sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Abismos Incomunicáveis

Muitas vezes venho tendo um leve sonho, algo como um devaneio, pensando enquanto olho um jardim ou passo na frente de algum lugar, como um café ou uma praça... Penso em nós dois andando por ali, sorrindo baixinho de alguma piada boba, olhando o céu claro num dia raro onde a chuva não caiu aqui, sentindo o carinho da luz em nosso rosto e nossas mãos se tocando levemente. 

Eu sorrio baixinho, quase ninguém percebe porque parece que estou apenas vendo algo engraçado na internet, mas na verdade o meu pensamento está em você, na sua companhia numa paisagem bela, a brisa afagando seu cabelo, ou minhas mãos fazendo carinho enquanto você se deita em meu colo. 

Voltando para a realidade, de profundis clamavi pelo amor, por essa fibra de carne que se consome em chamas, ardendo os corpos que se entrelaçam se unindo de tal modo que já não se distinguem mais. Os gemidos inefáveis, sussurrando nomes e desejos, o suor que escorre em linhas brilhantes pelos traços avermelhados das unhas e o vapor quente que escapa dos lábios cada vez que a intensidade aumenta. Esses mesmos lábios reprimem os gemidos ao se tocarem num beijo, numa expressão genuína de uma força que nasce no íntimo dos homens como fonte que brota num jardim secreto, por entre as açucenas olvidada. 

E então é nesse tocar de lábios que dá-se o início de um encontro entre dois universos distantes que se tocam, que se chocam, como se entrasse em colapso o tecido da realidade que os separa, todos os escudos baixados, mas esses mundos não se destroem ao se tocarem, antes disso, tornam-se maiores, um só, misturando a miscelânea de cores que os compõe, transformando o que antes eram mundos vazios e sem contornos nas mais belas paisagens existentes. É a fusão de elementos díspares, contrastantes, que dão origem ao novo universo.

No entanto, embora culmine nessa relação onde dois tornam-se um só, o beijo verdadeiro nem sempre termina desse modo, pode também ser um beijo de despedida, gentilmente dado no pescoço, por onde passa uma linha de sangue, e que leva diretamente ao coração, e assim transporta toda sorte de sentimentos que ali contém. 

Eu posso sonhar assim, com você algum dia novamente perto de mim? Com você segurando minha mão? Posso sonhar em beijar mais uma vez a linha do seu pescoço? Posso sonhar com seus braços apertados ao meu redor? Posso sonhar com nós dois juntos?

Eu fecho os olhos e sorrio baixinho sabendo que não, eu não deveria sonhar com nada disso. 

X

Um silêncio atroz me constrange, uma ira escorre vigorosamente da lâmina que donde pinga sangue em pesadas pérolas carmesim. O rubro líquido se mistura com a areia marcando-se até que desapareça com o tempo. Uma risada maligna soa longe, mesmo tempo que o barulho seco parece vir do meu lado, ou até mesmo de dentro de mim, escapando como um urro gutural abafado por uma mão poderosa. E então fecho os olhos, imaginando um enxame de vespas brutalmente provocadas que parecem rodear uma plantação, mas foram atraídas pelo sangue, pelo cheiro metálico e doce como o de rosas, para então amontoarem-se no que, na realidade, é carne apodrecida depois de destrinchada pela fúria dos inimigos.

X

Um dia na praia com a família, depois de uma vitória que meu pai e primos consideram importante em algum campeonato de futebol. Eles gritaram muito durante o jogo e continuaram animados hoje nesse passeio. Embora eu tenha me divertido muito eu não consegui compartilhar em nada da alegria deles. Até minha mãe estava estranhamente feliz, as piadas e brincadeiras altas, e eu apenas por perto, ouvindo o barulho das ondas quebrando baixinho (o mar não estava agitado) e observando a imensidão cinza e azul, símbolos do infinito, do transcendente que a tudo circunda e abarca, e essa foi a minha alegria. Nada de gritarias e nem risos, apenas uma contemplação amorosa e silenciosa, poucas palavras foram necessárias. 

Via alguns casais passarem por mim, o péssimo gosto dos homens daqui para mulheres é uma coisa absurda... Mas nem mesmo isso me chamava muita atenção, claro, eu olhava brevemente e voltava minha atenção para o titã que se abria a minha frente. Nem a figura do meu primo despido na minha frente foi o suficiente para tirar de mim esse estado de contemplação que, exteriormente, tanto se parece com tédio, motivo pelo qual minha família pensou que eu estava profundamente descontente em estar ali quando, na verdade, estava sim me divertindo muito mas apenas de um jeito diferente.

Eu gosto de beber quieto, assistindo algo ou ouvindo música baixinho no escuro. Os outros gostam de barulho, risos e jogos, e bebem bem mais do que eu consigo. Eu gosto de ficar deitado perto de quem amo, segurando a sua mão em silêncio, até o sexo é seguido ou precedido de momentos assim, e os outros preferem uma fria distância, quase higiênica. Até gosto de um belo dia como esse, colorido e ensolarado, que vai bem com uma cerveja e quem sabe uma música ambiente que se misture com o som das pequenas ondas se quebrando e o som das gaivotas no céu. Eu gosto disso, mas não corri gritando em direção ao mar e nem sou afeito aos exageros. E tudo bem que eles se expressem assim, muito embora eu prefira a contemplação silenciosa.  . 

Experiências de dias assim me deixam ainda mais consciente de que eu não estou na mesma vibração que as outras pessoas e sim, essa explicação é boba e não explica realmente nada, senão que é apenas um chavão que eu peguei e que uso porque no momento não me ocorre meios literários de dizer isso com mais precisão me restando apenas apelas para o senso poético da coisa e tentar, de algum modo, dizer o que sinto. É como a distância entre o céu e o próprio mar que, parecendo tocarem-se no horizonte na verdade estão muito longe um do outro, assim como estamos todos no mesmo lugar eu ainda estou muito distante de todos. 

Somos, os outros e eu, abismos diferentes e incomunicáveis. 

"Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada."
(José Régio)

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