terça-feira, 20 de março de 2018

Tarde de outono

Uma tarde quente e abafada metamorfoseou-se numa tempestiva acolhida outonal, apagando do céu o amarelado opressor e dando ao cinza o trono que impera por sobre as nossas vidas, que não mais são abrasadas pelo sol, mas que agora se escondem dos ventos impetuosos das chuvas de março. 

Pelos vidros de uma loja eu observava as milhões de gotas de água, frias como o olhar de uma serpente, serem lançadas com extrema violência por sobre os carros e paredes que recobrem toda essa selva de concreto em que vivemos, ou melhor, em que nos escondemos. 

O céu era rasgado pela luminosidade infinitesimal dos raios, ao passo que os trovões despertavam aqui e ali gritos de desespero. As pessoas se incomodaram com a chuva repentina, e temeram a tempestiva, eu por outro lado me deixei encantar pela surpresa, e me deliciei com a beleza indefensável daquela tempestade de outono. 

As gotas, pequenas e indefesas, chapinhavam contra a superfície dos carros e contra a pele das pessoas, e percebi o quanto algo tão pequeno e belo, como uma porçãozinha de água a cortar o ar, podia ser tão poderoso e tão assustador. Depois de acertarem contra as coisas com a velocidade de um revólver elas se desfaziam e deslizavam com a delicadeza de uma bailarina. 

Naquele momento percebi que, como aqueles pequenos tiros de água, as palavras podem ser dúbias em seus efeitos, a variar pela forma como saem de nós. Podem ser carinhosas como a água que mata a sede e alivia o calor, ou podem matar como os tsunamis, que destroem tudo por onde quer que passem. Podem dar a vida ou trazer a morte... Também o vento, pode acariciar nosso rosto e levantar com gentileza o cabelo da pessoa amada, num afresco idílico e puro, ou lançar sobre a pele despreparada dos homens os tiros de água que ferem a carne. Podem dar a vida ou trazer a morte... 

E não somos nós levados pela vida da mesma forma que a chuva é lançada pelos ventos? Não escolhemos onde seremos lançados, mas ali devemos fazer germinar as sementes que da mesma vida recebemos. E quem sabe quando passar as monções possamos ver florir um belo jardim, alimentado pelas gotas que a chuva ali lançou? Essa é a poesia cantada, por Deus, pela torrente inesperada da primeira tarde de outono desse ano... 

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