segunda-feira, 13 de abril de 2020

Do transcender


"Amizade é querer as mesmas coisas e rejeitar as mesmas coisas, não queira amizade com quem ama aquilo que você odeia." 

(St. Tomás de Aquino)

Essa é, sem sombra de dúvidas, a frase de S. Tomás que mais tem ecoado na minha cabeça nos últimos meses. Faz me refletir sobre o que, ou quem, realmente é importante em minha vida. Antes de definir o quem primeiramente é preciso definir o o quê. 

Sei que ainda estou numa fase profunda confusão, tentando entender quem sou, mas já consigo delimitar, vagamente, as coisas que me são importantes. Na minha vida hoje a liturgia ocupa o primeiro lugar do meu amor. As dores que sinto em várias partes do meu corpo, saldo dos esforços da semana santa, são prova da marca profunda que esse amor deixa em mim, juntamente com a satisfação de saber que, mesmo na privacidade de missas sem povo o Tríduo Pascal foi celebrado de forma digna. Com isso une-se o meu amor a Santa Igreja, meu desejo profundo de dela fazer parte de forma cada vez mais íntima e, sendo a Igreja a Esposa de Cristo, me tornar cada vez mais íntimo do próprio Cristo. 

Após isso vem aquilo que definirei em poucas palavras como a Vida Intelectual, inserindo aqui os meus estudos históricos e filosóficos, bem como a minha lista de aspirações e questões. Todos os meus interesses intelectuais, bem como o aprofundamento na alta cultura, a transformação íntima provocada pela arte capaz de elevar o espírito e dar sentido ao que ensina a ciência. A vida intelectual ocupa uma importante parcela da minha vida. É o desejo pelo conhecimento da realidade, não das mentiras e não dos abortivos de intelectualidade que nos são vendidos habitualmente. O amor pela verdade que, não obstante, se une intrinsecamente com o primeiro item dessa lista. 

Isso me faz perceber, já num vislumbre bastante superficial, o quão reduzido é então o meu círculo daquilo que se pode chamar de amigos. Poucos são aqueles que amam o que eu amo. Na verdade, a maior parte das pessoas que conheço têm verdadeiro ódio por aquilo que mais amo. 

Religião é algo para tolos, algo de limitante, um adorno para pessoas de intelectualidade inferior, dizem os críticos da religião que, no entanto, acreditam em toda sorte de coisas sem nenhum significado mais profundo, ou em qualquer coisa que lhes apresente a eles como a mesma devoção religiosa, que não seja religião. Há ainda aqueles que se contentam com a aparência de intelectualidade. Cultivam títulos e diplomas mas ignoram o conhecimento verdadeiro, aquele que dá sentido à existência do homem. Contentam-se com artigos científicos e transmissões para plateias lotadas ignorando os números que indicam a quantidade absurda de fraudes do meio científico ou a mera superficialidade e puerilidade das teses defendidas com ares de superioridade como sendo produtos de ciência.

O terceiro item de minha lista dista, aparentemente, dos outros dois, mas também guarda uma relação íntima pouco observável para os outros. Trata-se da constância. Amizades, ou melhor, as relações de amizade e amor que temos são constantemente inconstantes. Claro, parte disso deve-se a natureza mutável do próprio homem mas, por outro lado, deve-se principalmente ao atual estado de coisas onde a fidelidade deu lugar a conveniência. 

As nossas relações hoje são, em parte, pautadas apenas na conveniência. Gostamos daqueles que nos fazem sentir bem, e até aí tudo bem se não trocássemos essa pessoa por outra no instante mesmo em que descobrimos outra pessoa que nos faça sentir melhor. Só estamos ao lado de alguém pelo tempo em que esta pessoa nos é conveniente, a trocamos assim que nos parecer mais conveniente. É assim não é Bauman? 

E eu vejo isso a todo instante, com uma crueza brutal da minha parte. Declarações de amor que se desfazem no vento no instante mesmo que no horizonte surge uma oportunidade melhor. A amizade que se desfaz ante o chamado primitivo do sexo, os amigos que se esquecem uns dos outros com o aparecimento de uma mulher. A forma patética e superficial que as pessoas encaram a suas relações hoje em dia são, no melhor dos cenários, razão para náuseas e desejo de uma higiênica distância. 

Isso me dá algumas perspectivas de futuro. A primeira delas é uma perspectiva de espera, paciente, de encontrar pessoas que partilhem das mesmas aspirações que eu. Por outro lado, e essa me parece ainda mais plausível, é uma perspectiva de aceitação da solidão que as minhas escolhas me darão. Posso estar sim, cercado de pessoas que de algum modo me façam companhia e me façam sorrir, mas nenhuma delas ama aquilo que amo e odeiam aquilo que odeio. No máximo podemos alcançar um estágio de conveniência que seja agradável a ambos, mas sem nunca alcançar a verdadeira amizade, aquela em almas gêmeas podem compreender-se mutuamente, trabalhando no crescimento espiritual de ambos. 

O que me resta é relacionar com as almas de outros tempos, coisa que muito felizmente a vida intelectual e a Santa Igreja me oferecem. Relacionar-me com espíritos grandiosos como o próprio S. Tomás, ou um São Boaventura, mas também com Aristóteles e Platão, Dante, Tchaikovsky e Mahler, almas que, cada uma ao seu modo, encontraram uma forma de transcenderem a si mesmas no tempo e no espaço, chegando até mim, como espero chegar a outros um dia. 

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