sábado, 31 de maio de 2025

Vox Patris

O sol brilha forte, mas a temperatura continua baixa. O bebê sorri com toda sua fofura, e eu me derreto todo, é claro. Encontrei uma playlist de um cantor japonês que não conheço com uma excelente seleção de músicas indie. Comprei uma caneca fofa ontem. É isso, algumas alegrias pequenas, porém ainda são alegrias não é?

O grande Vox Patris se aproxima de sua casa, muitas cidades se encantam com o colossal tamanho do maior sino a ser colocado no Santuário Basílica do Divino Pai Eterno em Trindade - GO. Gosto da iniciativa para lá de ousada de colocar um sino gigante no centro de uma cidade. Num Brasil que adora perder as tradições e inventar modas toscas, a retomada dessa beleza é algo realmente notável. Independente de todas as contradições financeiras e legais, eu ainda apoiaria a causa. Vox Patrix soará retumbante anunciando as horas canônicas e a presença do Cristo na Eucaristia, e o povo de Deus, nação santa que caminha nas estradas do mundo rumo ao céu, ouvirão e entoarão louvores ao Senhor.  

O sino é sinal de convocação. Sempre chamou os fiéis para as celebrações ou outras reuniões públicas, anunciava falecimentos, vitórias, a chegada de visitantes ilustres e, claro, a alegria do Natal e da Páscoa, centro e ápice da fé cristã de onde viam todos os seus simbolismos. E então eu rogo a Deus, que esse sino a ser abençoado por gestos tão belos e simbólicos, ele é lavado ou aspergido, ungido várias vezes, recebe um nome, possa ser um sinal de convocação a cristandade para um retorno, retorno para o seio da Santa Mãe Igreja, obediente ao ensinamento de séculos, sem os achismos de nossa fraca natureza pecadora, mas fortalecidos pelo Espírito que sopra em nós a Verdade que é o próprio Cristo, e que os sinos convocam a ouvir com solicitude e firmeza. 

Assim como as águas do Batismo nos matam para o pecado e ressuscitam para uma vida nova, que seu som nos recorde essa realidade de tamanha gravidade e nos ajude a ter a firmeza, e a beleza, de seu som: que nosso, sim, seja firme e alegre. 

Assim como crismados recebemos a Confirmação do Batismo e o Espírito Santo nos desce de modo a nos tornar defensores da fé, que suas badaladas possam ser uma recordação da força de espírito que precisamos para enfrentar tantos inimigos, incluindo dentro da própria Igreja, que deram ouvidos ao inimigo, "pois não é contra homens de carne e sangue que temos de lutar, mas contra os principados e potestades, contra os príncipes deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais dos males espalhadas pelos ares." (Ef 6, 12).

Também assim como na hora da dor e da aflição recebemos da Santa Mãe Igreja o remédio salutar do corpo, mas principalmente da alma na Unção dos Enfermos, que o som da Voz do Pai nos dê força nessa, que a saúde, não apenas do corpo, se difunda sobre a terra.

Não é um símbolo de ostentação, é a reafirmação da maior coisa já criada: a Igreja prefigurada por Deus desde toda a Eternidade para salvação dos homens. Assim como vimos nas últimas semanas, com os sinos tocando fúnebres, o falecimento do Papa Francisco, mas dias depois cantando alegres a eleição de Leão XIV. Naqueles dias, o mundo todo se voltou para uma pequena chaminé, esperou ansioso por uma fumaça branca e o anúncio de um nome desconhecido por todos que, a partir daquele instante, se tornava pontífice entre o céu e a terra. Por isso toda grandiosidade em nome da Igreja ainda é pouca, pois querida por Cristo desde toda a eternidade e, sendo seu corpo visível, deve refletir ao máximo a glória divina para conquistar o coração duro de nós homens para que um dia a alcancemos lá no céu.

 "A Ele toda honra, glória e louvor pelos séculos dos séculos, amém!" 

sexta-feira, 30 de maio de 2025

Deserto Polar

Talvez tenha sido um dia cheio de informação demais. Crianças demais, lojas demais, conversas demais, TV num volume alto demais, sentimentos intensos demais. Em alguns momentos senti como se fosse atingido por flechas envenenadas: doeram na hora e fizeram com que continuasse doendo depois de um tempo. 

O veneno que elas continham eram sentimentos.

Sentimentos de abandono. Daqueles fins que vieram, ou foram, sem nunca dizer adeus. O pior tipo de fim, aquele que não encerramos porque ainda resta alguma esperança, ou algo assim. Esperança, volta e meia ela reaparece como um problema. 

Amigos em quem confiava, que eu amava, e que se afastaram sem explicação. Amores que, não correspondendo, se afastaram como se olhassem alguém com uma doença contagiosa. Quantas vezes vi indiferença e nojo no olhar daqueles que amei? 

A tudo isso culpo a esperança.

Esperança de que as amizades durariam para sempre. E agora se faço uma lista de grandes amigos, que eu mais via há dez anos, quantos eu já nem encontro mais? Esperança que me fez crer que se me dedicasse, que se entregasse carinho, atenção, eu seria correspondido no amor. 

Ela faz com que a gente tenha dificuldade em enxergar a realidade como ela é. Faz-nos romantizar tudo, enxergar coisas que não existem, amor onde não existe, amizade onde não existe.

E então passo a esperar, por um amor recíproco, por um sentimento que apenas na minha cabeça existe e que ele guarda para si, e não só ele, quando, na verdade, eu faço isso para evitar a difícil realidade: quem iria se interessar por mim?

Tenho evitado me olhar no espelho: cada dia mais gordo, o rosto cada dia mais feio. Tudo em mim causa repulsa. Por nenhuma razão esses meninos bonitos e populares olhariam para mim: também minha personalidade está quebrada. Sou um bipolar com grandes problemas de afetividade. 

E agora tenho esse grande problema para resolver: conseguir voltar, ou começar, a ver as coisas como elas são. A realidade como ela é. Preciso aprender que a grama é verde, que o céu é azul, que os pássaros cantam e que sim, eu vou ficar sozinho. 

Até o fim, e além. 

Meu inferno deve ser um deserto.

Uma massa de ar polar atingiu o país. Embora seja outono, as temperaturas parecem de inverno. Gosto de como as pessoas se vestem nessa época, mas a cidade parece ainda mais silenciosa com todos quietos em suas casas. E eu também me recolho, não apenas para o meu quarto, mas para o profundo do meu peito, para o meu deserto polar, onde ninguém jamais penetrou, embora não haja nenhum obstáculo. 

Talvez ninguém queira habitar um deserto. Tampouco eu quero, mas que escolha tenho?

"Onde você ainda se reconhece
Na foto passada ou no espelho de agora?" 
(Oswaldo Montenegro)

quinta-feira, 29 de maio de 2025

O Fim da Pureza

Ele era popular ou, ao menos, era isso que todos diziam sempre que viam, mas ele não ligava, e continuava quieto. Não era grosso ou arrogante, como também dizia, e aqueles que insistiam um pouco percebiam o quanto era fácil conviver, sorria fácil, pessoa agradável. 

Mas ele tinha aquele segredo, sempre observava seu melhor amigo, quieto, em todos os momentos e, sem que percebesse, permitiu que seu eixo gravitacional girasse apenas ao redor dele. Por isso os outros pensavam que ele era distante, mas, na verdade, ele só estava perdido, encantado em seu amor, ainda sem esse nome, apenas um sentimento puro, cristalino, desprovido de malícia.

E nisso consistia sua vida. Ainda que todas as meninas insistissem em falar com ele, era para seu amigo que seu olhar sempre se voltava, era para ele que seus olhos brilhavam secretamente. 

Pensei nessa pureza de sentimentos. Na beleza singular transmitida em cada olhar, em cada mão que tremia de medo. Não havia malícia ali, não a malícia a que estou habituado, aquela que se manifesta no desejo torpe, ao contrário, o sentimento real traduz-se em um desejo belo, também ele mesmo, pois se baseia, na verdade, do amor. E apenas isso. E essa pureza parece não existir mais, ou ter quase desaparecido completamente dos nossos corações. 

Onde foi parar a pureza do amor nesse mundo? Será que ainda há olhos cristalinos a contemplar o amado?

"Ó cristalina fonte, se nesses Teus semblantes prateados formasses de repente os olhos desejados que trago nas entranhas esboçados!" (Santa Catarina de Sena)

segunda-feira, 26 de maio de 2025

O Voo da Andorinha

A inspiração sempre vem por lampejos, e então se desvanece, como a fumaça de um cigarro ou de uma xícara fumegante de café. Usei essa imagem alguns dias atrás por esse motivo: a inspiração que me veio, interrompida rapidamente pelos que me rodeiam, sem essa pretensão, claro, me fazem recorrer sempre ao mesmo lugar-comum. 

É o que um meio banal faz com um homem de letras, tenta a todo custo reduzi-lo a um dos seus. Por não o compreender, tentam destruí-lo. "Para que tanto livro, se não é nem bacharel?", o questionamento da vizinha de Policarpo Quaresma na obra de Lima Barreto mostra um pouco disso, e complemento com a observação aguda de Goethe, de que "o talento molda-se na solidão, e o caráter na agitação do mundo. Sendo então, como bem ensina S. Tomás, como toda regra geral encontra na sua aplicação particular, o desafio moral correspondente a virtude que se deve buscar, e receber, já que toda virtude vem de Deus.

Em suma, é preciso equilibrar a agitação do mundo, que distrai, mas que molda o caráter pelo contato, como homens santos e pecadores, assim como a solidão, capaz de reter a inspiração ao menos por tempo suficiente para que minhas mãos registrem em palavras aquilo que passou rapidamente por meu coração, como uma andorinha voa rapidamente diante dos olhos, deixando, no entanto, a impressão daquele veloz, aquela linha rápida.

Fugazes também os momentos que perdemos, não dizendo ou não aceitando o que sentimos. Guardamos até quando geralmente se torna tarde demais. E assim, ignorando o que se encontra diante dos olhos, apenas por ser diferente da expectativa, prefere sofrer na indecisão. Esperando a amada perfeita, encontra no amigo a companhia ideal e o amor verdadeiro, mas não corresponde a imagem inicial, e então ambos sofrem. A andorinha voou, restou apenas breve linha de sua passagem, e nada mais no imenso céu nublado, cinza e triste por não aceitarem os sinais tão claros de seus desejos sendo atendidos. Perceberam, ao menos, e esconderam essa verdade num lugar tão profundo que ninguém é capaz de encontrar, que são, um para o outro, aquilo que sempre buscaram?

"Dizes que brevemente serás a metade de minha alma. A metade? Brevemente? Não: já agora és, não a metade, mas toda. Dou-te a minha alma inteira, deixe-me apenas uma pequena parte para que eu possa existir por algum tempo e adorar-te." (Graciliano Ramos)

domingo, 25 de maio de 2025

Morning Kiss

Duas canecas de café fumegando logo no início da manhã. Um sorriso seguido de um beijo de bom dia. Morning Kiss, como dizem nas séries. 

Uma imagem simples não é? Não é como se fosse um conto de fadas com castelos, inimigos políticos e perseguições, é apenas e tão somente um café da manhã e duas pessoas que se amam. 

No entanto, é ainda assim algo tão distante quanto um conto de fadas que, ao menos, existe na pura imaginação das crianças e de alguns que ainda ousam crer no amor.

Na realidade, há aversão, há distância, há uma impossibilidade intrínseca a essa realidade, há um não ser, e apenas isso.

É domingo, e se aproxima o fim do mundo.

Há tantas histórias que eu queria ver, 

e viver, 

mas só sinto uma vontade imensa de dormir, 

de não ver, 

não viver.

Toda noite tem sido o mesmo: grandes quantidades de energético e mesmo assim logo sinto vontade de dormir, porque não sinto vontade de mais nada.

Hoje mesmo, domingo, não saí da cama. Apenas me virei de um lado para o outro, até que meu corpo doesse, até que sentisse, lá pelas tantas da noite, que não havia sequer tomado um copo de água durante todo o dia.

Mas algo em mim ainda pensa naquelas duas canecas de café fumegando.

sábado, 24 de maio de 2025

Fumaça

Um bar num lugar pouco frequentado pela cidade. Um moço dedilha um violão e canta baixinho, como se estivesse engasgado. Não é uma apresentação, apenas alguém que bebeu e resolveu entoar alguns versos. Eu estou fingindo não ver, além de nós dois há somente mais um cliente, absorto numa grande caneca de chopp, mesmo não sendo nem mesmo meio-dia. Mas o que posso dizer? Estou tomando alguma coisa forte que nem lembro o que é. 

Acendi um cigarro, não é como um daqueles lugares que seguem regras idiotas, tampouco estão conscientes de sua oposição ao movimento globalista de engenharia social, apenas ignoram. Vez ou outra o rapaz aumenta a força nas cordas, sua voz sai mais limpa. O balconista esfrega um balcão de madeira brilhante. Com tão poucos clientes não imagino como poderia estar sujo. Entre uma tragada e outra observo a fumaça se embrenhar por entre os raios de sol que passam pela janela e as cortinas verdes ao meu lado, olho para fora, minhas forças são como essa fumaça, se desvanecendo tão logo começam a voar.

Também como aquela fumaça, que logo desaparece, deixando o cheiro de nicotina no ar, também algumas lembranças preciosas me vão desaparecendo. Aquele beijo e abraço de despedida, anos atrás, parecem cada vez mais distantes. Uma imagem deles sai de mim e parece se formar, desaparecendo, desvanecendo-se, logo em seguida. E então, num suspiro inaudível, torno a fechar os olhos e abrir novamente, escutando o homem cantar mais uma vez, algo sobre ter perdido sua amada. E eu o entendo. Aquele beijo parece cada vez mais distante.

Deveria ter abraçado mais apertado, por mais tempo...

Mas não é apenas isso que eu sinto que deveria ter aproveitado mais. Nos últimos dias eu tenho me incomodado em não conseguir aproveitar. Nada. Tenho dormido, e apenas isso. Estar acordado, por pouco tempo que seja, é uma tortura. Mas já faz três meses que estou em repouso, e me sinto bem em alguns aspectos, mas ainda sinto a presença quase intangível e invisível que espreita o meu eu desperto no interior dos meus sonhos mais sombrios. 

E nada mais tem graça, ou sabor, ou brilho. O que eu faço se é tudo assim tão frágil, vazio e sem contorno? Se tudo parece com a fumaça desse cigarro desaparecendo bem em frente aos meus olhos, deixando apenas um cheiro que logo vai sumir também? Assim como a impressão que deixo nos homens bonitos, que logo passam se esquecem da criatura horrenda que por eles passaram. 

"Quanto mais ando querendo pessoas, parece que entro mais no sozinho do vago." (João Guimarães Rosa)

quarta-feira, 21 de maio de 2025

Dia e Noite

Parece que acordei em meio ao ensaio de bateria de uma escola de samba, não conseguia ouvir nem mesmo meus pensamentos. Mas também não conseguia dizer se o que ouvia era meus pensamentos ou o barulho irritante ao redor, ou ambos, aglutinando-se de modo que minha mente ficou confusa demais para eu continuar acordado. Tentei encontrar algo para assistir, mas programas novos ou velhos, nada me chamou atenção, isso porque o problema não são os programas e sim minha vontade. 

E ultimamente minha vontade anda pífia. 

Talvez um abraço apertado ajudasse.

Me surgem pensamentos, de novo sobre o quanto amei, se foi ou não suficiente, mas sei que não passam de pensamentos intrusivos e idiotas, eu já sei que meu destino está selado, e serei eu a fechar o selo de uma vez por todas. Não há mais espaço, ou tempo, para amor. 

Ele nem sequer existe. 

Sinto saudades, mas já cansei de dizer isso. Cansei de muita coisa. Sinto que ainda o amor, mas já cansei de dizer isso também, pois parece que se tornaram palavras vazias, 

como todo o resto.

Começou a chover, é uma madrugada chuvosa com ventos frescos passando pelas frestas da porta grande da sala e pela janela aberta do meu quarto. Pensei em três programas para assistir, mas realmente não quero ver nenhum deles. Meus amigos foram dormir, e eu queria poder deitar no colo de alguém. Patético não é? Eu sei.

Parece que a cidade está chorando, mas eu mesmo não consigo chorar. Talvez um abraço apertado ajudasse.

Parei de tentar encontrar uma razão para a existência, queria ao menos encontrar um motivo para ficar acordado, mas nem isso. 

Droga. 

Se o dia me pareceu insuportavelmente longo, a noite parece que será igual. Talvez um abraço apertado ajudasse.

Droga. 

Amanheceu chorando de novo. Vou voltar a dormir enquanto minhas palavras se perdem no nada como as cinzas de papéis ao vento.

Companhia? Apenas a velha solidão, o ciclo de sinfonias do Mahler e um punhado de remédios pra dormir que engoli com vinho barato.

"Só desejo dormir e guardar silêncio. Estou farto da humanidade." (Albert Camus)

segunda-feira, 19 de maio de 2025

A Negação da Beleza

Season of Love in Shimane

Não me sinto sujo. Gosto dessas imagens, e já disse várias vezes. Acho belas essa combinação de corpos e luzes, olhares e toques, algo de mágico paira nessas coisas. Talvez seja aquele ritmo de respiração do qual já falei antes, simbolo e parte da própria forma do cosmos. O todo em seu funcionamento incompreensível que se manifesta de modo compreensível. O universo inteiro compartilhado na troca entre duas pessoas, dois corações, duas forças que se combinam e explodem. 

Mas poucos entendem, ou entendem apenas essa parte mais imediata, mais baixa. Não são diferentes daqueles que, não entendendo, também só enxergam o imediato, mas não o símbolo que há ali. Me refiro as minhas imagens aqui, mas o mesmo vale para tantas outras coisas e, para usar um exemplo que faria tremer essas alminhas temerárias, também não entendem a profundidade dos símbolos religiosos. 

O homem perdeu isso há muito tempo, consigo perceber essa sentença universal em incontáveis seres individuais ao meu redor. O homem parece não ser mais capaz do símbolo, do belo, ou apenas concebe uma única categoria de beleza, esta ou aquela, sem ser capaz de reconhecer outra que se apresenta diante de si, ou até mesmo em si, e que é tão bela quanto a que eles admiram, mas não percebem que inclusive trata-se da mesma beleza. 

Os corpos dos santos que se entregam a Deus no martírio, ou nos altares, que confessam. Os animais e as plantam que cantam a glória da criação. A música que expressa os mais diversos aspectos da alma, a alegria angélica da 9° de Beethoven ou a 4° de Mahler, a dor da existência na 6° de Tchaikovsky, a transcendência do Juízo Final em Mozart e Verdi. A poesia de um perturbado, os lamentos de um exilado, ou a que canta as glórias da união do amor divino

Mas também o amor que muda uma vida. O toque que, ao provocar na pele a eletricidade do amor, diz mais que todas as letras de um poeta como eu. O olhar que diz mais que todos os filmes medíocres já feitos, mas captado por aquelas grandes obras, muitas delas sem nem mesmo palavras, como a última cena de Solaris de Tarkovsky, reproduzindo a passagem do retorno do Filho Pródigo tal como retratada por Rembrandt. 

Mas então excluem essa beleza. Escondem, em verdade, essa confusão que fazem entre o belo do corpo e do amor e a podridão de uma cultura que mudou o significado de virtude, atingindo inclusive aqueles que querem continuar a buscá-la. Essas alminhas então se ofendem facilmente com o que, em condições normais, seria uma beleza normal. Demonizam o amor e suas demonstrações, jogam ao fundo de suas consciências seus próprios desejos e dividem-sem, tornando-se personalidades fragmentadas, em constante luta contra si mesmas, e não contra o pecado. Enxergam pecado onde justamente poderiam encontrar a cura para as impurezas de seus olhos. E o médico olha o paciente moribundo, e o remédio intocado ao lado da cama, porque lhe despreza a embalagem que ele não sabe como abrir sozinho. 

E então eu me afasto. Me afasto porque vejo que a beleza que enxergo, eles abominam, e eu abomino esse simulacro vazio onde só há beleza numa parcela ínfima escolhida por eles porque não os lembra dos próprios pecados ou porque oferece uma visão bela, sem querer confrontar-se com a sua própria verdade, mas então, como diz o pecador arrependido, "e eu pobre, que farei, que patrono invocarei, quando só o justo estará seguro?" diante da Verdade Eterna?

Eu, no entanto, torno a afirmar que vejo beleza aqui, e creio que essa beleza, é uma das poucas coisas, senão a única, que ainda me permite ter uma centelha de esperança, por causa do calor daqueles olhares e da delicadeza daqueles toques, por causa da verdade daqueles sentimentos verdadeiros e conflituosos, símbolos dos nossos próprios conflitos, mas ali estampados, como tela a ser contemplada, e não lançada ao abismo onde, alimentando-se de nossos medos, torna-se criatura ainda pior a nos devorar.

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

(Álvaro de Campos)

domingo, 18 de maio de 2025

Brilho nos olhos

Tape Worrachai

O barulho foi demais, eu perdi toda sombra de inspiração que tinha, e olha que era apenas uma centelha. E já nem me lembro do que ao certo iria falar. Apenas estou sentado aqui, a cortina aberta pela metade, deixado apenas uma pequena faixa de luz amarela entrar ao lado do tecido verde brilhante, esse ar esverdeado dá ao ambiente uma aparência meio doente, como se algo estivesse errado. 

Durante a madrugada eu tive alguns relances de inspiração, mas foram como os raios de luz que já se perdem no meio das nuvens de uma cidade triste, que parece chorar na maior parte de seus dias, o que, não posso discordar, combinar comigo. 

Me perguntava então, antes de ceder ao sono, ou ao desinteresse completo pelo ser incrustado nas minhas fibras, que talvez todos esses anos eu tenha demonstrado afeto demais. O velho Buck disse que o amor de um solitário é o amor verdadeiro, porque ele ama sem querer nada em troca, já que sua solidão lhe basta. O solitário verdadeiro é, na visão dele, alguém que prefere sua companhia ao invés da sociedade que lhe cerca. Quando ama, ele abre mão disso em função de oferecer sua solidão ao outro, ao objeto amado. 

Não sou um solitário no mesmo sentido que ele. Eu sou um pária esquecido. Alguém obrigado a viver na solidão, não que a ame, mas que vai precisar amar, porque essa é a única saída. 

As nuvens continuam passando, embora pareça um dia preguiçoso, as pessoas ao meu redor estão agitadas, e isso me irrita muito. A luz do sol entra e logo desaparece. O barulho cessa por alguns instantes e retorna. Vou dormir, engoli um monte de remédio, prefiro ficar acordado durante a madrugada, quando é mais quieto. Hoje não quero ver ou ouvir mais ninguém. 

E continuo achando que amei errado, e demonstrei errado. O que será que diz a tradução dessa música que estou ouvindo? Lembro que se chama Natsu no Omoide e já conheci na voz de duas cantoras, e me lembra a melancolia de uma manhã de outono, solitária e, não raras vezes, fria. Será que você não percebe o quão encantado eu estou? Ou estive? E ainda assim optou por ignorar, ou fingiu porque não queria me machucar? 

Ou realmente não foi suficiente? 
Ou realmente não fui suficiente?

Por se foi isso, parece que você e todo o universo estão de acordo. Me sinto insuficiente para absolutamente tudo que já tentei e propus a fazer.

Foi afeto demais? Ou afetação demais? Continuo assustando por ser demais? E agora que me restaram apenas olhos opacos? 

Admiro quem por muito tempo lutou e sobreviveu e ainda conserva a esperança, o brilho no olhar. Pensei nisso enquanto via Tape Worrachai, um ator tailandês ao qual nunca dei muita importância por fazer apenas um papel bobo numa série mediana, mas que agora tem me surpreendido e muito em The Bangkok Boy, aparecendo com esse mesmo brilho no olhar depois de ter perdido o amor, o pai, ter sido preso e lutado muito lá dentro. Depois de tudo isso, ele ainda tem energia para salvar um desconhecido e, com o brilho de seus olhos, conquistar seu afeto. 

Eu ando a arrastar os pés sangrentos, e sinto, como o poeta, sangue, cânticos e espuma nos lábios... Vejo que, enquanto eu demonstrava afeto demais, e enquanto muitos também o fazem, não raramente, para a pessoa errada, a que menos se importa ou corresponde. A vida tem dessas coisas, gosta de jogar na cara, nas madrugadas, o quanto somos burros.

Não me considero uma inteligência elevada, mas concordo com o grande escritor russo:

"(...) O sofrimento acompanha sempre uma inteligência elevada e um coração profundo. Os homens verdadeiramente grandes devem, parece-me, experimentar uma grande tristeza." (Fiódor Dostoiévski)

quinta-feira, 15 de maio de 2025

Silêncio e Discurso

"O inconsciente é estruturado como uma linguagem". (Lacan)

É uma madrugada particularmente silenciosa. E então o silêncio se tornou algo a dizer dentro de mim. Mesmo com os últimos episódios dessa maratona de Until We Meet Again, contemplei-os como quem fita um quadro, silenciosamente, deixando-se penetrar e, de algum modo, fecundar pela imagem. 

Gosto de certos silêncios, e daquela expressão de intimidade que é sentir-se confortável no silêncio com alguém, e eu sou assim. Passei muito tempo sem dizer nada ao lado de que amava e, justamente porque amava, nada precisava ser dito. Isso porque o silêncio em si pode ser bastante expressivo, tanto quanto a palavra. Na música também as pausas são tão importantes quanto as notas. Quem há de discordar do efeito dramático das pausas das sinfonias de N° 6 de Tchaikovsky (no primeiro e no último movimento) e na da Mahler (especialmente antes daquela coda do movimento finale). Assim também entre amigos e amantes. Mesmo no silêncio há um discurso ali, algo que é dito, e isso pode ser bom.

Venho de dois dias particularmente cansativos, e não para mim, mas meu cansaço é apenas expressão de um silêncio emprestado. Eu apenas fiquei ali, porque queria dizer que minha presença era sinal de disponibilidade, para ouvir, para apoiar, secar lágrimas, necessário ou não. E em silêncio ficamos, caminhamos, sorrimos, cumprimentamos conhecidos e desconhecidos. No silêncio contemplamos aquele que velávamos, e algo ele também dizia: nos lembrava com sua finitude a finitude da vida, mas também recordava as alegrias, as mãos calejadas lembravam as lutas, enfim, aquele era seu último discurso, finalmente acabado. De agora em diante nada mais dirá nem lhe será perguntado. A o ouvimos, cada um dentre aquele grupo ao seu modo. E no silêncio assentimos.

Assim como no silêncio assenti uma vez mais as lágrimas do Fluke Natouch e a constante expressão apaixonada do Ohm Thitiwat combinada com sua costumeira seriedade (do personagem, claro). 

Mas é claro é nem todos os silêncios são assim, preenchidos de um significado carinhoso, de uma música ou de imagens apaixonadas. Às vezes o silêncio, principalmente quando constantemente usado para esconder uma resposta, pode machucar. Então, para não terminar esse texto de forma otimista demais, fecho com essa citação:

"A vida é uma tragédia em três atos: desejo, decepção e tédio. E o único final feliz é o silêncio do túmulo." (Schopenhauer)

segunda-feira, 12 de maio de 2025

Andante Moderato

Não me surpreende, não mesmo. Eu sempre soube que era assim. Que a minha importância nunca passou de uma conveniência. E logo depois eu posso ser descartado. Como se nada, e nada realmente é. A vida é emprestado estado, e parece que o amor e a amizade também são. Será que ao dizer que "tudo passa" Heráclito se referia a isso também? É um engano, tenho certeza que o filósofo não tinha em mente os problemas banais aos quais eu me refiro, muito embora, se a transitoriedade do ser tenha em si uma carga de importância vital para ele, a transitoriedade das relações humanas tem para mim, o que acredito ser mais um reflexo da minha imaturidade. 

Queria ter virado a noite assistindo, tinha me preparado para isso até. Mas acabei ficando chateado com uma besteira e preferi ir dormir. É sempre assim não é? Dormir é mais fácil. Mas nem era uma surpresa, antes disso, eu já sabia bem qual era a verdade, mas vê-la diante de mim ainda foi, não um choque, mas um incômodo. 

Estou ouvindo a Sinfonia N° 2 de Mahler, nesse momento o 2° movimento, um Andante Moderato, e me identifico com esse andamento, talvez essa seja a velocidade do meu pensamento nesse momento. 

Mas, de volta a Heráclito, talvez o que ele observou no cosmos, eu observo nas relações, e aí sim afirmo que, entre as pessoas, tudo passa. De repente, por exemplo, numa madrugada fresca de vento seco a soprar, eu escuto Tim Bernardes, música de outros tempos para mim, lembranças de risos, colos, afagos. Tempos que passaram. Olhares que ignoro, risos que ficaram na memória, colos e afagos que não voltam mais. Mas o cantor mesmo disse: "A dor do fim vem para purificar, recomeçar..."

Já faz alguns anos, mas ainda me encanto, e continuo repetindo as mesmas palavras, com a delicadeza de Until We Meet Again. Agora, revendo pela quarta ou quinta vez, eu percebo com mais atenção os olhares, aqueles olhares que tanto esperaram para se reencontrar. Os toques delicados, os dedos que se aproximam, depois se entrelaçam, depois se colocam ao redor do pescoço e do torso na aproximação de um beijo delicado. O tempo também tem uma importância crucial aqui, pois a história que vemos é a continuação daquela interrompida de modo abrupto trinta anos atrás. Eles se reencontram, e sentem que já se conhecem, mas sem entender, só sabendo que não podem mais viver um sem o outro, e de repente o tempo toma outro significado: nenhum tempo pode passar sem que fiquem juntos, porque antes morreram e não viveram seu amor, e agora esse amor precisa viver, precisa ter, finalmente seu tempo. 

Uma vez ele passou, de um jeito triste, mas agora precisa passar, mas passar de mãos dadas.

Tudo passa, mas isso não significa que passar seja algo ruim. Mesmo não tendo vivido isso ainda, acho que algo em mim quer continuar acreditando nisso.

quarta-feira, 7 de maio de 2025

O Mundo Espera em Ti

Uma vez mais ela, aquela que construiu a civilização ocidental, se encontra no centro dos olhares de todo o mundo. A começar por uma intriga cinematográfica, semanas de tensão por um papa hospitalizado e sua morte "repentina" depois da alta até o início do Conclave. Câmeras do mundo inteiro apontadas para a Basílica de São Pedro. Jornalistas levantam hipóteses, traçam perfis, pesquisam, dizem besteiras. Enquanto isso, os católicos rezam. Os cardeais escutam uns aos outros para saber que Igreja o próximo pontíficie vai conduzir, tentando sondar aqueles desígnios divinos dos quais temos apenas relances. Estamos diante da Revelação Divina em sua prístina pureza e, no entanto, nossos corações só podem vislumbrar o que há la no céu, o mesmo céu ao qual imploramos a intercessão na Ladainha de Todos os Santos, enquanto os purpurados caminhavam até a Capela Sistina onde, depois de invocar o Espírito Santo com o Veni Creator Spiritus, observam Jesus Cristo Rei do Universo, com a mão sobre o Evangelho, jurando mais uma vez fidelidade à Igreja e ao povo santo de Deus a eles confiado. E então, vendo aqueles homens carregarem tamanho peso, em busca de um que carregará fardo ainda mais pesado, eu vejo o quanto aquele filme parece pálido, opaco, sem vida. Por mais que digam o contrário, e por mais que muitas vezes até mesmo os católicos vivam o contrário, a Igreja vive, e ela vive porque Cristo vive. Então nada mais propício que um Conclave acontecer durante o Tempo Pascal, é o Cristo cabeça da Igreja que vive em cada um de seus membros, a elegerem um novo sumo pontífice e guiar a Barca de Pedro. 

"E as portas do inferno não prevalecerão contra ela." (Mt 16, 18)

sexta-feira, 2 de maio de 2025

Tempo e Compreensão

"(...) Na solidão o solitário devora a si mesmo, na multidão o devoram muitos. Agora escolha." (Friedrich W. Nietzsche)

Me desculpei por sair rápido de lá, ou melhor, não tão rápido assim, depois de contar essa história para a mãe de um belo rapaz que, aparentemente, sentiu algo em relação a sua vocação. Ela foi contada por um dos bispos de Maputo, Moçambique, o qual infelizmente eu não sei precisar o nome, numa das catequeses promovidas durante a Jornada Mundial da Juventude.

Um jovem vivia numa tribo, pagã, e era filho do chefe e sacerdote. Em algumas ocasiões em que seu pai tinha contato com o mundo exterior, ele recebia algumas coisas escritas, pedidos de pessoas, comunicações de outras tribos... Isso despertou no jovem o interesse pelas letras. Ao dizer isso ao pai, este lhe respondeu dizendo não ser necessário aprender, bastando-lhe conservar os ritos e costumes de seu povo. Mas ele persistiu e descobriu que, ali perto, havia um grupo de cristãos que promovia a alfabetização. 

Tratavam-se de missionário salesianos, que o receberam. Durante um tempo então ele estudou com eles e, sem pressão por parte dos religiosos, ele foi se aproximando daquela mística sublime que eles viviam. Como eles participavam da tal Missa com tanta devoção, a alegria que eles recebiam aqueles que pediam pelo batismo e que se juntavam a eles... Não demorou até que ele mesmo quisesse se converter. Ao expressar ao pai o desejo de ser batizado, ele recebeu a dura resposta "se for batizado, eu não o considerarei mais meu filho". Mas ele foi mesmo assim. Foi catequizado, passou pelo catecumenato e, aos vinte e um anos, recebeu o Santo Batismo. Sem família para retornar, continuou morando com os missionários.

Não demorou até que ele mesmo sentisse o chamado ao sacerdócio. O responsável pela missão, após discernimento com o jovem, o enviou para o seminário em Roma. Anos se passaram, ele formou-se, mas, quando chegou o tempo da ordenação, o bispo adiou a sua e ordenou todos os seus colegas, sem maiores explicações. Alguns meses se passaram e ele, apreensivo, não entendia, mas permaneceu firme até que recebeu do bispo a ligação marcando a data da ordenação.

No dia tão aguardado, após a consagração das mãos do sacerdote com o Óleo Santo o bispo segurou as mãos dele, de costas para o povo e lhe disse: "eis o motivo de ter adiado sua ordenação, você já tem sua primeira missão como sacerdote, vire-se e veja sua família que hoje, depois de mais de uma década longe de você, vem te pedir que sejam todos batizados!" E sua primeira ação sacerdotal foi batizar o pai que um dia lhe expulsara de casa por querer ser cristão.

É uma bela história, verdadeira, tratava-se da história do próprio bispo (pelo que me recordo), e é claro que chorei quando ouvi isso, a força transformadora que uma vida cristã tem, ainda que distante. É a força do Evangelho, o Espírito Santo que sopra sem que dependa do nosso tempo ou da nossa compreensão e nos atrai a Cristo.

Mas o que isso tem a ver com o fato de eu ter saído rápido após o fim da Missa do Sagrado Coração? Bem, eu estava lá para servir, e fiz o que me propus, mas aquela escuridão apareceu novamente, e me fechou os olhos e o meu coração. Eu contei para a mãe de um menino que achei bonito, mas nada além disso, não é como se quisesse me aproximar dela ou dele, pelo contrário. Ao ir embora eu sentia que, além de doente, eu preciso me abrir sempre mais para a graça, sem esperar as mãos humanas, sem querer que seja ao meu tempo ou sem querer compreender sozinho. Fiquei muitas semanas sem tocar no livro dos documentos de Leão XIII, mas eu não conseguiria entender mesmo, então precisei esperar e, essa semana, eu consegui ler vários deles de uma vez. Tempo…  

Algo disso tem a ver com meu coração, com a necessidade sim de sair do quarto, de rezar para o Sagrado Coração, mas também de me recolher, de dormir, de ficar em silêncio ou ouvir música, de ver meu sobrinho sorrir, de chorar quietinho mais uma vez ao perceber a verdade contida nas mensagens que deixam claro que ele não gosta de mim. Essas coisas estão todas interligadas, e elas seguem um tempo que não é meu, uma compreensão que não é minha. É de Deus. 

quinta-feira, 1 de maio de 2025

Um Sonho

Isso é um sonho? Algum tipo de pesadelo? Ou o efeito colateral bizarro de uma anestesia mal aplicada? 

Sinto como se estivesse nu numa estrada deserta, faz frio, o vento corta minha carne, e eu arrasto os pés sangrentos, mas não sei onde vou chegar. É algo tanto quanto psicodélico, os pensamentos vêm e vão, imagens, algo meio etéreo. É quase como se eu fosse dali levado a outro lugar, sentisse toques em minha pele e tocasse outras peles, cheiros de perfumes se misturando, sorrisos, e então voltasse a essa estrada vazia. 

E então fosse de novo, como que arrebatado, levado ao mar, sentindo a brisa fresca no rosto e nos cabelos, ouvindo as ondas quebrando nas grandes pedras, calma absoluta. E então de volta a estrada.

Me vejo entrando numa enorme igreja, repleta de afrescos no teto e grandes e belíssimas imagens, reconheço alguns dos santos ali, e percebo que muitos usam vestes como as minhas, mas não consigo ver o rosto de ninguém. De volta a estrada. 

Não sei como vim parar aqui, não sei o que vim fazer aqui, não sei por onde andei até aqui e não sei por onde voltar, mas voltar pra onde? Tenho um lugar para onde voltar? Na juventude minha mãe sempre dizia que eu devia voltar logo pra casa. Aquele mestre tarado disse que lar é um lugar onde tem alguém esperando por nós. A música diz algo parecido, uma cadeira não é uma casa e uma casa não é um lar se não tem ninguém para amar lá. Ou algo assim. 

Parece haver algo também ao meu redor. Eu sinto seu olhar a espreita, sinto seus tentáculos gelados tentando penetrar a minha mente. Mas eu olho e não consigo encontrar nada, giro em meus calcanhares, sinto as pequenas pedras se misturarem as minhas feridas, meus cabelos nos olhos, mas não vejo nada.

E então sou levado de novo.

Diante do espelho quebrado, 

quebrado, 

destroços, 

desaparecendo 

lentamente

.