segunda-feira, 27 de abril de 2020

Para continuar


Existe uma coisa no mundo, diferente de todas as outras em sua essência e na impressão que deixa em nosso coração. Calma, prometo explicar os motivos por trás de uma afirmação tão evidente. 

Existe algo no mundo capaz de fazer o coração se aquecer, não é bem uma coisa que se possa ver, ou um lugar onde se possa estar, mas algo que rodeia algumas ações, alguns sorrisos, alguns momentos. Essa coisa, que eu não sei precisar o que é, como que circunda nosso ser, parece pintar de algum modo com uma cor quente o que antes era frio e sem vida, como uma pequena chama, se acende por um brevíssimo instante, iluminando tudo ao redor. 

Uma pequena chama,
um ponto de luz.

É apenas um brevíssimo instante, um átimo de segundo mas, de algum modo, me faz conseguir continuar, me faz conseguir abrir os olhos novamente ou pelo menos me erguer sem sentir tanta dor. 

É bem difícil explicar, é algo tão íntimo e tão fugaz que não tenho tempo de colocar em palavras o que sinto de forma tão profunda que a linguagem não consegue alcançar. Mas é algo bom, sim é uma coisa boa, algo que eu queria simplesmente poder ter por mais tempo e, não sendo possível, ao menos guardo comigo essa impressão.

Essa coisa, no entanto, existe ao mesmo tempo em que sou dominado pela mais profunda escuridão. Estou habituado, portanto, a luz que aquece e a escuridão que arrefece. Uma escuridão não maligna, mas que suga toda minha energia deixando-me apenas uma casca vazia, inerte, sem vontade para mais nada. Me comparo a uma boneca de trapos, caída, com os olhos fixos em nada, embora esteja olhando alguma coisa.

Essas duas coisas convivem dentro de mim, essa constante dicotomia entre luz e trevas. Há dias em que sorrio e dias que sequer consigo abrir os olhos. Dias em que converso e dias que não quero me lembrar de que conheço ninguém. Há dias e dias. E eu vivo assim, num dia após o outros, tentando conciliar. A solidão que sinto quando quero companhia mas ninguém aparece, e a dificuldade que é conviver quando só quero o silêncio e a solitude.

Não posso dizer que já estou habituado. As vezes eu simplesmente odeio ser assim. Simplesmente odeio sempre querer o que não posso ter, e estar sempre insatisfeito com tudo. Odeio reclamar de tudo, e ainda assim reclamo. Odeio a sinceridade do álcool, que me faz dizer coisas que o meu filtro de sobriedade não me permitiria. Odeio que minha horas de sono sejam interrompidas sem pestanejar por qualquer um. Odeio estar sempre cansado, como se algo estivesse constantemente se alimentando de minhas forças. Aliás, odeio estar sempre esgotado, mas parece que ainda sempre há forças para sofrer, para continuar a me decepcionar, para me entristecer e escrever mais algumas palavras de pura desesperança destilada.

Odeio acordar contente, esperando ter um grande dia e me decepcionar com a longa fila do banco. Me alegrar com o salário recebido e amaldiçoar as contas que o fazem ir embora. Desejar um sono longo mas ser interrompido pelos estampido do alarme dos carros na rua ou pelo despertar natural, quando tudo o que mais desejava era na verdade um último sono, do qual eu não acordasse para mais uma vez olhar esse mundo miserável, de barulhos e pessoas incompreensivas, de vírus e de falsas concepções estéticas.

Eu não sei o que eu quero e, no entanto, sei bem que não quero essa vida. Sei que não quero viver em meio ao caos, já existindo caos o bastante em mim. Sei que não quero a correria, mas não posso imaginar como conseguirei conquistar a tranquilidade. Eu estou cansado, na verdade, e o meu niilismo é isto: estou cansado do homem.

Do ser.

Cansado demais para continuar a viver.

E do que adiantaria continuar? Se no fim todos encontraremos o mesmo fim patético? Se após a morte de um qualquer outro pode ser posto no lugar?

Somo substituíveis, e ninguém é lá tão especial que não possa ser trocado. Outros, no entanto, são trocados a todo momento, e sequer são importantes o suficiente para permanecerem um minuto ou dois. Todos são bons enquanto convenientes, enquanto não encontram coisa melhor, depois disso, somos deixados ao esquecimento. A vida é assim. Movida pela conveniência, pelo que os outros querem de nós. E, quando já não temos mais nada a oferecer, ou quando outro oferece mais, somos descartados.

Como o lixo que somos.

E eu estou cansado, cansado de ser trocado, de não significar nada, de ver que ninguém enxerga sentido na minha existência. Estou cansado de só servir enquanto não encontram algo melhor, cansado de ser a segunda opção, cansado de partilhar meus segredos com quem não dá a mínima, cansado de viver sem importância, de ser só mais um, esperando o momento de ser esquecido por todos e ter a boca coberta de terra.

Cansado.

Cansado demais para continuar.  

Nenhum comentário:

Postar um comentário