quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

A Personalidade Burocrática

Basta olhar ao redor para as pessoas que vão e voltam do trabalho todos os dias e nas fotos que elas postam na internet para perceber que as suas vidas se dividem em duas metades conflitantes e inconciliáveis entre si, muito embora sua existência seja totalmente baseada nessa conciliação. Acontece o seguinte: a pessoa média acorda cedo, coloca o uniforme e pega o ônibus até chegar ao trabalho onde, pelas próximas sete ou oito horas, vai cuidar de documentos, vender produtos, emitir documentos e ser parte integrante de uma imensa burocracia estatal, seja por meio de impostos, por prestação de serviços ou toda sorte de trabalhos executados. Depois disso ela sai dali e, da noite de sexta até o domingo ela usa toda sua energia para recuperar-se do seu cansaço, beber cerveja e sair com os amigos. Até aí nada parece errado, no entanto, ao olhar mais de perto há um problema profundo que vem destruindo a personalidade de nossa gente. 

Durante boa parte da Idade Média, e também antes disso no mundo grego do Helenismo, a educação significava uma formação integral do ser humano. Formava-se o homem para a vida de virtude que, por consequência mas sem ser o centro de sua ação, formava profissionais capazes. Era então o homem de virtude que tornava-se o bom político, o bom empreiteiro, o bom filósofo. Isso foi muito bem descrito no livro de Stephen Jaeger, A Inveja dos Anjos, que assim a define: 

Antes do surgimento das universidades, a máxima das escolas catedrais do século XI era formar os alunos nas “letras e costumes”, ou seja, aperfeiçoar neles não só o conhecimento teórico, mas sobretudo a postura, os modos e a eloquência. Muitos foram os jovens que ingressaram nessas escolas para de lá ressurgirem como grandes bispos, conselheiros reais, santos e beatos. Com frequência referiam-se a esses centros de ensino como “uma segunda Atenas”, “uma segunda Roma”; os mestres eram chamados de “nosso Platão”, “nosso Sócrates”, “um segundo Cícero”. Seu princípio fundamental era que a verdade se expressa na personalidade humana, em sua conduta, em seu porte, e sua pedagogia se baseava na irradiação, a partir da presença física do mestre, de uma virtude transformadora. Tão maravilhosa é essa força que os próprios anjos poderiam invejar dos homens esse magnífico dom.

Um pouco mais tarde, quando as universidade, a começar dos estatutos da Universidade de Paris, passaram a criar planos de carreira para os intelectuais o objetivo da formação se deslocou da integralidade da vida para a formação profissional de algum modo. O objetivo era agora formar um bom advogado, um bom teólogo e não mais um bom homem que era também teólogo ou advogado. 

Os anos se passaram e nem mais se busca a formação de um bom profissional, apenas que ela consiga desempenhar com o mínimo de eficiência tal ou qual profissão sem nenhum conhecimento mais profundo daquilo e muito menos sem nenhuma preocupação com a virtude desse homem. Não é preciso prestar muita atenção que isso é uma forma muito diminuída de existência. E se você não consegue perceber isso como algo óbvio é porque já se perverteu a ponto de acreditar nesse sistema. 

Por isso hoje observamos as pessoas que só existem realmente após o expediente, é ali que seus valores são demonstrados, ou a ausência deles, e que ele assume ter sentimentos, sonhos, enfim, toda sorte de experiências humanas. Durante todo o tempo ele vive uma existência diminuída, oficial, burocrática, que se resume a assinaturas e carimbos. Isso é obviamente um modo de vida psicótico, a vida real das pessoas só começa após bater o ponto. A vida de virtude é coisa que se encontra apenas em livros que ninguém lê e em altares que ninguém mais rodeia. 

O homem se tornou uma versão muito diminuída de si mesmo, dividido demais para ser uma unidade, e o progresso da tecnologia e a exatidão dos processos burocráticos e científicos da a ideia de que o homem evoluiu, quando evidentemente tem existido muito aquém do que poderia ser. A formação é apenas profissional, no sentido mais baixo desse termo, e homens de verdade são raros e, quando existem, tachados de loucos por não compactuarem com a loucura da normalidade burocrática que diz que um pedaço de papel dizendo que você existe é mais importante do que a sua própria presença, como o falecido Matias Pascal de Pirandello. 

Muitas vezes vejo como isso afeta a mim mesmo. Nesses dias de férias de verão eu tenho deixado a barba crescer e não tenho feito depilação e nem a sobrancelha, tudo isso com a desculpa de que, quando voltar ao trabalho terei de obrigatoriamente fazer isso e, como dá trabalho, eu prefiro deixar as coisas como estão. É um exemplo claro disso: posso sair e ir a missa assim mas para o trabalho, para a vida oficial, eu devo me preparar previamente, quando a ação deveria ser absolutamente em contrário, eu deveria reservar o meu cuidado sempre, independentemente da vida real ou oficial, porque em verdade essa divisão não existe, é tudo a vida real. Por isso quando eu estudo, eu não estou me refugiando num plano intelectual e depois fecho o livro e vou atender, não, mas o que eu aprendi ali serve pra usar no meu atendimento, serve pra forma como vou me comportar no ônibus ao voltar pra casa, serve ao sair para beber e serve para pensar antes de dormir.

As pessoas prostituem a sua consciência pela aceitação pelo meio, os absurdos vistos ao seu redor não ecoam em seus valores, apenas passam a corrompem cada vez mais, enquanto essa divisão quebra a personalidade e reduz os homens a máquinas de trabalho, que não pensam, não se revoltam e apenas vivem em busca de dinheiro para dar continuidade a uma vida em busca de mais dinheiro, nunca encontrando um término desse ciclo infernal.

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