum modo. Mas, no fim, essa é a única verdade, brutal, fria e direta: eu não significo nada para ele.

Nem para nenhum outro.

Os últimos dias foram de uma intensa euforia. A canonização de São Carlo Acutis me despertou, e eu realmente fiz muito mais do que imaginei que conseguiria, depois de quase dois meses de uma depressão terrível. 

Hoje o sol amanheceu um pouco mais brilhante. Há dias víamos apenas um céu nublado, e eu achava isso lindo. A presença de tanta luz me incomoda. Ele, por outro lado, ficou feliz com o sol. Acho que isso mostra o quanto estamos distante e incompatíveis.

Quando o sol se mostra dessa forma, dispersa as nuvens e a névoa que recobre o chão. Tudo se torna visível, o dia se torna caloroso, as pessoas mais dispostas. Eu não combino com isso. Prefiro o silêncio de uma noite onde tudo que se vê pela janela é um denso nevoeiro e um ar frio a fazer bater os ossos. Sinto que assim posso fechar os olhos e contemplar o silêncio. 

Não é como se fôssemos andar de mãos dados sob o sol e depois dormir juntos ao cair da lua. Não. 

Então é isso que chama de esperança? Querer continuar desejando, esperando, que meus esforços sejam reconhecidos? Mas o que se ganha com a esperança?

Alguma vez uma guerra se venceu porque o povo tinha esperança? Na verdade, a esperança só fazia com que aqueles pobres durassem mais em meio aos horrores. E desde quando sobreviver as desgraças é uma coisa boa? Não vejo nisso senão causa de desespero. Sim, o desespero é o único filho da esperança. Um homem magro das guerras, fome e tantos terrores que teve de enfrentar. Um homem que já não carrega luz nos olhos, senão uma lembrança opaca e sem vida. Seus passos arrastam pés sangrentos, suas mãos trituradas não seguram mais nada. 

"A esperança é a lua brilhante da desilusão, iluminando o caminho até a queda." (Cioran)

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Artéria


"É no beijo recusado que o amor se prova." (Marguerite Duras)

Em uma manhã fria
enquanto minhas mãos tremiam
não era pela chuva que caía
que meus ossos quase se partiram

porque à distância de uns passos
eu poderia me entregar bem mais 
do que um simples abraço
ao fim daquela cantoria

os sorriso ecoavam pela capela
e uma fraca luz pelas janelas
mas em contrário
meu coração ardia

e eu sabia que não podia
permitir que vissem ou sentissem,
que entre sorrisos e aclamações
meu coração se abrisse

ainda assim, movido por força
que eu não podia resistir
venci àquela distância
de poucos passos

para então me deparar com a 
distância invencível.
E mesmo assim, 
diante do impossível

abracei aquele corpo branco
no meio de um enorme sorriso
e num amplexo amado
um beijo apaixonado

ao pescoço lhe foi dado
tocando brevemente meus lábios
por aquela artéria onde
seu sangue passava.

Pergunto eu
no silêncio do meu coração,
se ao separarmos os nossos braços
os sentimentos que imprimi

em meus lábios
e que toquei sua pele
se teriam chegado pelo sangue
ao coração dele.

No entanto, é com aquela normal
tristeza e repugnância
que eu enfrento a cruel dureza
da verdade daquele instante.

Mesmo que não tenha demonstrado
para além da indiferença
a única coisa que ele pode ter sentido,
foi uma contida repugnância.

"E o que em mim sente está pensando." (Cecília Meireles)