quarta-feira, 29 de março de 2023

Linguagem e personalidade

Você deve ter estranhado o fato de eu insistir com você para dizer aquelas palavras, e eu sei que deve ter te deixado meio desconfortável porque você não costuma usar expressões mais chulas mesmo, mas isso foi com um propósito. 

Primeiramente a forma como nós escolhemos as palavras reflete e constrói a nossa própria imagem. Ela é parte daquilo que mostramos ao outro bem com parte da forma como nós mesmos nos enxergamos. Isso é facilmente perceptível quando notamos que falamos com carinho das coisas que gostamos, ou com o desprezo que falamos das coisas que não gostamos. Ao falar de um livro ou música que nos agrada deixamos transparecer aquela admiração na candura com que expressamos as qualidades do músico ou autor. Em essência a linguagem é, dentre outras coisas, uma forma de traduzir as nossas impressões aos outros. 

Pessoas com mais limitação na linguagem encontram grande dificuldade de expressar o que se passa no nosso interior. Quantas pessoas não sofrem apenas com as situações de dificuldade em si mas também com o fato de não conseguirem dizer o que sentem, o que gera um fluxo de pensamentos que acabam transbordando em rompantes de raiva ou sendo internalizados em complexos aglutinados de problemas que, se ditos, ordenariam o pensamento de modo a tornar a pessoa mais consciente do que ela sente, do que se passa com ela e do que ela pode fazer, quais os limites de sua ação. 

Essa limitação na linguagem então se converte numa limitação do pensamento que acaba retroagindo sobre a própria linguagem, reduzindo o homem a um estado diminuído, muito aquém do que deveria ser. 

O domínio de diversas linguagem amplia o horizonte do homem justamente por permitir que ele expresse a mesma coisa de formas distintas de modo a aproximar cada vez mais a palavra do seu universo interior. Toda operação da linguagem é na verdade uma equação entre o mundo exterior e o universo interior e, ambos, formam a realidade, aquilo que se apresenta ao homem independente e fora de si mesmo e que, no entanto, influi sobre o que depende dele e que é transformado no seu interior.

É certo então que o homem deve buscar sempre a melhor forma de se expressar para, assim, afinar sua percepção com sua linguagem. Devemos buscar sempre novas formas de expressão, desde as mais baixas até as mais elevadas que estejam alinhadas com a realidade. Funciona mais ou menos assim: ao ler Shakeaspeare a gente se depara com expressões elevadíssimas de amor, ciúmes, traição, enfim, experiências humanas diversas e expressas com o máximo da linguagem poética. Com um Bukowski a gente já tem a ideia de como tratar experiências mais baixas, ainda que por vezes sejam as mesmas, como o tédio da vida, a falta de senso de futuro ou simplesmente um foda numa noite quente ou uma noite quente em que alguém queria uma foda. Um Dante já eleva ainda mais tanto a experiência quanto a linguagem por tratar de uma realidade muito mais elevada: na Divina Comédia o trajeto da alma humana desce ao inferno e sobe as últimas alturas dos céus tendo contato com o destino não apenas humano e imediato mas eterno, o que muda completamente a perspectiva sobre tudo.

Daí a importância de conseguir transitar por todas as linguagens. O homem limitado pelo chulo não consegue expressar nada de elevado e, logo, não consegue perceber quando tem contato com algo mais elevado e nem mesmo conceber que possa haver algo mais elevado. Do mesmo modo o homem que só se expressa de modo rebuscado ou sério demais acaba por se tornar pedante, demasiado forçado, o que também mina o caráter real da expressão. 

Por isso Olavo de Carvalho é um exemplo de nossos tempos de alguém que sabe transitar pelas linguagens e discursos. Numa mesma aula ele sabe tratar de acontecimentos sérios e de realidade eternas com o vocabulário de Alborghetti, traduzindo de modo a tornar mais compreensível mas, na frase seguinte, tratando da mesma realidade com a fineza de Santo Tomás lhe dando a devida seriedade da coisa. 

Eu, por outro lado, trago muito da poética mística de São João da Cruz ao mesmo tempo do pensamento niilista de Bukowski o que é, sem sombra de dúvidas, uma combinação inesperada, mas é a tensão que, no momento, move o meu espírito. E algo disso também tem a ver com nossa relação com o outro: seja a seriedade ou a postura mais brincalhona, muito disso também há na linguagem. É difícil encontrar pessoas que consigam transitar de um a outro extremo. Muitos ficam no extremo da baixeza moral e só sabem falar de suas experiência sexuais, mas o homem que só sabe raciocinar do alto edifício de seu universo semântico intelectual padece das mesmas limitações. 

É certo que o crescimento da linguagem é linearmente desenvolvimento com a conquista de novas línguas e incorporação delas no imaginário, mas a aceitação e uso dessas línguas é que revela um verdadeiro domínio da faculdade humana da comunicação e, principalmente, do conhecimento. Esse domínio se revela na força daqueles que o possuem: mais uma vez Olavo de Carvalho é um exemplo atual de poder incomparável. Basta lembrar das centenas de pessoas que, no meio das multidões que manifestavam, seguravam cartazes dizendo "Olavo tem razão!", além disso a história é repleta de homens assim.

Em Coração das Trevas, Conrad constrói Mr. Kurtz apenas com a força de sua palavra, ele se torna o princípio ordenador do caos da selva do Rio Congo e da própria Inglaterra para o narrador apenas com a potência das histórias que contam sobre ele e como ele construiu seu legado em terras africanas. Mesmo sem tê-lo visto uma vez sequer o narrador já trazia por Kurtz uma lealdade quase devota que realmente terminou num tipo de admiração devota, e a voz dele se marcou profundamente na alma daqueles que se lembram dele, ficando então para sempre. A impetuosidade com que ele conduziu os negócios da companhia são implacáveis e se gravaram nas areias tórridas daquela selva envolta em escuridão.

É preciso saber falar, e por isso eu terminei dizendo que a linguagem liberta, porque torna o seu espírito livre para dizer que sim, ele deseja viver em união com Deus do mais profundo de sua alma com toda a sua força, quer seja para demonstrar a existência necessária do primeiro motor imóvel, para explicar um argumento ontológico, ou quer a intensidade de um amor como o de Romeu ou que simplesmente, por cansaço e fadiga depois de um dia longo de trabalho e enchimento de saco, dizer que eu quero mais que tudo se exploda e meu pau cresça!

Nenhum comentário:

Postar um comentário