segunda-feira, 14 de novembro de 2022

O deus do vento gostosão

Eu deveria dizer algo a ele? Deveria falar, mesmo depois de anos sem o vê-lo, o que eu ainda sinto quando penso nele? O que sinto quando vejo como ele cresceu e como agora tem o rosto enfeitado por barba e como toca violão, fazendo uma péssima escolha de músicas? Ou deveria ficar quieto, já que provavelmente nunca mais o verei novamente? 

Parte de mim gostaria de dizer a ele, gritar pra todo mundo ouvir, dizer com todas as palavras e me derramas em lágrimas até que ele sinta o que eu também sinto. E outra parte quer lançar esse sentimento num abismo tão profundo que nem mesmo eu serei capaz de tirá-lo da escuridão onde ele se perderá. E eu não sei a qual parte dar ouvidos.

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Não quero parecer ingrato, porque é isso que acontece com quem ousa enxergar um pouco mais, mas algo precisa ser dito: tudo que exige-se do homem moderno é a mediocridade. Ele trabalha por oito horas, passa mais duas no transporte e, quando chega, precisa lutar contra o cansaço para se divertir ou estudar por uma ou duas horas antes de cair no sono profundo de seu cansaço. E o que passa disso é esforço excessivo, heroico, ou simples preguiça. 

E eu levantei com esse profundo desgosto no corpo, abri as cortinas e vi um belo dia nublado, praticamente um crime sair da cama num dia como esse. E não coloquei cor nos lábios e nem desamassei a camisa, caminhei lentamente pro ponto de ônibus e, sem nenhuma perspectiva maior além de que esse dia acabe logo, eu esperei para cumprir mais um dia da rotina. Alguns dias são ainda piores quando, ao chegar em casa de noite ou cedo pela manhã eu lembro que preciso fazer a barba, que minha pele precisa de algo mais, ou que meu cabelo está ressecado e que, por atender o público, eu preciso me cuidar quando minha vontade era de simplesmente deixar a barba crescer até ficar parecendo um bicho. 

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Belo amor o de Prapai e Sky, amor capaz de sarar as feridas profundas que o monstro deixou. Amor capaz de derramar as lágrimas que o outro não consegue chorar, de sentir a dor que o outro não consegue expressar, atônito, perdido em um mundo de horrores. O amor que mudou Prapai, que curou Sky. Simplesmente amor, sem espaço para terceiros, amor que transborda em preocupação, mãos trêmulas e declarações de amor. Amor que começou como uma única noite de sexo, e que se tornou mais e mais, até tomar tudo, até penetrar nas feridas abertas, começando a cicatrizar e finalizando com um beijo delicado sobre aquela marca que, embora ainda esteja ali, já não dói mais. 

E como é belo esse amor que coloca um no lugar do outro, que faz um sentir e partilhar a dor do outro. O outro que estava machucado e cansado, quebrado por dentro e por fora, e incapaz de esboçar qualquer reação simplesmente porque já não conseguia mais, já tinha chorado todas as lágrimas possíveis, já tinha pedido e implorado por ajuda e não tinha recebido resposta de ninguém. E então, quando tudo parecia perdido, naquele quarto iluminado por um abajur amarelo, eis que chega o Gigante Preto, o Deus do Vento gostosão que, do alto de sua majestade olhou pro outro com amor e o abraçou, o abraçou até que as lágrimas que haviam secado brotaram novamente, de tristeza sim mas também eram elas que iam lavando toda aquele dor, toda aquela experiência horrível, e deixando aquele coraçãozinho aberto pro amor que dali em diante iria iluminar aquele sorriso, tantas vezes obscurecido pelos pesadelos constantes. 

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