"Arrancamos tanto de nós mesmos para nos curarmos mais rapidamente, que estamos esgotados aos 30 anos, e temos menos a oferecer sempre que começamos com alguém novo. Mas se obrigar a ser insensível só para não sentir nada? Que desperdício!" (Call Me By Your Name)
A cada vez que algo dava errado com alguém, uma parte de mim se ia, uma parte grande. Sempre me referia a isso como um derramamento, como Ganimedes derramando o néctar dos deuses, mas ao chão, num pires, e não nas taças divinas onde ele deveria ser depositado. Algumas pessoas levaram tanto de mim, e largaram na próxima esquina. E não consegui recuperar. E parece que agora não sobrou muito para oferecer a mais ninguém. Mas me forçar a ser insensível para não me machucar de novo parece desperdício, eu sei disso, mas ainda acho que é o certo a se fazer, ou melhor, que é a única coisa que eu posso fazer. Sei bem que derramei o meu amor, o meu néctar, no concreto frio.
Um desperdício. Concordo. Mas não farei nada. Sem mensagens, sem sorrisos, sem investimentos. Afinal, esgotado aos trinta, eu não tenho nada a oferecer, e constato isso com uma mente perturbada e um corpo em total desequilíbrio.
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O dinheiro tem estado ainda mais escasso nos últimos dias, o que é um eufemismo para dizer que estamos contando trocados para comprar leite e fraldas. Sendo sincero isso nem me preocupa tanto, eu só não quero ficar sem meus remédios, mas até eles começaram a faltar, e estou adaptando para conseguir dormir, um pouco que seja.
Não sei como consegui assistir a essa série, pois fala das pessoas que, graças ao que tenho hoje, são as que mais desprezo: pessoas que colocam o lucro e o status social acima de qualquer outra coisa, incluindo o valor inalienável da vida do outro. São as pessoas mais baixas e vis, e talvez as que mais precisem da misericórdia divina, já que não a reconhecem.
Me lembra aquela CEO de ThamePo, que também em si representa tudo eu mais desprezo: em nome dos lucros ela separou os amigos, fez o Thame ser odiado, sacrificou o Pepper porque o Thame era mais lucrativo, separou o grupo quando eles tinham finalmente voltado e, por fim, quando viu que não tinha mais saída, descartou até o nome. Pelo lucro tudo é válido. Nojo.
Posição. Por alguma razão é algo levado em demasiada importância. Observo aqui não resquícios, mas uma consequência direta do puritanismo protestante e da moral kantiana. Todos temos que encarnar uma nova mulher de César, porque parecer imoral é pior do que ser imoral. Antes ser imoral e parecer perfeitamente conforme as regras da sociedade do que ser abertamente aquilo que se é. Ser real. O homem fragmentou-se de tal que já nem ele mesmo se reconhece.
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Durante a Quaresma o Frei Gilson, sacerdote do Instituto Hesed (que tanto admiro pela profunda espiritualidade de suas fundadoras), foi criticado por certo exagero penitencial ao propor uma jornada de quarenta dias rezando o Santo Rosário de madrugada, como, pasmem, sempre fizeram não apenas os santos, mas todos os fiéis razoavelmente devotos se preparando para a Páscoa. Ele apenas fez o que deveria ser absolutamente normal, mas o normal hoje é extremismo e o extremismo da lógica do absurdo é o normal. Mas se esse homem conseguiu colocar o Pe. Júlio Lancellotti (sic!) num hábito religioso e dizer algumas palavras sem conter aqueles jargões estúpidos de justiça social, fraternidade ecológica e tutti quanti, ele já tem meu apoio incondicional e, mais importante, minhas parcas orações.
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Dois amigos conversam. O primeiro, visitando a casa da família do outro. Rico, só fala com a mãe por telefone e tudo que ela tem a oferecer como amor são os funcionários que o servem. O outro, o recebe com os pais sorridentes. A mãe prepara uma sopa de algas, prato simples. Serve sorridente enquanto o pai faz piadas sobre o filho no colégio. Ao levar a primeira colherada a boca ele sente algo diferente. Em sua casa tem à sua disposição cozinheiros que já trabalharam nos mais renomados restaurantes do mundo, mas aquela simples sopa é melhor do que qualquer uma que ele já provara.
- É uma simples sopa de algas, mas por que o sabor é tão bom?
- Como assim? Tem a sua disposição os melhores chefs do mundo, tem algo que eles não consigam fazer?
- Tem, algo como isso. Como posso dizer... Tem um sabor quentinho.
- Então é só vir aqui em casa mais vezes.
Realmente, era um sabor quentinho, que ele nunca experimentara antes.
(Hierarchy)
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da manhã inabitável,
ajuda-me a negar
este remorso:
eu só queria uma canção
que não morresse
e a hipótese de um poema
que não fosse
o lugar onde me encontro
uma vez mais,
sem desculpa, sem remédio,
diante de mim mesmo.”
(Rui Pires Cabral)
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