“Eros nasceu do Caos, mas dele também nasce a Morte: é sempre do desejo que brota a mais funda exaustão.” (livremente inspirado na Teogonia de Hesíodo)
Hoje eu só quero morrer. Apenas. E estou escrevendo aqui porque sim. Mas não acho que hoje vai adiantar alguma coisa. Na verdade, nunca adianta. Eu só vou empurrando, dia após dia. Mas não aguento mais. Não aguento mais esperar e ser feito de idiota. Não aguento mais essa maldita esperança que fez querer, que me faz desejar e então me deparar, como um grande quadro numa exposição, com a verdade diante de mim.
É mais uma sexta, mais uma maldita sexta! E mais uma vez sozinho, e descubro que, enquanto me lamentava pelo nosso afastamento, ele procurava meninas. Enquanto não tinha tempo para conversar comigo, tinha para sair com elas. Nos últimos dias e meses, enquanto dizia que não tinha tempo pra mim devido aos numerosos afazeres, a verdade era essa. Sempre foi, e eu já devia saber, só fingia que não via. É, mais uma vez, a verdade. Eu mais uma vez feito de idiota.
Idiota.
Idiota.
Idiota.
Hoje eu só queria morrer. Apenas. Eu só queria isso. Eu não quero mais tentar. Eu não quero mais um amanhecer. Não quero mais. Eu não aguento mais. Eu não quero mais ser assim. E ele ainda reclamou que não dei parabéns de um jeito que todos poderiam ver no seu aniversário. Com que objetivo? Para ter assunto para rir com elas? Olha só aquele idiota, diz a todos que me ama, mas eu estou aqui com vocês. Sim eu sou realmente patético.
Minha mãe percebeu que algo não estaca certo, e ficou me rodeando, até que eu disse com voz embargada que, naquela noite, tudo o que eu queria era finalmente o doce abraço da morte que, ao me envolver em seu manto negro como a noite mais escura, poderia então fechar os olhos para o silêncio do eterno não-ser.
Sim eu sei que essa é uma reação exagerada. Mas em dois meses ele vem para cá, e por quê? Porque pra ele é fácil passar alguns dias com um amigo, afinal ele não me vê como nada além disso. Um amigo, um banco de respostas.
Mas eu mudei. Minha memória já não é mais a mesma. Eu sou como uma espécie de fantasma, pairando, mas sem materialidade algum. O que eu sabia se desfez, como pó. Assim como o sentimento, que ele esmagou com as mãos e jogou fora. Já não tenho mais valor.
E então eu esperei até que meu corpo pesasse de sono por causa de sei lá quantos remédios eu tomei, e acabei dormindo. Acordei duas vezes, numa delas eu gritava, porque minha mãe entrou no quarto às pressas. Mas não me lembro o que sonhava. Do segundo já me lembro um pouco mais.
Estávamos no velório do meu avô, que acontecia numa espécie de hotel fazenda. O velório acontecendo ao centro, depois de uma longa escada, e a família dormia nos bangalôs ao redor. Não me lembro com qual primo estava mas parecia divertido, e ninguém estava realmente triste. O que pairava no ar era apenas aquela austeridade típica dos velórios em que dizemos "meus pêsames" sem parar, mesmo enquanto entregamos aos convivas alguma tigela de sorvete de chocolate superfaturado, pagos por uma prima que ficou rica ao se casar com um europeu e fez questão de ficar todo o tempo ao lado da família, em partes para jogar na cara do ex que estava bem melhor do que ele, que não sai da academia, não malha pernas e nem consegue correr dos sinais da velhice que dizem que ele já não é mais tão bonito assim. e não é mesmo.
Talvez tenha sonhado com isso por passar tanto tempo com a morbidez em mente. Eu não apenas pensava em me matar, mas as minhas lágrimas haviam secado e eu sabia que a única coisa que eu podia fazer era levantar e tomar todos os remédios que tinha. E misturar com energético e, quem sabe, isso explodiria dentro de mim. Tudo que eu não queria era acordar na manhã seguinte.
Mas acordei. Droga!
Para mais um dia terrível. E hoje também eu só quero morrer e não pensar em mais nada. Não são nem nove da manhã e já tomei remédio o bastante para, espero, me fazer dormir até parte da tarde. Já deixei separado também mais alguns para quando acordar. Sei que isso não resolve o problema, e acredito que poderia ser resolvido se eu aceitasse a verdade. Mas não simplesmente aceitasse. A aceitação aqui é aquela radical: eu devo deixar para trás tudo isso, pois não há possibilidade de mudança, e seguir em frente, seja trabalhando ou estudando, mas sem buscar nenhuma companhia. Aceitando que meu destino é, sim, o da solidão, total, completa, absoluta.
Eu achava que nossa conexão era real. Achava que os sentimentos fossem reais. Que ele só tinha medo de dizer em voz alta o que sentia. Mas não. Quem tinha medo de encarar a realidade era eu. A realidade de que o silêncio dos últimos meses não era apenas cansaço, mas era o sinal de um interesse cujo eixo se deslocara. Como sempre eu fui um substituto, tapa-buraco, conversar comigo era bom enquanto não houvesse uma mulher para isso. Uma mulher!
Sempre elas, sempre elas!
Malditas!
Quisesse poder esmagar cada uma delas debaixo de meus pés.
Mas, mesmo com esse rompante de fúria, eu entendo a verdade. Ele não me contou porque temia justamente que eu ficasse bravo, como agora. De que adiantou de me fazer de idiota? Será que eu sou assim tão descartável que ele pode até vir me visitar, do outro lado do país, e não sentir nada?
Me senti como se levasse um golpe violento. Aquelas palavras, ditas de modo tão simples, são, na verdade, um poderoso martelo do destino a me quebrar os ossos. Quantas vezes eu lutei, perdoei, implorei, não só a ele mas tantos outros? E agora eu já não tenho mais forças. O último golpe foi o derradeiro: um homem incapaz de se levantar cuja única ação será seu último suspiro, um suspiro de um amor não correspondido.
A violência desse golpe vem justamente do fato de ter sido dado por alguém de confiança. Mas é sempre assim. E ele ao menos se importa em saber como me sentiria? Deve ter pensado "ele já é um homem, deve se virar sozinho."
Malditos, todos eles.
E os médicos, minha mãe, conhecidos, dizem que eu não devo me matar? Como não me matar? Querem que eu prolongue essa existência miserável? Quantas vezes mais eu deverei me sentir assim? Traído, sem valor, sem outra razão de ser a não ser a da constante traição.
Todos eles sempre me trocam pelas mulheres.
Eu já não quero amigos. Eles também me trocam, por outros amigos ou mulheres. Sempre elas.
Além dos remédios para dormir, engoli um vidro de antialérgico. Isso não é, nem de longe, o suficiente para me matar, mas talvez me deixe um pouco grogue. Sem ver nada. Não que se morresse fosse algo ruim, claro. Afinal, eu não entendo o motivo de tantas pessoas não quererem que eu me matem. Quem que eu continue sendo vítima de meus próprios sentimentos.
Não quero conversar. Não tenho dinheiro. Não vou conseguir morar sozinho, e me dedicar a escrever, como se isso me desse um centavo sequer! Não vou nem mesmo aproveitar a promoção daquela loja que gosto. Não vou pagar as dívidas do cartão que tenho. Não vou ter dinheiro para nada na viagem de novembro.
Os médicos, quando realizarem a minha autopsia, colocarão a desilusão como causa. E constatarão o grande coração que um dia eu tive, vísceras repletas de sentimentos um dia estiveram ali. Pelo estômago passaram muitas poesias. Mas agora tudo está vazio.
Por fim, me sinto sozinho, mais uma vez.
É a minha única sensação antes do último suspiro.
"Ah, não há saudades mais dolorosas do que as das coisas que nunca foram." (Fernando Pessoa)