quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Do espetáculo e da luta

Ulysses, 1827 - Jean-Auguste-Dominique Ingres

Sei muito bem que 'não' é a resposta para todas essas perguntas mas, mesmo em meio a correria de reuniões e pessoas falando o tempo todo ao meu redor, eu ainda me silencio, eu ainda me pergunto: será que ele pergunta por mim? Será que ele pensa em mim em cada foto, cada vez que passamos um pelo outro? Será que, nas noites escuras, também o corpo e a alma dele clamam por mim? Se, mesmo num momento tão distante de qualquer aspiração romântica, eu ainda me inflamo de amor assim, será que isso também acontece com ele? Será que é isso que há por trás daquele sorriso tímido? 

Ou aquele sorriso tímido é apenas um sorriso dado a um conhecido na rua sem nenhum significado maior?

É verdade, eu estava inflamado de amor, aliás estou quase o tempo todo. Sempre pensando em você e sempre suspirando pela imagem e a sensação de sentir novamente o seu cheiro, o seu abraço. E sempre que me inflamo de amor eu preciso dizer. Mesmo sabendo que é só um incômodo pra você.

E mesmo sabendo que você nem considera me levar a sério ou pensar no que eu sinto, é tão distante esse sentimento da realidade que não passa de uma brincadeira. Mas quando eu digo que te amo é porque é verdade, e é com toda a minha força que o digo. E é com todo meu ser que sinto também que nunca terei uma resposta, e que continuo sozinho, e que a chuva continua caindo, e eu continuo bebendo e você continua fantasiando com as moças que passam por você e eu continuo chorando.

Tomei meia garrafa de um coquetel barato que achei num mercado decadente aqui perto de casa, e misturei com um ou dois remédios para dormir, um atitude irresponsável que faria, e inclusive fez, várias pessoas me perguntarem se tenho amor a minha vida. E a resposta é que não, não tenho. 

O que eu tenho é um tédio tremendo da existência, uma preguiça das pessoas que eu conheço e que me faz sentir que seria um prazer imenso ou, ao menos, um alívio, se eu morresse e eu não precisasse mais olhar para a cara fechada delas, como se eu tivesse culpa de elas se sentirem assim ou assado e não me falarem nada. E mais: ainda me sinto assim pela completa falta do sentido do amor, sendo que me parece que sempre, sempre, eu amo sozinho e os outros sentem pena ou repulsa de mim, o que me faz crer, ainda com mais força, veemência e profundidade, que seria realmente um alivio se morresse. 

E na missa de hoje cantaram, ou deveriam ter cantado, que "a vida dos justos está nas mãos de Deus, e nenhum tormento os atingirá", e então eu só posso concluir que eu não sou um dos justos, um dos santos, porque toda sorte de tormentos vêm até mim, com uma inquietude, uma incômoda angústia existencial, uma fria constatação da minha solidão, dos meus sentimentos lançados ao vento e se dispersando e desaparecendo como se fossem nada, como fumaça no ar.

Não é que pense que você me veja como monstro, eu me vejo com monstro. A verdade é que você simplesmente não me vê, não vê o que sinto por você. O que me gera ainda outras reflexões: o amor verdadeiro não deveria ser negado porque ele recobre o ser amado de tanto carinho genuíno que não haveria espaço para fugir dele. Como você continua fugindo isso talvez signifique que meu amor não é verdadeiro, ou seja, o que tenho de mais profundo e sincero não é capaz de alcançar o objeto amado, então eu, além de injusto, sou também um mentiroso, incapaz de amar verdadeiramente.

Mas eu te amei, te amo, com tudo que tenho. Mas não foi suficiente. Então não há razão para não encher a cara e, se não for possível morrer assim, ao menos seja possível amenizar a dor de saber que o meu amor não é amado. 

Será que você pelo menos imagina a dor que isso causa em meu peito? Será que sabe quantas vezes eu já quis ser incapaz de amar para não sentir isso?

Então, se é assim que sou, que sentido há em continuar a vida? Por isso a minha completa displicência com minha saúde. Não há razão para desejar prolongar essa existência sem amor, tampouco almejar maior qualidade de vida, a experiência já demonstrou que que isso é aleatoriamente distribuído há alguns poucos eleitos, e não há nada que se possa fazer. Portanto, se o amor não pode convencer, se nem parecesse ser verdadeiro mesmo sendo tudo o que tenho, e se a vida não melhorar não importa o que faça, de que adianta tentar melhorar?

Que fique bêbado e cante como quiser, que faça o possível com respeito aos outros, sem dar importância a moral kantiana travestida de cristianismo que me cerca e sem me importar também com a ingrata resposta daquelas pessoas que, ao meu redor, recompensam meu carinho com brutalidade. No fim somos todos fodidos sem muita possibilidade de mudança, então me deixem encher a cara em paz. 

Só o que digo, quase como a título de epígrafe, é que eu tentei, e infelizmente não consegui. 

Sem invadir ou desrespeitar o terreno daqueles que querem prolongar a sua vida nessa existência miserável eu deixo essas palavras:

"Para que queres tu mais alguns instantes de vida? Para devorar e seres devorado depois? Não estás farto do espetáculo e da luta? Conheces de sobejo tudo o que eu te deparei menos torpe ou menos aflitivo: o alvor do dia, a melancolia da tarde, a quietação da noite, os aspectos da terra, o sono, o maior benefício das minhas mãos. Que mais queres tu, sublime idiota?" 
(Machado de Assis)

Nenhum comentário:

Postar um comentário