domingo, 20 de novembro de 2022

Fumaça

"Eu sinto como se estivesse escrevendo um requiem para mim mesmo." W. A. Mozart

Tomado de súbito por aquele pessimismo e desânimo que já me é tão caro... Enquanto passava por algumas ruas hoje cedo pela manhã e me dava conta de como minha vida mudou nos últimos meses, mas aí fiz um esforço para não me prender a isso e continuar pensando no que é de fato importante: muito embora tenha conseguido sair daquela letargia que por dois longos anos me mantiveram na cama tendo em mente apenas o que poderia aprender de novo que me conectasse com a realidade e que me apontasse uma transcendência é a essa realidade que preciso me fiar. 

Não é na superficialidade burguesa dos que me cercam e que a escondem por trás de um progressismo negativo e destrutivo frankfurtiano levado às últimas consequências na completa destruição do senso estético, de proporções e de qualquer outro senso importante para a percepção da realidade. 

E então de volta ao meu quarto ouvindo as palavras de um de meus professores e conversando com um amigo eu me dei conta, uma vez mais, da minha condição solitária, condição esta para a qual me preparou o meu mestre que então venho tentando enfrentar com o ímpeto heroico que ele me inspirou. E essa é minha realidade: continuo em busca da Verdade, continuo tentando aprender com a realidade, continuo tentando formar a minha imaginação, mas ao meu redor não encontro pares, saio de casa e volto sozinho, sem que no caminho encontre alma que aspire as mesmas coisas celestes. Mas tudo bem, é seguir na companhia não física mas espiritual daqueles que em outros tempos e lugares trilham esse caminho, seja me aconselhando com os grandes santos ou sentado como jovem servo aos pés de grandes mestres enquanto eles proferem suas lições e delas tento aproveitar alguma coisa. 

E uma vez mais eu sou tomado por uma ciclagem durante o horário de trabalho, uma mudança súbita de humor durante o dia acompanhada de um turbilhão de pensamentos, de dores de cabeça, sono e irritabilidade. Só consigo contar as horas para o fim do expediente quando poderei voltar ao quarto e finalmente dormir profundamente, um sono que me apague e que me derrube sem que eu possa ver luz, quero apenas que toda essa confusão, toda essa profusão de cores, esses estardalhaço, desapareçam. 

Mesmo que eu não queira mais falar disso, muito embora o fato da minha aparência continuar a me incomodar principalmente quando abro uma foto e vejo de novo aquele rosto perfeito e sem nenhum defeito e então me lembro que preciso fazer a barba duas vezes na semana, que o relevo da minha pele continua irregular e que meus lábios continuam manchados mesmo depois da micropigmentação e tudo isso é um incômodo. E então eu quero me fechar também por isso, dormir e não pensar em nenhuma dessas coisas, e tudo isso piora muito se somado ao fato de que minha cabeça já está passando por uma tempestade, com as ventania fazendo as copas das árvores dançarem com violência ao som dessa Sagração da Primavera. 

A isso soma-se o fato da minha inabilidade literária e da minha limitada experiência de vida que me faz repetir as mesmas palavras toda semana, como se não me saísse do lugar. E isso me é ainda mais óbvio quando vejo que num conto de Machado de Assis encontra-se mais profundidade humana do que em todas essas páginas em que me derramei como a água que precipita do céu na mesma tempestade de que falei. E como aqueles rompantes de Istravinsky eu também estou tomado por assomos de intensa energia que circula como as linfas e, poucos instantes depois, de uma lente cinza e desbotada que a tudo vai tornando turva e sem contorno. 

Termino a noite extremamente cansado, do dia puxado de trabalho, do calor e das mudanças de humor que me deixaram inquieto durante todo o tempo e, além disso, ainda me encontro com o coração de amor em vivas ânsias inflamado, seja pelo jovem do início da rua ou pelo outro jovem que deixei nas terras vermelhas do Goiás, e nenhum deles está pensando em mim nesse sábado à noite.

Me retraio então, com os braços ao redor das pernas e a cabeça baixa, sentindo assim que aos poucos eu desapareço, me tornando invisível não apenas aos olhos de quem amo, mas sumindo até mesmo de mim, e já sem prestar atenção a mim, indo desaparecendo por entre as fibras dos tecidos, me desfazendo em pétalas ao vento ou como a fumaça de uma vela que queima e se consome entre os amplexos sonhados. E vivo assim, entre a chama ardente e a fumaça que se esvai de modo evanescente se perdendo no ar... 

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