terça-feira, 14 de novembro de 2023

O enésimo suplício e a brisa

Satie Logis, 1891 -  Santiago Rusiñol

Eu sinto, sinto demais, eu amo demais, e isso é exaustivo. Meu corpo todo dói, mais do sentimento que não cede nem por um instante do que pelos dias intensos de trabalho... Amar é um suplício. 

Foi uma noite tortuosa demais, e posso ilustrá-la mais ou menos ao sentido do que disse Pirandello: "Aconteceu-me diversas vezes, acordando no coração da noite (a noite neste caso não demostra verdadeiramente ter coração)." Eu me revirava de um lado a outro, o corpo inteiro me doía como se tivesse participado de uma luta extremamente violenta mas, apesar de todo o trabalho, eu sei que a dor maior vinha do fato de que meu coração não se aquietou nem por um instante sequer, que durante os últimos dias, todo o tempo, eu palpitava e tremia de amores, inflamado como na noite escura, no entanto por um amor que me ardia, que me feria, que me cortava, como aço frio, como espada quebrada a me rasgar.

Escondia a minha verdadeira face à medida que a revelava. Se sou realmente filho de Deus, na minha cama se escondia toda e qualquer divindade, ao passo que nos meus desejos se escondia até minha humanidade. Ao mesmo tempo eu me escondia de você e me revelava tão baixo ao outro, e ainda assim me mostrava tão verdadeiro.  Verdadeiro porque eu desejava que você me visse daquele jeito, como o sou de verdade, e que sentisse nojo de mim, que cuspisse minha cara e fosse embora, como mereço, e ainda desejava que partilhasse desse momento de tão intensa dor e que, então, a luxuria se transmutaria em compaixão, sendo que toda essa horrorosa avulsão da forma nívea não era mais do que desejo de sua presença e de sua figura. 

E eu o desejo tanto, tanto, que o dói em mim, que meu peito se rasga, que meus pés sangram ao percorrer esse caminho tortuoso. Completamente preso a esse desejo...

"A mosca que pousa no mel não pode voar; a alma que fica presa ao sabor do prazer sente-se impedida em sua liberdade e contemplação." (São João da Cruz)

Me vejo então como que no desejo de uma transmutação alquímica: entre a voluptuosidade do mercúrio de meus desejos, de minha carência, de meu amor que vive e pulsa e, no outro extremo, a cristalização de nosso amor numa perpetuidade feliz, sendo que o elemento fixador, o enxofre, é o seu coração que, naquele momento adormeceu vendo o pior de mim, que eu tentei esconder ao mesmo tempo em que gritava para que me visse. 

E no meio disso tudo aquela pequena figura representando a fuga mais fácil e rápida, uma pequena fuga da solidão, a mesma solidão da qual me queixei. Mas eu não queria aquela lascívia dialogal, queria apenas afago, apenas um coração que, na ânsia ardente pudesse me permitir aconchegar enquanto, numa cidade fria como metal, tentava dormir e me revirava, incomodado pela sua ausência. Eu queria apenas um abraço.

No meio disso tudo, da noite escura, dos clamores da alma, das preces aflitas e dos gemidos contritos, uma leve brisa, como um holograma disperso sobre o azul da água:

As melhores pessoas
não são as mais amadas
por pessoas.

Outros estados intercedem-nas
a serem sozinhas,
para que interajam
por diferentes caminhos o coração.

E o multipliquem.

As cores podem amá-las mais
do que as pessoas. Os traços. Os riscos.
E as palavras também conseguem percorrê-las 
de amor, feito trigais de estrelas.

(Patrícia Claudine Hoffmann)

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