quinta-feira, 16 de março de 2023

Corte de Cabelo

Foi só um corte de cabelo, e eu sei bem disso, porque gosto de mudar às vezes e, como estava com preguiça de ir a um cabelereiro eu fiz isso sozinho. Por falta de habilidade só tinha duas opções: deixar como estava ou cortar tudo, e então cortei tudo. Mas admito que já há algum tempo estava descontente com ele, embora estivesse bonito, eu estava parecendo com um personagem da Grande Família, e o fato de estar gordinho só deixava isso mais verossímil. 

E não é que eu desgoste do meu cabelo curto. Bem, a verdade é que, enquanto cortava o cabelo no banheiro quente, com o suor fazendo os fios compridos ficarem grudados no meu pescoço e na minha testa brilhante, eu pensava justamente que, no meu caso, não adianta o cabelo longo ou curto, liso ou ondulado. Não adianta a pele brilhante ou ressecada. De nada adianta lábios cheios e vermelhos. Primeiro porque trata-se de uma realidade tão mutável que o próprio fato de eu conseguir mudar muito dela em pouco mais de trinta minutos sozinhos já mostra que nada que eu vejo no espelho é durável, tanto mais o que farão os anos comigo, incluindo os anos embaixo da terra, sendo devorado pelos vermes da terra. 

Outro pensamento que me veio foi o de que, também repetindo o que disse antes, não adianta o cabelo longo ou curto, não adianta a pele brilhante ou ressecada, de nada adianta lábios cheios e vermelhos, se nada disso é capaz de fazer alguém se aproximar de mim. E então eu retorno aquela ideia, não sem fundamento na minha própria experiência, de que há em mim uma imperfeição fundamental, algo que todos veem e que apenas eu não consigo dizer o que é. No trabalho, na igreja, em todos os lugares que já passei, as pessoas dizem o quanto é fácil se aproximar de mim, o quanto é agradável conversar comigo, que eu sou calmo e tenho a voz doce, que eu explico bem ao que elas me perguntam. Mas mesmo assim é aí que tudo termina, elas se sentem bem ao me ouvir mas ninguém quer se aproximar de mim realmente. No fim eu me torno amigo de todos mas continuo sozinho porque, quando preciso, não há o peito de um amor onde eu possa repousar a cabeça. 

Sou um observador da felicidade dos outros. E não raramente eu vejo o coeficiente de falsidade nessa alegria, mas mesmo assim eu ainda queria poder ser feliz. 

X

Eu sei que você não me julgou por aquela foto, mas ela me fez perceber a minha vaidade e a minha necessidade de aprovação e admiração do outro. Não é difícil de perceber que eu vivo da atenção das outras pessoas e estou tentando conseguir isso de diversos modos. Muitas vezes eu vivo da compaixão e outras eu quero que elas me notem, talvez como notam aqueles rapazes que eu admiro, como eu os noto e, no fundo, eu desejo ser como eles, alguém a quem os outros admiram e desejam. Isso porque, a bem da verdade, eu me odeio, e odeio todos os meus aspectos desde os mais objetivos até aqueles mais desconhecidos porque, para onde quer que eu olhe dentro de mim, só vejo essa vaidade esse grande vazio que deseja o outro, a ponto mesmo de decepcionar quem mais eu amo justamente na tentativa de ganhar alguma atenção. Os humanos são mesmo criaturas patéticas. 

X

E eu que estou com a intensidade de dez romeus prefiro ficar quieto. Eu já não quero mais dizer nada. Não quero me incomodar com a falta de organização da casa, afinal eu nem moro lá direito apenas volto para dormir, e também não quero falar de como me incomoda saber que você procura por uma moça para se apaixonar enquanto eu te dou meu amor por inteiro. Eu vou guardar isso para mim, vou dormir silenciosamente e na minha alcova apenas as fronhas conhecerão as minhas lágrimas. 

Toda essa intensidade me faz triste, e eu sei que deixo você triste, e eu fico triste por você ficar triste e isso nunca acaba. 

Em dias assim eu realmente queria não sentir nada, ser apenas frio e viver por trás de um muro. E é irônico que eu, que tanto amaldiçoei os muros e as barreiras que separam as pessoas, agora deseje uma barreira para me proteger. 

Eu só queria não ser tão intenso, não me consumir tanto, não desejar tanto a ponto de ser reduzido a cinzas pelas chamas dos meus sentimentos. 

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