quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

O pó e o querubim

Torno a falar dessa figura simples e, ao mesmo tempo, estranhamente fria e angelical que passou por mim várias e várias vezes nessa manhã de quarta-feira de cinzas e pareceu não notar a minha presença. Ou melhor fingiu não notar, porque eu percebi bem o seu olhar se demorar junto ao meu por um átimo de segundo a mais do que o normal. Sabe quando o olhar passa diretamente e, por instante quase imperceptível ele se detém num ponto conhecido, familiar? Foi assim comigo mas, enquanto eu me detinha propositalmente, ele tentava me reconhecer (pois acho que é a primeira vez que ele me vê de cabelo curto) ou tentava chegar a uma conclusão sobre mim: se sou amigo ou um perigo. E acredito que ele nem mesmo tenha se dado conta de ter feito isso, foi mais como um pequeno deslize do olhar enquanto a mente processava rapidamente o que a minha presença significava.

E então eu senti aquela frialdade do seu olhar que passou diretamente por mim. Mas, ao mesmo tempo, eu segui a sua figura doce e sobrenatural, andar em passos lentos pelo presbitério, entre hosanas e améns. O cavanhaque se destacava mas, embora ele seja um rapaz novo, algo nele me sugere realmente a presença de um anjo, como se um querubim caminhasse por entre os bancos da igreja e, ao passar por mim, enxergasse todos os pensamentos impuros que eu tenho ao vê-lo.

Talvez seja justamente por isso que eu sinta essa aflição toda vez que o vejo. Me lembro de quanto toquei delicadamente seu braço no ônibus para lhe indicar um lugar ou quando pus a mão ao seu redor para impedir que caísse enquanto procurava por algo na mochila, ou ainda quando ele me cumprimentou pela primeira vez, tímido e sonolento, sério, como quem não deveria falar com um pecador como eu a não ser para lhe purificar os lábios com brasas acesas, e assim como brasa meu coração se inflamou em sua presença. E ele me lançou um olhar desconfiado enquanto abraçava uma de suas conhecidas à porta da matriz. 

Mas eu não posso deixar de esquecer que estamos agora na quarta-feira de cinzas, e eu deveria usar dessa presença para me inspirar a ser melhor e tentar realmente purificar meu olhar de todas essas imagens absurdas. Muito embora eu admita que, exceto naquelas emergências noturnas onde ele aparece com razoável frequência, os meus pensamentos que o envolvem são puros. Claro que a segunda afirmação já contradiz a primeira mas essa tensão é também parte do que sinto. 

Há então essa batalha dentro de mim: de um lado a batalha pela pureza, que há muito parece perdida e, de outro, os pensamentos que fazem os anjos quererem me transpassar com uma espada de fogo. De todo modo isso culmina num Eu que olha o mundo com profundo desencanto pois, de um jeito ou de outro, eu me vejo sozinho e sendo motivo de zombaria, desprezo e nojo daqueles que eu admiro. Talvez a grande espada de fogo seja meu único futuro. 

E quem também me olha com desprezo é meu próprio reflexo. Ao ver a minha pequenez e ter a certeza da minha condenação como alma solitária eu deveria aceitar esse destino, e abraçar como cruz. Mas eu ainda nutro esperanças, mesmo disfarçadas e perdidas por entre as linhas niilistas do meu lirismo, e essa esperança é que me faz olhar o outro. Se eu realmente soubesse meu lugar, soubesse e estivesse sempre consciente da minha condição de pó que ao pó há de voltar, eu nem sequer me atreveria a olhar para qualquer outra coisa além da cruz de Cristo.

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