quinta-feira, 24 de abril de 2025

O que foi dito, e o que foi visto

Eis um exercício psicológico: como reagir a uma situação de dessabor. As palavras, graves e diretas, atacam como setas inflamadas. Une-se esta impressão aquela de muito tempo de alguma desavença entre ambos, ainda que nunca tenham trocado mais do que meia duzia de palavras. 

O real: uma interpolação direta a uma afirmação cômica. 

Aquilo criado por uma mente emocional de extrema afetação: um ataque frontal, algo como uma declaração de guerra velada. Mas ainda passível de mais profundas investigações: a posição corporal e sua expressão facial não diziam isso.

Mas quem sou eu para investigar isso e dizer o que significa sua expressão facial ou corporal? Eu tenho apenas aquilo que me foi dito, nada mais. 

Tenho a especulação de uma conversa que ouvi, a qual em nada me diz respeito, excepto pelo fato de que, sendo verdade, talvez seu humor estivesse alterado e, com isso, ele que sempre ignorou minha presença acabou escapando daquela aparência abatida e, por um instante, resolveu atacar um alvo aparente e obviamente mais fraco. 

Mas, repetindo, eu tenho apenas o que me foi dito, e o mais que a minha distorcida cria não vale nada. É apenas um reflexo de uma personalidade carente que idealiza: o homem mais bonito sendo o mais próximo de mim. Uma doce mentira.

O ASCÉTICO

Eu aceitei que sou solitário,
E tá tudo bem, irmão.
Aceitei que sou solteiro,
Por escolha, não por azar

Aceitei que meu amor não me ama,
E isso dói, mas tá tudo bem.
Aceitei que meu não existe,
Ou se existe, eu não vi,
Eu não quis, eu desmereci.

Aceitei que sou um garço da vida,
Vendo casais felizes,
E eu com um drinque na mão.

(Autor Desconhecido)

Ele não me chamou atenção de imediato. Ou chamou e eu não quero aceitar essa verdade boba, porém humilhante? Não, a verdade é que ele não é particularmente lindo. Bonito sim. Quando conversamos, vi que tem algo de bem-humorado, combinando a um semblante entre o sério e o descontraído, germânico diria, mas sem aquela altivez arrogante, foi como se nós, ele, eu e os outros, pudéssemos ficar um bom tempo ali falando qualquer coisa. Mas, como dizia o poema logo acima de autor desconhecido

Eu aceitei
que um homem alto e loiro 
jamais olharia para mim

Assim como a métrica da poesia pode determinar sua força
E eu reconheço que metrifico melhor em prosa que em verso

O que talvez signifique
que eu seja melhor amigo que namorado
melhor ajudante que conhecido
Eu aceitei que eu sempre sou ignorado

E então, ainda que da celeste legião
de todos ele tenha se destacado
fazendo-me de do conteúdo de sua alva túnica 
enamorado

Surgiu do alpendre da capela
da solene procissão a guiar, 
altivo, forte, sereno a caminhar

E quando falou comigo, 
senti meu rosto corado
mas sei que esse instante aflorado
é apenas último sopro de um peito deteriorado

Não um homem como eu
despudorado
que se deixa levar pela novidade do corpo 
inexplorado

Cujo toque acalorado reflita 
um coração queimado
O sentimento novo que parece
deixar o peito ancorado

Na verdade, me deixa apenas no ar a flutuar
A sonhar, imaginar, conjecturar
cenas de carinho que talvez o fariam se envergonhar

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