Gosto desse lugar. É calmo, ou pelo menos assim me parece, ainda que sempre movimentado. Mas é que cada um está absorto no próprio mundo. Então, de certo modo, parece silencioso.
É uma casa grande, e não consegui ver sinais de ter sido aumentada, embora claramente tenha sido modificada por dentro para funcionar como hospital psiquiátrico e não mais como residência. Quem será que morava aqui?
Tem um jardim grande que vai desde a frente até os fundos e, apesar do nome do lugar, não há lírios por aqui. Nos fundos há algumas árvores frutíferas, nessa época do ano há goiabas, acerolas ainda verdes, ambas no meio de alguns anões e bancos de madeira que usamos enquanto esperamos as sessões, outros fumam ou, os mais ousados, sobem nas árvores.
Por toda a parte há o resultado dos trabalhos de pessoas que buscam se recuperar, ou de pessoas que outros esperam que se recuperem. Um grande vaso com flores de papel dobrado, cartazes com desenhos e colagens e, claro, pessoas. É uma visão ímpar.
Dentre os funcionários que andam com listas de nomes e transtornos psicológicos há os muitos pacientes, que aqui chamam de usuários (o que acho particularmente estranho). Alguns são, como eu, pessoas incomodadas com seu transtorno. Outros são pacientes mais graves, não conseguem falar ou, quando conseguem, é difícil de entender, não parecem sequer conscientes de sua condição. Mas ainda é possível perceber o imenso sofrimento pelo qual passaram e ainda passam. Eles dão alguns relatos, entre as reclamações de falta de sono ou disposição. Como relances de lucidez, pontos de luz no meio daquela escuridão louca.
Eu não poderia deixar de encontrar outras coisas que me agradassem né? Um recepcionista me chamou atenção: moreno, com uma marquinha do lado do queixo quase chegando até a bochecha direta, a barba rala e voz grave. Sério, porém conserva um meio sorriso, não sei se motivado pelo trabalho ou por um bom-humor cultivado.
Outro, um usuário (sério não me acostumo com esse nome, parece que estou falando de alguém que usa crack) também me chamou atenção. Ele é autista, e nem precisei ver o crachá de identificação para saber. Sei que seu primeiro nome é igual ao meu, e ele gosta de subir nas árvores. Ainda não consegui identificar quantos anos ele tem, mas tem uma barba grossa, cabelos bem lisos caindo sobre a testa e os óculos grossos de armação preta. Ele fala rápido e eu tenho dificuldade de entender, mas fiquei feliz quando me cumprimentou, mesmo tendo tantos outros no lugar junto com a gente. Talvez tenha notado o quanto eu o olhei? Senti uma abertura e então eu puxei conversa da outra vez, mas não falamos nada muito importante.
Na terceira vez, no entanto, consegui falar mais com ele. Descobri que, além do autismo, ele tem também esquizofrenia, o que me fez questionar sua maturidade, já que ele tem vinte anos (informação também obtida nessa conversa) mas lê gibis da Turma da Mônica, ao mesmo tempo que domina técnicas de calistenia e tem consciência de suas limitações, não gostando de ir à igreja porque sabe que a quantidade de pessoas é um gatilho para crises, mas não se importando com o barulho dos fogos que ele gosta de soltar no Natal e Ano Novo. Toma muitos remédios, e suas mãos tremiam. Toquei uma delas brevemente, depois de fazer um movimento em que sutilmente perguntava se podia toca-lo, ao que ele respondeu positivamente apoiando sua mão na minha e, depois, recolhendo e a colocando sobre sua outra mão, num gesto tímido.
Atualmente meu corpo não responde a nenhum estímulo e minha mente tem medo de voltar a gostar de alguém. Mas gostei de ficar ali, a sombra da pitangueira, que só depois descobri que, na verdade, é um pé de acerolas (não sou particularmente muito conhecedor ou apreciador de frutas) conversando e sentindo a brisa das primeiras semanas do outono.
Gosto desse jardim, não poderia imaginar que, debaixo da grossa camada de nuvens de chuva e poeira que sai das fábricas, haveria um lugar assim. Não diria um lugar de paz, não sei se isso existe, mas,
definitivamente,
é um bom lugar.
E talvez nem seja só esse jardim em si, mas um jardim com o qual eu possa sonhar em sonhar.
E agora o meu caminho eu posso alterar
Se você vem comigo
Num pequeno instante
Posso ser feliz"
(Saint Seiya)
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