quarta-feira, 30 de abril de 2025

Aforismos

"Arrancamos tanto de nós mesmos para nos curarmos mais rapidamente, que estamos esgotados aos 30 anos, e temos menos a oferecer sempre que começamos com alguém novo. Mas se obrigar a ser insensível só para não sentir nada? Que desperdício!" (Call Me By Your Name)

A cada vez que algo dava errado com alguém, uma parte de mim se ia, uma parte grande. Sempre me referia a isso como um derramamento, como Ganimedes derramando o néctar dos deuses, mas ao chão, num pires, e não nas taças divinas onde ele deveria ser depositado. Algumas pessoas levaram tanto de mim, e largaram na próxima esquina. E não consegui recuperar. E parece que agora não sobrou muito para oferecer a mais ninguém. Mas me forçar a ser insensível para não me machucar de novo parece desperdício, eu sei disso, mas ainda acho que é o certo a se fazer, ou melhor, que é a única coisa que eu posso fazer. Sei bem que derramei o meu amor, o meu néctar, no concreto frio.

Um desperdício. Concordo. Mas não farei nada. Sem mensagens, sem sorrisos, sem investimentos. Afinal, esgotado aos trinta, eu não tenho nada a oferecer, e constato isso com uma mente perturbada e um corpo em total desequilíbrio.

X

O dinheiro tem estado ainda mais escasso nos últimos dias, o que é um eufemismo para dizer que estamos contando trocados para comprar leite e fraldas. Sendo sincero isso nem me preocupa tanto, eu só não quero ficar sem meus remédios, mas até eles começaram a faltar, e estou adaptando para conseguir dormir, um pouco que seja.

Não sei como consegui assistir a essa série, pois fala das pessoas que, graças ao que tenho hoje, são as que mais desprezo: pessoas que colocam o lucro e o status social acima de qualquer outra coisa, incluindo o valor inalienável da vida do outro. São as pessoas mais baixas e vis, e talvez as que mais precisem da misericórdia divina, já que não a reconhecem. 

Me lembra aquela CEO de ThamePo, que também em si representa tudo eu mais desprezo: em nome dos lucros ela separou os amigos, fez o Thame ser odiado, sacrificou o Pepper porque o Thame era mais lucrativo, separou o grupo quando eles tinham finalmente voltado e, por fim, quando viu que não tinha mais saída, descartou até o nome. Pelo lucro tudo é válido. Nojo.

Posição. Por alguma razão é algo levado em demasiada importância. Observo aqui não resquícios, mas uma consequência direta do puritanismo protestante e da moral kantiana. Todos temos que encarnar uma nova mulher de César, porque parecer imoral é pior do que ser imoral. Antes ser imoral e parecer perfeitamente conforme as regras da sociedade do que ser abertamente aquilo que se é. Ser real. O homem fragmentou-se de tal que já nem ele mesmo se reconhece.

X

Durante a Quaresma o Frei Gilson, sacerdote do Instituto Hesed (que tanto admiro pela profunda espiritualidade de suas fundadoras), foi criticado por certo exagero penitencial ao propor uma jornada de quarenta dias rezando o Santo Rosário de madrugada, como, pasmem, sempre fizeram não apenas os santos, mas todos os fiéis razoavelmente devotos se preparando para a Páscoa. Ele apenas fez o que deveria ser absolutamente normal, mas o normal hoje é extremismo e o extremismo da lógica do absurdo é o normal. Mas se esse homem conseguiu colocar o Pe. Júlio Lancellotti (sic!) num hábito religioso e dizer algumas palavras sem conter aqueles jargões estúpidos de justiça social, fraternidade ecológica e tutti quanti, ele já tem meu apoio incondicional e, mais importante, minhas parcas orações. 

X

Dois amigos conversam. O primeiro, visitando a casa da família do outro. Rico, só fala com a mãe por telefone e tudo que ela tem a oferecer como amor são os funcionários que o servem. O outro, o recebe com os pais sorridentes. A mãe prepara uma sopa de algas, prato simples. Serve sorridente enquanto o pai faz piadas sobre o filho no colégio. Ao levar a primeira colherada a boca ele sente algo diferente. Em sua casa tem à sua disposição cozinheiros que já trabalharam nos mais renomados restaurantes do mundo, mas aquela simples sopa é melhor do que qualquer uma que ele já provara. 

- É uma simples sopa de algas, mas por que o sabor é tão bom?

- Como assim? Tem a sua disposição os melhores chefs do mundo, tem algo que eles não consigam fazer?

- Tem, algo como isso. Como posso dizer... Tem um sabor quentinho. 

- Então é só vir aqui em casa mais vezes. 

Realmente, era um sabor quentinho, que ele nunca experimentara antes. 

(Hierarchy)

X

“Depois de tudo, no vazio
da manhã inabitável,
ajuda-me a negar
este remorso:
eu só queria uma canção
que não morresse
e a hipótese de um poema
que não fosse
o lugar onde me encontro
uma vez mais,
sem desculpa, sem remédio,
diante de mim mesmo.”

(Rui Pires Cabral)

segunda-feira, 28 de abril de 2025

O Despertar de Sísifo

Seus olhos e o calor de suas mãos eram tão puros. Acho que um dia, tanto tempo atrás que já nem sei dizer quando, eu era assim, e conheci alguém que também era. O abraço era apertado, como devem ser todos os abraços, envolvendo e fazendo tocar os corações. O calor era transmitido de um a outro, uma ligação. Olhavam-se próximos, mas entendiam o significado na profundidade oceânica daquelas pupilas? Entendiam o que significavam cada um daqueles toques? Mas isso foi há muito tempo, na plenitude de uma antiga sociedade que já não existe mais. Quando o sol poente refletia-se no mar, criando uma miríade de cores, do laranja intenso, o amarelo doce, e um azul-claro que aos poucos ia tornando-se escuro a medida que ia adentrando a noite. A brisa que soprava trazia consigo poesias, o farfalhar das árvores cantava. Mas do que estou falando? Foram apenas devaneios de uma dopada candura. Na verdade, cada olhar foi apenas um olhar, ninguém viu o que estava por baixo da superfície daquela fonte cristalina, cada toque foi apenas toque, ninguém seguiu aquela energia até o coração do outro. No fundo, nunca se encontraram de verdade, embora estivessem sempre próximos. Nunca existiu tal coisa. A única verdade é que sim, seus olhos e o calor de suas mãos eram tão puros, e acho que um dia eu também já fui assim.

Tento reproduzir essa dopada, sei que não vou conseguir a não ser que aumente e muito a dose, o que talvez eu faça. Hoje tem uma série que quero muito assistir por ser do tipo confort, o que me faz muito bem. Talvez eu devesse fazer pipoca. É, acho que é uma boa ideia, dormir boa parte do dia e depois assistir. Gosto disso. O Chokun é um ator lindo de fofo, com um corpo enorme, é o tipo de coisa que me anima. Vou terminar essa caneca de chá de gengibre, mel e cúrcuma e ir pra cama.

Eu tentei, a todo custo, não me dopar mais um dia. Tentei mesmo. Pela manhã, a forte alergia me fez dormir por conta dos remédios, mas eu melhorei, e vislumbrei um dia inteiro pela frente. Um dia lindo, fresco, meio nublado, mas não escuro demais. Perfeito. Mas eu precisaria ficar acordado o dia todo pra vê-lo, para vivê-lo. E eu não quero isso. A perspectiva de ficar um dia inteiro acordado me apavora. O abismo que me encara de volta é o grande céu que se abre acima da minha cabeça, e quando olho pela janela, vendo pássaros voando e arvores se mexendo, e penso que eles farão isso o dia todo, e amanhã de novo, e de novo, e de novo. E isso é horrível. É impossível imaginar Sísifo feliz.

quinta-feira, 24 de abril de 2025

O que foi dito, e o que foi visto

Eis um exercício psicológico: como reagir a uma situação de dessabor. As palavras, graves e diretas, atacam como setas inflamadas. Une-se esta impressão aquela de muito tempo de alguma desavença entre ambos, ainda que nunca tenham trocado mais do que meia duzia de palavras. 

O real: uma interpolação direta a uma afirmação cômica. 

Aquilo criado por uma mente emocional de extrema afetação: um ataque frontal, algo como uma declaração de guerra velada. Mas ainda passível de mais profundas investigações: a posição corporal e sua expressão facial não diziam isso.

Mas quem sou eu para investigar isso e dizer o que significa sua expressão facial ou corporal? Eu tenho apenas aquilo que me foi dito, nada mais. 

Tenho a especulação de uma conversa que ouvi, a qual em nada me diz respeito, excepto pelo fato de que, sendo verdade, talvez seu humor estivesse alterado e, com isso, ele que sempre ignorou minha presença acabou escapando daquela aparência abatida e, por um instante, resolveu atacar um alvo aparente e obviamente mais fraco. 

Mas, repetindo, eu tenho apenas o que me foi dito, e o mais que a minha distorcida cria não vale nada. É apenas um reflexo de uma personalidade carente que idealiza: o homem mais bonito sendo o mais próximo de mim. Uma doce mentira.

O ASCÉTICO

Eu aceitei que sou solitário,
E tá tudo bem, irmão.
Aceitei que sou solteiro,
Por escolha, não por azar

Aceitei que meu amor não me ama,
E isso dói, mas tá tudo bem.
Aceitei que meu não existe,
Ou se existe, eu não vi,
Eu não quis, eu desmereci.

Aceitei que sou um garço da vida,
Vendo casais felizes,
E eu com um drinque na mão.

(Autor Desconhecido)

Ele não me chamou atenção de imediato. Ou chamou e eu não quero aceitar essa verdade boba, porém humilhante? Não, a verdade é que ele não é particularmente lindo. Bonito sim. Quando conversamos, vi que tem algo de bem-humorado, combinando a um semblante entre o sério e o descontraído, germânico diria, mas sem aquela altivez arrogante, foi como se nós, ele, eu e os outros, pudéssemos ficar um bom tempo ali falando qualquer coisa. Mas, como dizia o poema logo acima de autor desconhecido

Eu aceitei
que um homem alto e loiro 
jamais olharia para mim

Assim como a métrica da poesia pode determinar sua força
E eu reconheço que metrifico melhor em prosa que em verso

O que talvez signifique
que eu seja melhor amigo que namorado
melhor ajudante que conhecido
Eu aceitei que eu sempre sou ignorado

E então, ainda que da celeste legião
de todos ele tenha se destacado
fazendo-me de do conteúdo de sua alva túnica 
enamorado

Surgiu do alpendre da capela
da solene procissão a guiar, 
altivo, forte, sereno a caminhar

E quando falou comigo, 
senti meu rosto corado
mas sei que esse instante aflorado
é apenas último sopro de um peito deteriorado

Não um homem como eu
despudorado
que se deixa levar pela novidade do corpo 
inexplorado

Cujo toque acalorado reflita 
um coração queimado
O sentimento novo que parece
deixar o peito ancorado

Na verdade, me deixa apenas no ar a flutuar
A sonhar, imaginar, conjecturar
cenas de carinho que talvez o fariam se envergonhar

quarta-feira, 23 de abril de 2025

Silêncio e Luz

Era a Páscoa dos Judeus, ou melhor, a Páscoa daqueles que estavam próximos de Cristo. Ele manda preparar um lugar adequado para a instituição de tão grandes mistérios. O Jesus que falou às claras, sempre candente, agora sério, assume a posição que deve ser imitada pelos seus: a do sacerdote que guia ao povo e realiza o sacrifício.

A Quinta-Feira Santa é, para mim, por essa razão, uma reflexão ao nosso modo de servir. Cristo manda preparar um lugar adequado, mas nós não fazemos isso: preparamos aquilo que queremos, que vai chamar atenção para nós, que vai ser bonito e grandioso, mas não de modo a glorificar aquele que nos enviou, mas de fazer crescer nossa fama. Vejo isso nas pessoas que ostentam nomes, cargos e vestes vistosas, mas que não preparam nada que não as faça aparecer. E o Cristo realiza sua ceia junto aos seus, de modo simples, porém solene, sério, com tudo preparado. Do mesmo modo, observo aqueles que, com vestes vistosas, elas apontam a grandiosidade de seu coração próximo de Cristo. Bento XVI usou os paramentos mais belos dos últimos anos, e em nada tinha a arrogância dos homens de estolas baratas e túnicas amplas que apenas ostentam discurso de pobreza, uma pobreza falta, superficial. 

Ao invés de se engrandecer naquela celebração, ele lava os pés dos outros, coisa que não fazemos, coisa que repudiamos. Não queremos aprender, não queremos ouvir. Somos como ovelhas sem pastor, não por falta do pastor, do Bom Pastor que nunca falta, mas porque nos recusamos a ouvir e ver o que está diante de nossos olhos. 

Quantos símbolos, quantos sinais, e tudo, embora fecunde nossa inteligência, pode ser que nunca venha dar frutos, pois encontra a barreira da nossa ignorância. Ao fim, com o hino que deveria ser cantado, a Eucaristia deixa o altar, o Cristo deixa a ceia e vai ao Monte das Oliveiras, e então, deveríamos ficar e vigiar. 

Mas ficamos em tremendo barulho, 

cantoria, 

gritaria. 

Nada de silêncio, é apenas no alto da cruz que o homem, confrontado com a brutalidade do sacrifício, silencia, não por contemplação, mas por espanto. 

Nada de silêncio, pois o silêncio nos revela aquilo que há de mais assustador em nós: nossos próprios pecados. Ficar em silêncio diante do Santíssimo Sacramento é colocar nossa imensa pequenez, esses mesmos pecados, nossas maiores fraquezas, aquele que é maior do que todos nós.

E que ainda assim escolheu padecer por nós, por aqueles incapazes de ficar e vigiar uma hora sequer.

Depois, 

traído, 

caçado, 

preso, 

esbofeteado, 

ele caminha, 

calmo e sereno, rumo a cruz. 

De novo fazemos o caminho da Divina Comédia. Se na Missa de Ceia do Senhor cantamos o Glória, ornamos a igreja com flores, preparamos um belo tabernáculo, na Sexta-Feira da Paixão a igreja se encontra despojada de todas as suas glórias: santos cobertos, altar sem toalhas ou velas, lembrando a desolação do homem: do povo no exílio, dos discípulos sem poder diante dos judeus, de Maria junto a Cruz e, finalmente do homem diante da própria miséria. Como bem cantou, ou lamentou, Jeremias, não consigo encontrar melhor descrição desse dia:

"Ah, como está tão deserta, 
quem já foi tão povoada. 
Parece pobre viúva, 
quem antes se orgulhava. 
Rainha entre as nações, 
hoje ao imposto obrigada."

A Igreja, das glórias, dos hinos, se despe de tudo isso como Cristo foi despido de suas vestes e açoitado, humilhado. Beijamos a cruz. Finalmente reconhecemos nosso lugar. Adoramos aquele que nos salvou em sua morte. Há também a contraposição daqueles hinos, os Lamentos do Senhor e o Fiel Madeiro da Santa Cruz. Cristo lamenta que precise ser assim, porque Deus nunca desejou a queda, mas pelo Lenho da Cruz ele nos dá prêmio ainda maior que aquela vida longeva que tinham nossos pais.

A cena de ultrajes de novo e, também de novo, o silêncio. 

Um grande silêncio que reina sobre a terra.

E esse silêncio é acompanhado de trevas.

E da profundidade dessas trevas, ressurgindo da mansão dos mortos, brilha uma luz, uma pequena luz, uma única luz. E essa luz começa a dividir-se. E o que era trevas agora brilha mais do que o dia. E o que era uma única luz agora é multidão, é Igreja, povo santo e pecador, caminhando com Cristo. Ao ouvir a História da Salvação, acompanhamos a humanidade, da queda ao reerguimento, atravessando o Mar Vermelho a pé enxuto, passando pelas profecias. Caminho longo, arduíssimo, que nós ainda não contemplamos, mas que já vemos na divina liturgia, como que por antecipação. 

E então, finalmente, tornamos a cantar alegres: Cantai Cristãos, afinal! A dor não ficou para trás, mas a alegria a venceu. Duelam forte e mais forte, é o Cristo que vence a morte. E então essa vitória traz consigo aquela solenidade perdida, infelizmente ainda incompreendida, é verdade, mas Cristo também o foi. 

Mas, assim como Cristo continuou a ensinar mesmo que seus discípulos ainda não entendessem, a mãe Igreja alegra-se igualmente ao oferecer esses tesouros aos seus filhos rebeldes. Cristo ressurge em sua glória. A alegria das flores, o perfume do incenso, os cantos, os sorrisos, me recordo, em meio a toda essa movimentação, da alegria sublime de Maria ao rever seu filho. Episódio que não é narrado nos Evangelhos, mas que podemos imaginar, a Divina Mãe e o Eterno Filho, a se abraçar. Ela, não mais mãe apenas dele, mas de todos nós. Ele, a abraçar, consolando as dores da espada que lhe transpassou a alma, como a lança lhe transpassou o coração. 

Resurrexit, sicut dixit, alleluia

segunda-feira, 21 de abril de 2025

Palavra Perdida

Piso o concreto frio com os pés sangrentos, 

às vezes minha voz se cala e 
ao invés de cânticos, saem apenas espuma de meus lábios. 

Ao invés do riso e do sorriso, 
uma expressão fria, vazia. 

Ao invés da vida, 
um sono que se repete, dia após dia. 

Começamos o Tríduo Pascal e, com exceção dos dias em que preciso cantar, eu vou me forçar a ir. Porque não quero ver as pessoas que lá estarão, não quero ver ninguém. Estou tentando não me incomodar com tudo que será feito. E tenho falhado. 

Muito se diz sobre a simplicidade ou sobriedade da liturgia, o que em si já é um conceito autocontraditório, mas, fingindo que possa ser viável, vejo que a simplicidade é aplicada apenas aquilo que é tradicional. Não usamos a palavra "ofício", é muito antiga, as pessoas não vão saber do que estão falando. Mas no ofício, que interpolamos teatralmente de tal modo que o presbitério facilmente poderia ser confundido com o salão de uma casa da luz vermelha. Qualquer música tradicional é difícil, desconhecida. Gregoriano é complicado demais para aprender. Mas desgastam as pregas vocais até a exaustão para cantar as músicas estúpidas atuais, que repetem um único refrão dez vezes e passam a ideia de uma catolicidade inexistente. Por isso eu prefiro ir e sair o mais rápido possível.

Até em casa, prefiro assistir durante a noite, sozinho, do que aguentar a loucura do entra e sai, das vozes altas, de uma dinâmica demoníaca. Porque a vida humana tornou-se isso, e apenas isso. 

Queria caminhar um pouco, e ver como ficou a vegetação do mangue no outono, há tempos não passo por aqueles lugares, e ficam apenas alguns minutos a pé daqui. Também queria sentir a brisa do mar nessa época, ainda que ela chegue até minha casa, não é o mesmo que sentir sentado no trapiche, olhando o céu azul se estendendo infinitamente, alguns pássaros voando aqui e ali, e as vozes das pessoas, conversando baixinho enquanto passam.

Vi muitos meninos bonitos hoje, e alguns deles me abraçaram e seguraram a minha mão. De algum modo isso faz valer a pena sair de casa. Ainda que eu não tenha nenhuma pretensão real de me aproximar de qualquer um deles. Aliás, alguns estavam com suas namoradas, as beijaram na minha frente, mas não importa, a beleza deles tem fim em si mesma para mim. Queria ter algo mais interessante para dizer, além disso. Não vou descrever nenhum deles, seria perda de tempo escrevendo e lendo também. 

É, acho que realmente esgotei o que tinha para dizer. 

Um poeta que perdeu a palavra, 

miserável.

domingo, 20 de abril de 2025

Alegria e Dor

"O insulto me partiu o coração
Não suportei, desfaleci de tanta dor
Eu esperei que alguém de mim tivesse pena
Mas foi em vão, pois a ninguém pude encontrar
Procurei quem me aliviasse e não achei"

Como falar desse acontecimento, o maior que poderia haver? Quando tantos homens tão mais letrados e, ainda mais importante, tão santos, o fizeram com tamanha profundidade e união ao Sacratíssimo Coração de Nosso Senhor? Por isso não pretendo falar a outros, não, mas apenas tentar organizar algo daquilo que, vivendo intensamente a Semana Santa, consegui perceber. 

Isso porque, carregada de tantos símbolos, creio que todos nós poderiam passar horas meditando os diversos aspectos vividos nesses dias e ainda seria pouco, não bastaria. E isso me leva ao primeiro ponto. Em suas Preparação para a Morte, Santo Afonso Maria de Ligória fala do risco da condenação eterna, e explica de um modo assustador, como ela se estenderá pelos séculos dos séculos. Como o sofrimento se estenderá, e se passarão centenas de milhares de anos e ele ainda não estará próximo de acabar. E o sofrimento é algo que o homem teme desde seu primeiro momento, observo isso nas crianças pequenas, meu sobrinho que vive comigo, ele se alegra ao prazer, da comida ou de uma brincadeira, e chora ao sentir fome ou dor: fugir do sofrimento é a coisa mais básica do ser humano, porém, diante de nós, somos confrontados com a escolha de sofrer eternamente.

Mas, ao mesmo tempo, também somos postos diante da possibilidade algo ainda melhor que o oposto do que o sofrimento eterno, que seria a alegria eterna. Eu gosto muito daquele hino que diz "Ó Jesus, que nesta vida pela fé eu vejo, realiza, eu te suplico, este meu desejo: ver-te, enfim, face a face, meu divino amigo, lá no céu, eternamente, ser feliz contigo!" A salvação é mais do que uma simples alegria estendida indefinidamente, é uma união, proximidade, com Deus, infinitamente. Proximidade, face a face, só o temos com amigos, com aqueles que amamos, que confiamos, em quem colocamos a cabeça ao ombro para chorar. Por isso essa Semana, que nos coloca diante desse mistério de Salvação por meio da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus, é de uma delicadeza e de uma força surpreendentes.

No Domingo de Ramos e da Paixão do Senhor, já confrontados com uma dualidade, que não raramente passa despercebida aos ouvidos da maioria. Esse dia é visto com júbilo, e de fato celebramos a jubilosa entrada de Jesus em Jerusalém, mas, como que dividida em duas partes, terminada a procissão, em que cantamos felizes o rei que chega, que vem vindo simples, diferente dos reis de todas as épocas, mas mais importante que todos, celebramos também a sua Paixão. Me recordo do episódio, por ocasião da eleição de Bento XVI onde, quando o papa saiu para a saudar a multidão, Dom Francis George, Cardeal Arcebispo de Chicago, tinha o olhar distante. Ao ser perguntando sobre o que pensava ele respondeu que olhava para o Circus Maximus, no Monte Palatino de onde os Imperadores uma vez reinaram, e onde os cristãos foram humilhados e trucidados, e então ele se perguntava: onde estão seus sucessores, onde está o legado de Julio César ou Marco Aurélio e, afinal, quem se importa? Mas se procuram o sucessor de Pedro, um pobre pescador que, depois do contato com essa dupla realidade, se tornou conversor de multidões, está bem ao meu lado, sorridente, glorioso e reinante.

Esse dia é então marcado por isso. Meu coração sentia a alegria daqueles que seguiam Jesus, mas também sentia a dor do desprezo que Jesus sentiu ao ser entregue pelos mestres da lei para ser morto. Injustamente, vítima inocente que, por isso mesmo, sendo perfeitamente inocente, acabou sendo o sacrifício perfeito e sangue, derramando o sangue da nova e eterna aliança, não mais o sangue dos animais, sacrifícios imperfeitos. No presbitério eu ousei tomar as palavras de Cristo ao cantar, em baixo tom, "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?" Sl 21 (22). 

Na narrativa da paixão o que mais chama atenção, pensando naquela cena de ultrajes, é o silêncio que se faz ao expirar do salvador. Mesmo aqueles que só vão à igreja nesses dias, mesmo aqueles que não queriam estar ali, nós que estávamos por amor, todos silenciaram, e um grande silêncio reinou. Essa é a força de Cristo: não a de um grande líder que chegaria em carruagem de ouro e grande exército e libertaria o povo da opressão, continuamos nós oprimidos pelo peso de nossos pecados, mas um libertador que, na humilhante morte de cruz, nos abriu as portas do céu. É um poder tão imensamente maior que não há nada que nós, homens, podemos fazer diante deles a não ser silenciar.

Com isso inauguraram-se esses dias de profundo mistério.

quinta-feira, 17 de abril de 2025

Um Jardim

Gosto desse lugar. É calmo, ou pelo menos assim me parece, ainda que sempre movimentado. Mas é que cada um está absorto no próprio mundo. Então, de certo modo, parece silencioso.

É uma casa grande, e não consegui ver sinais de ter sido aumentada, embora claramente tenha sido modificada por dentro para funcionar como hospital psiquiátrico e não mais como residência. Quem será que morava aqui?

Tem um jardim grande que vai desde a frente até os fundos e, apesar do nome do lugar, não há lírios por aqui. Nos fundos há algumas árvores frutíferas, nessa época do ano há goiabas, acerolas ainda verdes, ambas no meio de alguns anões e bancos de madeira que usamos enquanto esperamos as sessões, outros fumam ou, os mais ousados, sobem nas árvores.

Por toda a parte há o resultado dos trabalhos de pessoas que buscam se recuperar, ou de pessoas que outros esperam que se recuperem. Um grande vaso com flores de papel dobrado, cartazes com desenhos e colagens e, claro, pessoas. É uma visão ímpar.

Dentre os funcionários que andam com listas de nomes e transtornos psicológicos há os muitos pacientes, que aqui chamam de usuários (o que acho particularmente estranho). Alguns são, como eu, pessoas incomodadas com seu transtorno. Outros são pacientes mais graves, não conseguem falar ou, quando conseguem, é difícil de entender, não parecem sequer conscientes de sua condição. Mas ainda é possível perceber o imenso sofrimento pelo qual passaram e ainda passam. Eles dão alguns relatos, entre as reclamações de falta de sono ou disposição. Como relances de lucidez, pontos de luz no meio daquela escuridão louca.

Eu não poderia deixar de encontrar outras coisas que me agradassem né? Um recepcionista me chamou atenção: moreno, com uma marquinha do lado do queixo quase chegando até a bochecha direta, a barba rala e voz grave. Sério, porém conserva um meio sorriso, não sei se motivado pelo trabalho ou por um bom-humor cultivado. 

Outro, um usuário (sério não me acostumo com esse nome, parece que estou falando de alguém que usa crack) também me chamou atenção. Ele é autista, e nem precisei ver o crachá de identificação para saber. Sei que seu primeiro nome é igual ao meu, e ele gosta de subir nas árvores. Ainda não consegui identificar quantos anos ele tem, mas tem uma barba grossa, cabelos bem lisos caindo sobre a testa e os óculos grossos de armação preta. Ele fala rápido e eu tenho dificuldade de entender, mas fiquei feliz quando me cumprimentou, mesmo tendo tantos outros no lugar junto com a gente. Talvez tenha notado o quanto eu o olhei? Senti uma abertura e então eu puxei conversa da outra vez, mas não falamos nada muito importante.

Na terceira vez, no entanto, consegui falar mais com ele. Descobri que, além do autismo, ele tem também esquizofrenia, o que me fez questionar sua maturidade, já que ele tem vinte anos (informação também obtida nessa conversa) mas lê gibis da Turma da Mônica, ao mesmo tempo que domina técnicas de calistenia e tem consciência de suas limitações, não gostando de ir à igreja porque sabe que a quantidade de pessoas é um gatilho para crises, mas não se importando com o barulho dos fogos que ele gosta de soltar no Natal e Ano Novo. Toma muitos remédios, e suas mãos tremiam. Toquei uma delas brevemente, depois de fazer um movimento em que sutilmente perguntava se podia toca-lo, ao que ele respondeu positivamente apoiando sua mão na minha e, depois, recolhendo e a colocando sobre sua outra mão, num gesto tímido.

Atualmente meu corpo não responde a nenhum estímulo e minha mente tem medo de voltar a gostar de alguém. Mas gostei de ficar ali, a sombra da pitangueira, que só depois descobri que, na verdade, é um pé de acerolas (não sou particularmente muito conhecedor ou apreciador de frutas) conversando e sentindo a brisa das primeiras semanas do outono.

Gosto desse jardim, não poderia imaginar que, debaixo da grossa camada de nuvens de chuva e poeira que sai das fábricas, haveria um lugar assim. Não diria um lugar de paz, não sei se isso existe, mas, 

definitivamente, 

é um bom lugar.

E talvez nem seja só esse jardim em si, mas um jardim com o qual eu possa sonhar em sonhar.

"No jardim o vento muda as folhas de lugar
E agora o meu caminho eu posso alterar
Se você vem comigo
Num pequeno instante
Posso ser feliz"
 

(Saint Seiya)

terça-feira, 15 de abril de 2025

Efeitos

Eu gosto dessa sensação, quando os remédios começam a bater e vem um sono não natural pesando os olhos, deixando a mente um pouco mais lenta. Mas hoje, anos depois, os efeitos são bem menores. Se fosse mais fácil comprar remédios sem receita eu com certeza aumentaria bem mais as doses, mas essa maldita burocracia estatal em tudo se mete. Além da obscenidade de impostos que pagamos, ainda querem controlar tudo numa imensa máquina da qual cada um de nós é apenas uma pequena peça. 

Sim, eu gostava de quando, completamente chapado de Zolpidem, escrevia páginas e mais páginas sobre as desgraças do amor. Me pergunto se foi apenas o efeito das drogas que diminuíram, ou se não foi meu coração que secou. Sempre pensei no meu peito como uma torrente, fruindo águas de amor num grande jardim, fazendo florescer as mais diversas cores e perfumes, pintando belos canvas entremeados de verde-esmeralda. 

Observo, em busca de inspiração, a apresentação da 7° de Shostakovich, com um percussionista lindo da Frankfurt Radio Symphony. Essas coisas me encantam: beleza que produz mais beleza. Seus músculos fazendo vibrar os pratos dessa ode a Leningrado. Na apoteose do primeiro movimento ele cria um grande efeito, em contraponto e em reforço a marcha militar que acompanha. É uma passagem vigorosa, e requer precisão e força de todos do naipe de percussão. 

Mas, logo o tema apoteótico dá lugar seu lugar a um tema reflexivo, como se contemplasse a cidade de Leningrado durante uma fria noite estrelada. Em meditação, Shosta no convida, em moderatto, a refletir sobre a guerra, o totalitarismo. Meditar. Palavra que as pessoas já não conhecem o significado, aliás, de qual conhecem? Tolos. 

Se a obra passou a perder popularidade ao perceberem ser uma crítica a invasão nazista à União Soviética e, portanto, música de guerra, qualquer um que diga uma palavra firme perde popularidade. Mas perder algo tão tosco não é tão difícil e nem mesmo importante assim.

Odeio, por exemplo, esse discurso sobre saúde mental de que as pessoas devem buscar ajuda, devem dizer pelo que estão passando, e que com isso serão acolhidas e ajudadas, pois é uma grande mentira. Quem faz isso se torna um peso morto, se torna aquele que pesa o rolê, no fim, tudo que ganha é assédio moral de quem diz que suas atitudes, leia-se sua doença, desmotiva os outros. Saúde mental é mentira, a única preocupação é a com eficiência, e o mais que fazem não vale nada!

Mas dizer isso é bonito, produz um efeito nos outros de que as pessoas se importam, que serão bem cuidadas e acolhidas, o que é exatamente o que uma pessoa em sofrimento precisa.

Ao mesmo tempo que eu desejo esse torpor, essa dopada candura, eu a temo, eu temo muito, porque aquele lugar, aquela longa noite em que me coloco, ela é escura, sombria e solitária, e parece que a todo momento eu sinto o inimigo me rodeando, procurando me devorar, e então, tenho mais a perder do que a popularidade da qual já não gozo.

domingo, 13 de abril de 2025

Desejos e Virtudes

Não quero estar no meio da multidão, quero o silêncio, quero sentir a brisa fresca do outono, não quero sentir todo o pânico de ali no meio de todos. Nem a pressão de fazer tudo certo. Não quero. Quero a tranquilidade da noite, me fundir com ela e, ao amanhecer, desaparecer junto aos pontinhos de luz das estrelas, e me tornar distante, inalcançável, apenas as reminiscências de algo que há muito já morreu.

Como eu pensei que aconteceria, mas não com tanta força: tudo se esvaiu. Tenho mais uma missa para cantar e não tenho forças nem para sair da cama. E entenda: o problema não é a missa, nem uma ou outra pessoa desagradável, não, o problema sou eu. Eu só não sei como resolver. Parece que não tem como, já que a cada dia me dão mais e mais pílulas... Parece que só estão adiando o inevitável. Eu também sinto que venho fazendo só isso, adiando o inevitável fim. 

Numa tarde chuvosa como essa, seria ideal para desaparecer, sumir como a água que escorre e penetra o solo. Não seria uma morte, mas um retorno. Um retorno ao todo, alguns diria, mas eu, por outro lado, desejo um retorno ao nada. 

Mas, antes disso, uma infindável onda de chatices parece me levar de um lado a outro, e não há muito que possa fazer. Vejo uma certa tendência estoica ao meu redor, de aceitar o que vem, as dores e as alegrias, de modo a compreender que a dor é quase permanente e as alegrias aparecem apenas em alguns poucos momentos, mas também percebo que, aceitar essa premissa sem a dose certa de cristianismo, é cair no niilismo de crer que não há um bem maior ao fim de tudo e que, como as coisas são assim e pronto, não há que se fazer. Filologicamente falando a diferença é sutil, os mais modernos poderiam até dizer que se trata de um jogo de linguagem, mas, pelo contrário, é uma diferença que se encontra na base de como se encara não apenas a vida e aquilo que dela se segue e se sucede, mas toda a cosmologia e como vemos o ser. 

Ao fim da segunda missa senti como se um peso imenso fosse tirado de mim. Talvez a letargia que me atingiu durante todo o dia fosse mais do que apenas depressão, mas também ansiedade, a Semana Santa sempre tem esse efeito em mim e, por alguma razão, as pessoas continuam depositando sua confiança em mim, de que sou capaz de um bom trabalho quando, em retrospecto, tudo que fiz sempre foi medíocre. Estoicamente poderia aceitar isso e continuar, pois sei que é tudo que posso fazer. De modo cristão preciso me obrigar a buscar a virtude e melhorar, em vários sentidos: buscar a humildade de aceitar que, o que há de bom em mim vem de Deus, buscar a temperança que controla os impulsos e assim melhorar, buscar a fortaleza que me concede paciência nas provações e assim sucessivamente. 

Por falar em virtudes, não posso deixar de pensar novamente naqueles que encontro na igreja, e nas inevitáveis relações que lá se formam. Amizade, admiração, afetos, e até mesmo aquele sentimento que temos ao ver uma pessoa distante e querer falar com ela. É engraçado. Hoje eu queria evitar uma mulher a todo custo, abracei uma moça e apoiei minha cabeça no seu ombro, observei um rapaz de longe e pedi um abraço para outro. 

Eu precisava de um abraço, 
daqueles apertados,
bem apertados
que pudesse me restaurar, 

ainda que um pouco. 

Mesmo que aos trinta, me vejo na descrição de Nelson Rodrigues de um jovem: tem todos os defeitos do adulto e mais um: a imaturidade. Quanto aos amores, que já não sou mais capaz de amar, mas que parece represar de algum modo esse sentimento, fico com a descrição de Van Gogh: o moinho já não existe, o vento continua, todavia.

sexta-feira, 11 de abril de 2025

Coisas que morreram

Sou uma pessoa morta tentando viver.
Sou como
o reflexo de uma estrela sem brilho.

Pedro Miranda

Não sei se eu deveria me aproximar dele, ainda não sei sua idade e não trocamos mais do que uma dúzia de palavras e, acima de tudo, não sei se posso me apaixonar de novo, se tenho essa capacidade e se seria prudente. Para ser sincero, eu penso que posso enlouquecer pra valer a qualquer momento. Como não vejo melhora no meu quadro de Transtorno Bipolar e cada vez mais se confirma o Transtorno Borderline...

Sim, eu fiquei incomodado depois de ter me esforçado tanto nesse projeto e ser interpelado desse jeito, de um modo tão bobo que parece que eu não sei o que estou fazendo quando tudo foi cuidadosamente planejado. Não gosto como as pessoas descontam em mim sua ignorância, como se nunca tivesse lido um livro na vida, sem conseguir interpretar as nuances de significado de uma única palavra. Não gosto como querem distorcer tudo e fazer parecer o mais protestantizado ou tosco possível. 

Me incomodo quando as pessoas tentam eliminar todo vestígio de tradição. Hoje não vivemos uma Igreja em saída que se adapta aos tempos e as novas linguagens, vivemos uma igreja sequestrada por uma liturgia teatral, vazia, repleta de lágrimas e emoções, mas carente da presença do Senhor. Não percebem, por exemplo, a simplicidade de uma oração feita de verdade. Quando rezamos, de frente ao Santíssimo, "Serás profeta do altíssimo, ó Menino, pois irás andando à frente do Senhor para aplainar e preparar os seus caminhos" e erguemos o olhar e vemos o Altíssimo diante de nós, na hóstia consagrada, cumprida a profecia. 

Lamentos, meus lamentos... 

Não posso dizer que me uno aos sofrimentos que se aproximam do Cristo na Semana Santa, meus pecados me afastam demais disso, mas, de algum modo, eles me fazem também padecer pela distância, minha paixão é fruto desse pecado, não a Felix Culpa de Adão, mas a baixeza da minha vontade que me fazem sofrer. Não posso pedir a Deus que afaste de mim esse cálice quando eu mesmo busquei beber o veneno e comer o fruto fatal. Que o Criador tenha pena e me permita olhar aquele lenho que pode me curar desse mal...

Um jovem sorridente, apaixonado por doces, que anda sempre colorido em tons pasteis. Num momento de vulnerabilidade ele vira para aquele que quer caminhar ao seu lado e diz que não merece, que não merece namorar ninguém, e que alguém como ele, devia buscar alguém que fosse capaz de cuidar e fazê-lo feliz. Palavras cruéis para dizer a si mesmo. Mas ele as disse e, antes disso, as tem internalizadas consigo, como uma tatuagem ou cicatriz. Ele carrega isso consigo há muito tempo. Ele vem se deprimindo assim há muito tempo. Uma grande injustiça, pois qualquer um que o veja sabe o quanto ele é esforçado e merece, sim, o melhor amor. Um amor louco, talvez, mas que o ame de verdade e que e que cuide dele.

Embora na história seja uma injustiça, na vida real, existem pessoas que não foram feitas para o amor. Elas até cuidam dos outros, elas são esforçadas, mas elas não conseguem se conectar. Essas, independente do sorriso e do carinho que tragam consigo, estão destinadas à solidão. E essas pessoas, embora caminhem por aí, sorriem e até escrevam, não estão realmente vivas. 

Lamentos, meus lamentos...

Fenece toda a beleza,
Sião, tão desfigurada,
Seus chefes são cães sem dono,
Parecem rês enxotada,
Caminham cambaleantes,
Tocados qual vil manada.

Lamentos de Jeremias

segunda-feira, 7 de abril de 2025

Tornar Melhor

"Aponte que eu não enxergo quase nada
Nem assovio, nem um pio..."

(Maria Bethânia)

Como um velho, que vê que seus anos passaram tão rápido quanto um pequeno pardal que passa pela janela, eu vejo desaparecer o meu desejo, a minha vontade. E então vai minguando, desaparecendo, como se observasse minha imagem se tornando cada vez mais opaca num espelho que envelhece, e já não conseguisse mais distinguir quem me observa. É assim cada vez que algo perde a graça, porque outra coisa não toma seu lugar, porque simplesmente fica um vazio ali, porque simplesmente fica um vazio cada vez maior em mim, e acho que não falta muito para eu me tornar apenas um vazio. 

Eu bem tentei ajudar, mas o problema é que você carrega mais do que precisa. Gasta tanto esforço tentando negar o que você é, que não sobra muito para ser de verdade. Mas quem sou eu para dizer algo, não é mesmo? Eu que já nem sei quem sou, que só vivo os dias, sem me importar muito com nada mais, porque nada mais consegue me prender atenção, nada mais me faz sentir humano.

E as imagens no espelho desaparecem lentamente…  

Eu disse que só queria que você abrisse o coração para mim, mas você não entendeu. Sim, eu também queria que abaixasse o muro entre nós, que parasse de esconder as coisas que te machucam, que use o meu ombro para chorar, ao invés de se calar. Mas o que eu queria dizer era para abrir seu coração ao meu amor. Algo em mim acredita que o amor pode tornar as coisas mais leves. E, estando nós dois carregando fardos pesados, acredito que se me deixasse te amar, poderia tornar as coisas mais leves para você.

Mas talvez isso seja apenas um devaneio, e eu não possa ajudar ninguém. Já fazem dias que não saio da cama, tanto que meu corpo já apresenta algumas feridas, além de várias dores. Alguém depressivo assim não pode ajudar ninguém. Por isso eu não pude ser sincero quando pedi que não desistisse de mim. Eu é que não devo desistir de você, mas de mim, eu mesmo já desisti.

É que vejo o quanto a gentileza, o sorriso doce, podem fazer diferença. Ao homem exausto que há tempos já havia se esquecido de si, alguém chega e pergunta "como você está?" e, de um modo simples e gentil, faz com que ele irrompa em lágrimas, porque há muito ninguém se importava com ele. Ao se oferecer como companhia num dia especial que, por uma infelicidade, se tornou um dia solitário, pode-se mudar completamente o rumo desse homem.

Por isso eu tento ser gentil. Por isso eu abracei esse amigo com força tantas vezes, e segurei sua mão, e sequei suas lágrimas enquanto sorria de modo mais terno possível. É só o que eu posso fazer, tentar melhorar, um pouco que seja, o dia dele.

"Meu coração já aceitou
Que o nosso tempo já passou
Que para nós não há depois
E nem talvez"

(Maria Bethânia)

sábado, 5 de abril de 2025

Friedrich Nietzsche, em O Anticristo e Ditirambos de Dionisio

Existem pessoas que, perante o abismo, dão um sorriso; em seus olhos, a luz de quem viu na queda uma dança. São aqueles que mergulham sem hesitação no labirinto, que caminham sobre a linha da navalha sem o receio de se ferir, pois cada corte é um prêmio e cada cicatriz, um canto que só eles compreendem. Para esses indivíduos, o fardo do mundo é um passatempo, e a dor, um instrumento a carne se torna dura, a alma se afia. Eles procuram no desafio o prazer da vitória, não em relação aos demais, mas em relação a si mesmos, naquela constante e acirrada batalha de superação.

Eles reverenciam a ascese como se respirasse, não para negar a vida, mas para absorvê-la integralmente, em sua dor e sua beleza.

São aqueles que veem na autossuperação uma alegria sagrada, os mais leves sob as mais pesadas responsabilidades, e os mais felizes mesmo perante as sombras. O conhecimento é seu campo de batalha, e a conquista de si mesmo, sua dádiva.

"Os homens mais inteligentes, sendo os mais fortes, encontram sua felicidade onde outros encontrariam apenas desastre: no labirinto, na dureza para consigo e para com os outros, nas experiências, no esforço; seu prazer está na autossuperação. Sua alegria é a autoconquista: o ascetismo se torna natureza, necessidade e instinto. Tarefas difíceis são um privilégio para eles; brincar com cargas que esmagam os outros, uma recreação. Conhecimento: uma forma de ascetismo. Eles são o tipo de homem mais venerável: isso não os impede de serem os mais alegres e os mais bondosos."

Friedrich W. Nietzsche, In 'O Anticristo e Ditirambos de Dionísio'.


Paixões e Vontade

Tentei buscar algo a dizer, mas só consigo sentir o vento, finalmente, frio do outono na minha pele, e pensar no quanto isso me faz querer dormir, dormir sem hora para acordar. Bom mesmo seria nem mesmo acordar. 

Falava com um amigo das nossas paixões, de como sempre nos apaixonamos por pessoas que jamais olhariam para nós. Do meu lado eu entendo, não sou do tipo que agrada os outros, feio, chato e gordo. Mas ele é diferente, e também está só.

Por isso me convenço de que a solidão é o destino dos homens, porém poucos estão conscientes disso. Aquele homem loiro nem se deu conta da minha presença. Passei por todos os outros como se fosse invisível, mas não sou, o corre corre continua, passamos uns pelos outros assim, e nada muda. É como se invisível, e eu queria ser de verdade. É melhor do que saber que estou aqui, mas que agem como se não fosse digno sequer de seus olhares de desprezo. Porque isso é tudo que tenho, o olhar que dão aos indigentes e ao incômodos da sociedade. Estamos nela, mas é como se nem sequer existíssemos. 

Estou sentado no chão, no escuro, mais uma vez ouvindo Kim Sung Kyu, tenho essa preferência por músicas românticas. Ainda que não viva um romance, tem algo de confortável aqui, no escuro, ouvindo uma bela voz. 

Tinha planejado assistir até de madrugada, mas perdi a vontade. Tem sido muito assim ultimamente. Vontade. Estou sempre em luta com ela. Às vezes ela quer o que não pode, outras vezes, mesmo podendo, não quero. Sendo então uma potência movida pelo intelecto, constantemente preciso decidir o que é melhor para mim, mas admito que venho falhado muito, pois continuo, a cada dia, abusando das drogas para dormir, e dormindo cada vez menos, e sendo obrigado e ver cada vez mais dessa realidade que eu não quero ver. 

Eu não quero me levantar da cama todas as manhãs e me ver numa casa apertada, sem ninguém ao meu lado, e ficar ali, sentado olhando a construção infindável do outro lado da rua, me arrumar para pegar um ônibus cheio e viver um dia infernal de cada vez.

Eu não desejo algo longe disso. Outra vida completamente diferente. Mas desejo um beijo de bom dia, duas canecas fumegantes de café, ao chegar, sorrisos, um filme ou simplesmente um abraço apertado e confortável, deitados ali, recarregando as forças... Bem, aqui eu já me perco em devaneios...  

[...] E agora estou sozinho no mundo,
Sobre o vasto, vasto mar;
Mas por que eu deveria gemer pelos outros,
Quando ninguém suspirará por mim?
Talvez meu cachorro choramingue em vão
Até ser alimentado por mãos estranhas;

(Lord Byron)

sexta-feira, 4 de abril de 2025

Um muro solitário


Infeliz Atlas que sou! Um mundo,
Todo o mundo da dor tenho de suportar!
Suporto o insuportável, e no meu peito
Sinto o coração que me rebenta.

(Franz Schubert)

Talvez nem tenha notado, ou talvez seja tão proposital e já tão automático, que você faz isso sempre. Ergueu um muro ao seu redor, tentando se proteger de tudo e todos, inclusive daqueles que te amam e querem te ajudar. Sempre nos deparamos com essa barreira. Você ergueu um muro que não permitiu que meu amor passasse, e agora já enxergo em você as consequências dessa escolha: sua solidão, muitas vezes não notada nem por você, o sentimento de não se compreendido por ninguém, o isolamento que, fechando-o para tudo e todos, o faz como atlas, carregando o mundo sozinho. E nem nota aqueles que o rodeiam, a quem relega apenas silêncio, e distância. Enquanto tenta o mundo suportar.

Digo isso como alguém que já não suporta nada, tampouco o peso do mundo, mas que já vê o caminho que vais tomar, já sente as dores, a infelicidade, e eu temo que se torne como eu... Mas você não permite que eu o veja, é sempre um muro, um filtro, palavras calculadas, eu nunca sei com quem estou falando, nunca sei o que você está escondendo. Quem é você? O que você quer? Do que precisa? Do que tem medo? O que deseja? Quais são, não seus pecados, mas suas covardias? Quando você será um homem desse mundo? 

"Desejou um mundo fechado. Que fosse confortável pra você. Você o desejou para protegê-lo de sua fraqueza. Para proteger seus poucos prazeres. Isso é simplesmente o resultado do seu desejo. Sem seu mundo fechado. Num mundo onde só você ter permissão pra estar outros não podem viver com você! No entanto, você desejou fechar o mundo que o cerca. Seu desejo ejetou coisas que você não gostava e criou um mundo isolado e solitário. Esse é o mundo que seus desejos criaram. Um céu particular nos recessos da sua mente." (Neon Genesis Evangelion)

X

Acabei caindo de novo na escuridão. Essas palavras já foram repetidas por mim até a exaustão. Mas voltei a solidão. Como numa cela vazia, tudo que vejo são grossas barras de ferro. Me pergunto o que importa. Acho que nada. Não quero falar sobre isso com ninguém, pois, de que adiantaria? Quero um abraço forte, onde possa dormir. Mas, ao mesmo tempo, estou sujo, minha cama uma bagunça, reflexo do meu coração que já não se importa com mais nada. 

Caminho pelas praias de um mundo sem ninguém. Estou nu, sinto frio e um gosto metálico de sangue nos lábios. O sol se esconde por grossas nuvens e posso ver, ao longe, uma violenta tempestade se aproximando. Não importa, me deito na areia e espero que ela chegue logo. Vou adormecer, quem sabe esteja no fundo do mar quando ela passar, e já não exista mais, ou melhor, ou esteja tão distante de tudo e todos que já não seja mais lembrado, apenas uma maré, como tantas outras, esquecida assim que a próxima se quebra nas pedras da orla. 

Solitário

Como um fantasma que se refugia
Na solidão da natureza morta,
Por trás dos ermos túmulos, um dia,
Eu fui refugiar-me à tua porta!

Fazia frio e o frio que fazia
Não era esse que a carne nos contorta...
Cortava assim como em carniçaria
O aço das facas incisivas corta!

Mas tu não vieste ver minha Desgraça!
E eu saí, como quem tudo repele,
– Velho caixão a carregar destroços –

Levando apenas na tumba carcaça
O pergaminho singular da pele
E o chocalho fatídico dos ossos!

(Augusto dos Anjos)

terça-feira, 1 de abril de 2025

Debaixo das Arvores

Claro, se ele havia tomado a iniciativa na semana passada, eu precisava fazer a mesma. Para além de um mero cumprimento, eu tentei conversar, e conversamos, à sombra das árvores, enquanto o sol brilhava forte. Ele me disse seu nome com muito orgulho, e me surpreendi ao ser o mesmo que o meu. Sorri, é claro, enquanto conversávamos e nem vi o tempo passar. Quando menos esperava já era hora de irmos, cada um para um lado diferente.   

Depois de algumas horas, quando deveríamos nos ver apenas brevemente, ele sorriu de novo, e eu uma vez mais eu prestei atenção naquilo que primeiramente tinha me atraído semanas antes: o seu cabelo castanho e liso dele, o rosto angular, másculo, mas ainda com traços juvenis, ao deixar algo cair no chão quando me viu, pegar rápido e sair correndo enquanto acenava.

Entre a primeira e a segunda vez muitos pensamentos passaram por mim, rapidamente. Como a forma que eu buscava saber a idade dele, confuso pela quantidade de barba, mas também pela compleição do corpo, grande, porém delicado. 

Pensei em falar sobre isso com alguém, contar animado que tivemos nossa primeira conversa. Mas estou desanimado. Primeiramente porque acho que ninguém deve se interessar, e nem sei se eu mesmo me interesso. Já disse que não tenho coragem de me apaixonar novamente, sabendo que vai errado mais uma vez. Porque tudo sempre dá errado. Porque tenho vontade de conseguir erguer um muro ao meu redor, tão alto e impenetrável que ficaria imune a esses encantamentos, essas coisas que me fazem sorrir, sonhar, escrever sobre elas de madrugada, mas que depois se vão, e eu continuo aqui.

Depois, o segundo motivo, é porque não tenho vontade. Há dois dias não saio da cama, já não aguento as dores no corpo por conta desse episódio depressivo forte. Não há vontade de nada. Simplesmente não há. Durante esses dias me torno apenas esse corpo inerte. Até quando as dores aparecem é um sinal de que estou começando a despertar...

E aí, de repente, um pouco de ânimo ressurge. Eu consigo levantar, tomar um banho numa tarde ainda quente nesses primeiros dias de outono e esperar, esperar anoitecer para, no silêncio tranquilo, tomar um energético (pois a energia natural é insuficiente) para assistir por algumas horas e, com isso, me transportar para outro lugar. 

Um lugar onde nem sempre todos são felizes, é verdade, isso seria muita ingenuidade de minha parte. Mas lá eles usam sobretudo e cachecol, e parecem elegantes enquanto andam carregando pastas sabe-se lá com quais documentos dentro. Eles não parecem ter tomado nojo de algumas pessoas e não sentem dores no estômago ao irem lá, ou simplesmente ao lembrarem que deveriam ir lá todos os dias. 

E então começo a me reencontrar nesse silêncio e nessa solidão da noite. O dia me incomoda, as pessoas estão barulhentas, tudo parece caótico e o sol brilha como se quisesse nos obrigar a sorrir quando eu só quero me esconder. Por isso prefiro os dias nublados, por isso descobri recentemente nas noites esse prazer simples. Sabendo bem que, na verdade, é algo que me afasta ainda mais do outro.

No entanto, depois de tanto sofrer, começo a achar que isso não é algo ruim assim. Talvez venha mesmo tomando uma atitude estoica diante do outro, enquanto cristalizo o pessimismo no coração, já que ambos levam, ao cabo, ao niilismo.

"Eis aqui um que não fará grande carreira no mundo. As emoções o dominam." (Machado de Assis)