sexta-feira, 3 de novembro de 2023

Olhar, manto de ouro e sangue

"Quão curiosa é a forma como a Providência mistura para nós, mortais, a alegria e o sofrimento num único cálice." (Thomas Mann"

Admito que estava com sono demais para conseguir interpretar o seu olhar nessa manhã chuvosa, tudo o que posso dizer com certeza é que o sorriso sutil ao me ver me encantou e, claro, precisei cuidar para não rir demais em resposta, não levantar e abraçá-lo ali mesmo no meio das pessoas, já pressentindo até a desaprovação dos pais e dos pares... Mas isso é uma preocupação adiantada, antes disso preciso saber se realmente aquele olhar e sorriso, e os demais olhares que recebi significam. Olhares que desviávamos toda vez que se cruzavam, como era quando ainda nem nos falávamos e ainda pairava aquele ar de intimidação misturado com curiosidade. 

Ele não apenas responde aos meus olhares como, mesmo quando eu me forço a não olhar, percebo que ele continua olhando. Talvez, e só talvez, considerando todas as variáveis familiares e religiosas, eu possa me aproximar pacientemente, afinal a nossa diferença de idade e de perspectivas faria uma aproximação rápida ser estranha e mau interpretada em vários níveis, o que provavelmente o afastaria. E, no momento, eu só quero trazer para mais próximo de mim aquele sorriso e aquele olhar... Olhar que, ao cruzar com o meu num leve sorriso, quase imperceptível a todos os demais, como que teceu no meu peito uma veste gloriosa, alva como a que ele trazia sobre o peito, cíngulo de ouro e um manto dourado, resplendor do amor que, antes velado, poderá brilhar intensamente. 

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Desculpe por estar me afastando quando essas coisas acontecem. É que ao retomar o tratamento tenho tido mais dificuldade em identificar os sinais das ciclagens, e então eu posso acabar falando e fazendo coisas das quais normalmente me arrependo depois. São coisas em que penso sempre mas que o bom senso acaba por filtrar e que nesses dias, de euforia e depressão mescladas em um episódio misto, não sei qual será o resultado. Sempre acabo falando algo desrespeitoso que você, misericordiosamente releva na maior parte das vezes com bom humor mas eu sei que você não deveria passar por isso e eu, sendo mais velho e em tratamento, tenho a obrigação de poupá-lo dessas coisas desagradáveis. Você não precisa tolerar os desejos bestiais dos distúrbios químicos no meu cérebro, eu é que preciso aprender a lidar com isso com os menores efeitos colaterais possíveis: que apenas meu corpo e essas páginas conheçam o monstro luxurioso e o diabo ansioso por devorar a sua carne virginal nesses dias em que a consciência se avulta. Você não merece esse suplício, é um fardo que eu devo carregar sozinho e, caso queira correr o risco de recorrer a agentes externos novamente, que também corra sozinho o risco do abate violento. Eu só quero preservar você, que não merece se contaminar com o meu sangue imundo. O sangue que mancha a veste branca e que faz queimar o manto dourado.

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Percebi, não que já não o soubesse mas apenas me deu certo medo, que essa preferência por histórias de amor podem ser tão danosas à mente. Me lembro que Santa Tereza D'Ávila foi orientada por seu diretor espiritual a abandonar a leitura dos romances de cavalaria que, na santa, tinham efeito profundo em seu temperamento. Com efeito, quem chega a ter contato com ambos os tipos de obras percebe a diferença  que resultou naquela que, mais tarde, seria a poesia carmelita, com nomes grandes como os da própria doutora mas como também seu amigo próximo São João da Cruz, Terezinha do Menino Jesus e tantos outros. 

Na poesia carmelita vemos aquela inspiração do Cântico dos Cânticos ressoar ao ouvido desatento de forma romântica, mas o que as flores do Carmelo estão fazendo é perceber a ação do Divino o ordinário e no próprio corpo do amado e, a partir daí, purificar sentidos e espírito afim de alcançar, compreendendo em profundidade o amor, o verdadeiro Amor. É uma subida completa que parte dos sentidos, passa pela purificação, encontra formas elevadas de amar e servir ainda no plano humano mas não se fixa nele, senão que alça em voar até o alto céu, e a letra desses mestres da poesia universal são exatamente isso, registro dessa experiência profunda de amor, um amor tão belo que, mesmo sendo expresso em palavras humanas, nada tem de humano, senão que é todo divino. 

E então percebo que eu só consigo ir até o meio do caminho. Com a beleza que me é sugerida eu até consigo elevar a compreensão do amor, especialmente a doação, o perdão, a compreensão, mas ainda são considerações que se encontram no campo do meramente humano, do esforço do homem para o homem, e não o esforço que faz o homem sair de si para o verdadeiro amor. 

Como consequência eu continuo me debatendo em sentimentos humanos, em busca de uma reciprocidade que não existe, de amores que me foram negados, e continuo me humilhando, mas não de forma a melhorar a virtude da humildade, mas apenas em fomentar um desequilibrado relacionamento com o outro. Preciso fazer o caminho da subida do monte Carmelo de, na noite escura tomar a escada que leva ao jardim fechado onde se encontra o Amado, e essa escada, esses passos que dou, me purificam de meus sentimentos perversos e desajeitados...

Tudo isso porque, todas as vezes que vejo um casal ser feliz, a minha mente dispara em mil imaginações diferentes, e sempre encontra cenários em que pode se destruir, e se destrói efetivamente, destruindo amizades e mergulhando cada vez mais fundo na miséria, vazia e niilista, do amor humano fechado em si mesmo.

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