sábado, 2 de agosto de 2025

O Sim que Nunca Ouvi de Ninguém (Nem de Mim)

O combo para dormir hoje incluiu Fernegan, Ciclobenzaprina, Dramin, Zolpidem e Diazepam. Qualquer um diria que estou tentando me matar, e pode ser verdade, embora eu ache que eu só não estou evitando morrer. Na verdade, não seria ruim, e por isso insisto em dormir, ficar desperto é um incômodo profundo.

Acordei confuso, com muitas mensagens no celular e nenhuma vontade de responder.

Ainda assim fui para a Celebração do Sagrado Coração, onde pelo menos minha função me permitia ficar quieto. Mesmo assim voltei para casa exausto. Tantas pessoas, por alguma razão o sentimento de falta de sacralidade, me deixaram com um vácuo absurdo. Nem sequer consigo exprimir direito. 

E então o resultado é este: cá estou eu, noite de sexta, absolutamente sozinho, tomando energético pra ficar acordado e planejando tomar remédio de novo para dormir durante o dia. Pena que a previsão é de calor. 

Acordei confuso, com muitas mensagens no celular. Mas nenhuma delas me agradou, nenhuma delas era o tipo de mensagem que eu queria receber.

Ao mesmo tempo que me sinto solitário, com a carência latente, me sinto completamente incapaz de me aproximar de outras pessoas. Mas o que aconteceu? 

Fobia social? Decepções sucessivas num número maior do que posso contar que me deixaram ferido e com medo de me relacionar? O fato de continuar sendo o amigo que resolve os problemas, mas nunca o amigo que chamam pra beber na sexta? E se chamassem, eu iria? 

Li em algum lugar que, qualquer coisa como "talvez", "vamo ver" ou "eu não sei" e variantes = não

"Não sei se quero" = não quer

"Talvez eu vá" = não vai

"Preciso pensar" = já decidiu e a resposta é não

O "sim" é sempre muito claro. Qualquer resposta diferente de sim, é não.

É uma lição valiosíssima que eu devia ter aprendido muito antes de as coisas ficarem assim. Frágeis, vazias e sem contorno. Eu demorei muito, bem mais do que deveria, que o "sim" é sempre muito claro. Mas já não cobro isso de ninguém, apenas de mim mesmo. Eu já desisti de respostas claras e, principalmente, já desisti de mim mesmo.

O combo para dormir amanhã vai incluir Fernegan, Ciclobenzaprina, Dramin, Zolpidem , Diazepam e umas trinta ou quarenta gotas de Rivotril. Minha dopada candura é poder me desligar do mundo ao redor.

Devo acordar em algumas horas, e talvez devesse desligar o celular para não ver nenhuma mensagem.

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Altos, Baixos e o Lugar Nenhum

Altos e baixos. A vida continua como um pêndulo. No sentido descrito por Schopenhauer, entre ânsia de ter e o tédio de possuir, mas também, a meu ver, num sentido ainda mais pessimista, como um náufrago que, levado pelas ondas incontroláveis de um oceano brutal, às vezes consegue enxergar a luz clara do sol e outras vezes apenas vê e sente o peso obscuro da água que o sufoca. Altos e baixos.

E o sufoco é algo que sinto constantemente, como se nadasse, corresse, em círculos, um mero macaco andando em círculos na palma da mão de Deus, sem nunca chegar a lugar nenhum. Lugar nenhum. Esse parece ser o meu destino.

Altos e baixos. Em alguns momentos eu quero me cuidar, falo de skincare com os amigos, volto a acompanhar os lançamentos, até me animo em comprar. E no dia seguinte eu sequer consigo sair da cama, quanto mais usar o que quer que seja. 

Altos e baixos. Em alguns momentos pensar no amor, no sentido abstrato ou cristão do termo, me enche de uma luz quente, inflamado, como dizia S. João da Cruz. Mas, como também o dizia no início do mesmo verso, me encontrando em plena noite escura, me perguntando se um dia voltarei a amar. 

Acordei com uma incômoda enxaqueca, não sei se causada pela variação térmica de 10° dos últimos dias ou se é apenas reflexo do desequilíbrio químico no meu cérebro. E então, ontem me obriguei a participar de uma reunião inútil e hoje tenho outro compromisso, mas, a bem da verdade, eu só queria um remédio que me fizesse dormir o dia inteiro. 

Só queria conseguir ser um pouco mais constante no sentir, sem tantos altos e baixos. Sem amar com tanta intensidade ou tanto desprezo, sem mudar tão rápido, sem perder o brilho como fogos de artifício que voam, iluminam e logo depois se apagam. Sem estar com a mente repleta de barulhos ou em completo silêncio.

"Os olhos nus. Em verdade vos digo que chegará o dia em que a nudez dos olhos será mais excitante do que a do sexo." (Lygia Fagundes Telles)

quinta-feira, 31 de julho de 2025

Entre Leituras Inacabadas e Campos Amarelos


Não consegui me ater a uma leitura mais complexa, e me senti um pouco frustrado por isso, mas talvez ainda não seja o momento. Ao contrário do que pensam aqueles idiotas que outrora eu deveria obedecer, eu não estou de férias no CAPS, mas me tratando, enquanto noto inclusive alguns sutis sinais de esquizofrenia na minha conduta.

Me contentei em abrir um pequeno livro de eclesiologia, nada muito extenuante, que consegui vencer em poucas horas e que, felizmente, se encaixa bem com minha linha de pesquisa maior. Ainda fazem parte desse todo que eu quero explorar o simbolismo oriental e a perda do simbolismo no ocidente, bem como seu impacto na teologia cristã, de modo que, por meio do esvaziamento daquele, se deu o esvaziamento do próprio cristianismo. Fato facilmente verificável na futilidade teológica que vemos em nossas paróquias. Bem, ao menos não fiquei completamente paralisado e dei um passo, ainda que mínimo, no que, penso, possa me resultar num livro futuramente, ou uma série deles. De todo modo, se não acontecer, ao menos eu entendi, e estando minha consciência em paz, já estarei grato. 

Imaginei caminhar por um campo de girassóis, estão floridos nessa época do ano. O amarelo daquelas flores contrasta com o céu opaco. Embora algumas pessoas estejam comigo, sinto mais a presença de cada uma daquelas plantas, e tão somente elas. Um belo rapaz caminha no caminho ao meu lado, estamos separados por alguns metros de pés de girassóis, mas é mais do que isso. Ainda que eu corresse por entre as flores, eu jamais poderia alcançá-lo.

Andei um pouco por um bairro mais movimentado aqui, e me arrependi dessa decisão menos de dez minutos depois de ter saído de casa. Sei que passei a maior parte do tempo apático, mas já foi uma evolução, eu acho. Ao menos eu saí não é? Talvez seja isso que chamam de funcionalidade, conseguir cumprir as demandas, no caso comprar presentes pra minha irmã e meu pai. 

Fui direto pra cama quando voltei e dormi um pouco. Ainda estou um pouco travado na leitura, embora considere a lentidão na leitura ainda melhor que leitura nenhuma, ou quase isso. Como comecei falando, não tenho conseguido me concentrar em nada muito complexo, como o livro de Victor Frankl que comecei, mas estou conseguindo acompanhar aos poucos as Vinte Mil Léguas Submarinas de Julio Verne. Mas a reunião de hoje, essa eu vou adiar. Não estou com paciência pra encarar todas aquelas pessoas que acham justo fazer uma reunião para organizar uma festa enquanto fazem aquele teatro ridículo que foi o Cerco de Jericó. Objeção de consciência com pitadas de fobia social.

E já tinha até aceitado que iria, mas, de repente, me sobreveio uma melancolia profunda e, atendendo ao chamado grave do abismo, resolvi fechar os olhos e ouvir a poderosa Sinfonia da Ressurreição de Mahler. Quem sabe eu ressuscite também? 

Há dias em que o coração
amanhece com um pranto
guardado no canto

Um pranto manso, que não grita
mas insiste em escorrer - silencioso - 
por algo que nem sei se foi, se é, ou se será.

Choro pelo que já se desfez.
Choro, talvez, pelo que nunca chegou a ser.
E também por tudo aquilo que existe só no pensamento...

... nas mil possibilidades que a vida poderia ter tomado ou ainda pode tomar.

Não é tristeza. 
É uma melancolia que me visita com as mãos vazias
e ainda assim consegue me tocar inteira.

É um lamento sem nome, sem forma,
como uma saudade de algo que nunca tive.

(Alma Poética)

terça-feira, 29 de julho de 2025

Entre o Silêncio e o Asco

Tem um monte de coisas que eu queria falar com você, mas não é possível. Meu interior quer partilhar com você, por que é isso que os amigos deveriam fazer não é mesmo? Mas eu não posso, e percebo isso quando você vem em minha direção como um tsunami prestes a destruir tudo, sem deixar espaço pra mais nada. Você é um fenômeno da natureza em mim.

Sei bem que esse sentimento é resultado da aglutinação de vários elementos, os quais preciso graduar com relação à realidade e não a minha resposta emocional. O primeiro desses elementos é a sociedade ao meu redor, que me induz por todos os lados a mediocridade da personalidade, valorizando a subjetividade ao invés da realidade, tornando-me um homem incapaz de amadurecer. Essa imaturidade resulta numa falta de senso das proporções, e percebo isso com uma clareza brutal ao ver a importância que dou a essa parte da minha, desperdiçando uma energia que poderia com muito mais proveito ser aplicada ao estudo do que a mera ruminação sentimental. 

Por fim, não menos importante, é a dificuldade que é enxergar as coisas como elas são quando até a química do meu cérebro se desajusta a todo momento. Vivo sempre nessa montanha-russa. Tendo impressões erradas a todo instante que me levam a atitudes que, por fim, me deixam só. 

É mais uma madrugada fria. Embora eu goste do inverno, o acho particularmente solitário. Ainda mais quando olho no espelho e tenho nojo do que vejo, e imagino o nojo que os outros teriam ao ver o mesmo. Por isso venho tentando desaparecer. Acabo então guardando também mais coisas para mim. 

Não disse a ninguém que, tendo engordando, e ficado tanto tempo deitado nesse episódio depressivo, que minhas virilhas estão sujando minha roupa de sangue. Também não disse que ao trocar fotos com um semi desconhecido num aplicativo de mensagens ele me bloqueou assim que me viu nu, ou seja, uma confirmação do asco que sinto de mim mesmo. 

É mais uma madrugada fria. Saí de alguns grupos porque não quero conversar muito com ninguém. Talvez na outra semana, ou quando receber meu próximo pagamento, eu vá ao cinema sozinho de novo.

É mais uma madrugada fria e eu, fera muda, já não grito Eu no coração do mundo.

O Peso de Abrir os Olhos Outra Vez

Eu sei que cheguei ao fundo do poço de um episódio quando vou dormir pedindo a Deus que não acorde no dia seguinte. E então eu abro os olhos do mesmo jeito na maldita manhã seguinte. 

Esperei demais para começar a escrever, o barulho falou mais alto, é sempre assim. E aí as minhas ideias ficam confusas e eu não condigo sintetizar direito. Esse pequeno acontecimento diário é um reflexo também do que se passa no meu coração. Uma pedra lançada sob a superfície de um lago cristalino que, no fundo, esconde revoltosas correntes. 

Eu sei que cheguei ao fundo do poço de um episódio quando vou dormir pedindo a Deus que não acorde no dia seguinte. E então eu abro os olhos do mesmo jeito na maldita manhã seguinte. 

Os raios de sol como penetras pelas frestas das cortinas, tingindo o quarto de um verde-amarelado, vivo. Olho pela janela e constato que, apesar da queda de temperatura, o sol brilha forte.  Qualquer um sentiria animação diante dessa visão. Mas eu não, minha única vontade é a de voltar a dormir, mas sem acordar.

Eu sei que cheguei ao fundo do poço de um episódio quando vou dormir pedindo a Deus que não acorde no dia seguinte. E então eu abro os olhos do mesmo jeito na maldita manhã seguinte. 

É um inferno, meu inferno particular, preso nos recessos da minha própria mente. 

segunda-feira, 28 de julho de 2025

Notas Perdidas Entre Wagner e Mahler

“Sra. Marie Krøyer no jardim em Skagen”, Peder Severin Krøyer

Devia ter aproveitado o tempo sozinho para escrever. Agora, rodeado de vozes, eletrodomésticos barulhentos e tudo mais que se possa imaginar. Penso se poderia me esforçar em organizar melhor a casa. Principalmente agora que finalmente fui demitido, tem tanta coisa fora do lugar que, não raras vezes, fica difícil conseguir organizar o pensamento.

Mais uma vez recorro aquele movimento circular entre a forma da mente e o mundo exterior. Mas acho que também não daria certo. Observo certa relutância das pessoas daqui em manterem uma organização que favoreça uma comunicação mais efetiva entre quem somos e onde estamos. Parece que só eu observo isso. 

Amanheceu bonito, a despeito dos 10° graus de amplitude térmica dessa noite e dos próximos 10° a menos previstos para amanhã. Estava meio nublado, mas alguns raios claros de sol conseguiam transpor a grossa camada cinza. A persistência dessa luz, no entanto, venceu, revelando um céu claro, de um azul belo, vívido, ao mesmo tempo, calmo e delicado. Visão bela. 

Me perdi por entre as conversas, uma tentativa bem ortodoxa de uma protestante de me corrigir, enquanto tentava ouvir a Vorspiel un Liebestod de Tristão e Isolda, de Richard Wagner, e a Sinfonia N° 3 do Mahler. Em vão. Sem possibilidade de concentração. Por isso continuo preferindo as madrugadas,

Mas, além disso, me entupi de remédios, além dos tradicionais Rivotril, Diazepam e Miosan acrescentei também um Dramin. Bom, só espero sono mesmo. Queria mesmo era ter voltado a dormir no momento infeliz em que acordei. Pelo menos já sinto o sono chegar, e não devo resistir a ele. 

"Existo à base de algo que não conheço. Apesar de toda a incerteza, sinto a solidez do que existe e a continuidade do meu ser, tal como sou. [...] Achar que a vida tem ou não sentido é uma questão de temperamento. Como em toda questão metafísica, as duas alternativas são provavelmente verdadeiras: a vida tem e não tem sentido, ou então possui e não possui significado. Espero ansiosamente que o sentido prevaleça e ganhe a batalha." (Carl G. Jung)

sábado, 26 de julho de 2025

Sobre Desistir

Obra de Sasha Hartslief

Mais uma noite em que planejava ficar acordado e assistir, mas acabei desistindo. Não é que a reprise de Hidden Agenda não me tenha prendido, mas de repente, mesmo achando que estava começando a estabilizar, senti de novo aquela dor de cabeça incômoda e a disposição se esvair por entre as fibras do meu corpo.

Mais cedo o barulho me incomodou, e eu não conseguia pensar direito. Agora, tudo é silêncio, como se olhasse uma parede vazia. Quero dormir. Mas não só dormir. Quero dormir de novo quando acordar amanhã, e não ver esse dia desgraçado que é o domingo, mesmo que todos os dias se pareçam com domingo atualmente. Quero acordar só na segunda, ou nunca. Quero acordar quando a química do meu cérebro estiver equilibrada. Quero acordar quando conseguir ver algo além de desesperança no meu futuro. 

Enquanto penso no que mais escrever, já que obviamente minhas experiências de vida estão tão limitadas que já nem sei mais sobre o que falar, e não tenho conseguido ler o suficiente para mudar isso, escuto uma versão da Sinfonia N° 4 de Mahler pela batuta de Leonard Bernstein que, confesso, achei mais fraca que outras peças que já ouvi sob a regência dele. Ou talvez seja meu desânimo falando mais alto. Se, ao fim da sinfonia, somos apresentados a certa concepção de que um longo andamento humano não é páreo para uma breve música dos anjos, eu tento encontrar e entrada para esse mundo.

Mas fui deixado no silêncio, uma vez mais. Não sei se queria companhia, ou se queria pedir pizza. Fico pensando que sempre falta algo para que eu realmente tenha vontade de ser. Que me falta uma bela casa, bons amigos, boa aparência, um bom namorado. Mas eu sei que não é verdade. O que me falta não é algo externo como essas coisas, não. Minha ausência é algo intrínseco a mim. É uma parte que falta no meu próprio ser. 

Mais uma noite em que planejava ficar acordado e assistir, mas acabei desistindo. Não de ficar acordado, mas de mim mesmo.

"(...) Eu às vezes tenho uma saudade de uma coisa que eu não sei o que é, nem de donde, me afrontando." (João Guimarães Rosa)

sexta-feira, 25 de julho de 2025

A luz que não passa

Consegui encontrar alguma força para ir, ainda que sozinho. O que sentia durante toda a experiência? Bem, não é como se eu tivesse tomado a decisão de fazer isso sozinho. Não. Era apenas a aceitação, quase estoica, de um destino a mim imposto. Eu não escolhi ir sozinho, o fui porque não tinha outra opção além dessa ou ficar em casa e não fazer o que tinha vontade. Mas não tive sequer ânimo de comprar chocolates ou entrar numa loja de presentes para ver canecas. Não. Só conseguia estar super consciente da minha condição: completamente sozinho. 

Percebia a cada passo solitário, que realmente sou aquele do qual todos se lembram num problema, mas que, em momentos como aquele, que gostaria de partilhar uma alegria, singela e até comum, eu olhava ao meu redor e não encontrava ninguém. 

Estava lá, sozinho, mas não por escolha minha.

"Atualmente percebo, com toda a nitidez, que eu mesmo, em virtude da minha ilimitada vaidade e, por conseguinte, da exigência em relação a mim mesmo, olhava-me com frequência, com enfurecida satisfação que chegava à repugnância e, por isso, atribuia mentalmente a cada um o meu próprio olhar." (Fiódor Dostoiévski)

X

Podia. Houve um tempo em que podíamos falar de tudo. Então tudo isso mudou quando você começou a enxergar erro e falsidade onde havia beleza, descartando tudo que se parecesse com o pecado, ainda que fosse oposto a isso. Você não percebeu, mas ao fazer isso, levantou uma barreira entre nós. Você não a enxerga, mas para mim ela é não só visível como palpável, uma gigantesca muralha de cristal, refletindo ambos os lados. A beleza que tento te mostrar não chega a você, e você se fechou num estado de contemplação surpresa onde, imobilizado pela grandeza do que vê, é incapaz de avançar justamente porque dar um passo significaria aceitar que há beleza após esses umbrais que você evita transpassar.

É triste, pois a muralha também impede que meu amor o alcance, e então você, ao olhar o que supostamente seria seu horizonte, enxerga apenas as possibilidades que dele me excluem completamente. Incapaz de ver a verdade em meus sentimentos. 

Por isso eu só posso me lembrar com saudades daquela época, em que podíamos fala de tudo, e que não parecia haver uma barreira tão grande diante de nós. Os reflexos de sombra e luz que você julga serem a verdade são, em verdade, reflexos do seu medo. Medo esse alimentado por um puritanismo que contaminou seu coração, impedindo que você usasse a luz da Verdade para limpar aquilo que lhe era realmente útil, bom, justo, daquilo que lhe era sujo. Em verdade é uma linha tênue de se distinguir, mas a muralha que você ergueu também me impede que eu o ajude. Logo, o que você vê, essa luz brilhante, na verdade esconde as sombras que se aproximam lentamente do seu coração, como tentáculos silenciosos, prestes a joga-lo no mesmo abismo do qual você julga fugir. 

"Mas o destino não é o único
culpado
nós desperdiçamos 
nossas oportunidades,
nós estrangulamos 
nossos próprios corações.

Uma pena, uma pena, uma pena."

(Charles Bukowski)

quinta-feira, 24 de julho de 2025

Sob a mercê

Tragédia anunciada. Queria escrever e logo cedo percebi que não seria possível. Barulho, muito barulho. Não uma sensibilidade auditiva nem nada do tipo, mas crianças chorando, panela de pressão, pessoas gritando, entregas sendo feitas. Talvez seja essa uma reclamação "burguesa", do tipo Odete Roitman reclamando do Brasil, mas adorando uma carne nacional, se é que o leitor me entende. Eu também amo uma carne nacional, já que não me tem sido oferecida nenhuma carne asiática. 

Acontece que cada um necessita de coisas distintas. Tenho um amigo que há anos sai quase todos os dias do trabalho e da faculdade para um barzinho, nem sempre para ficar bêbado, às vezes completamente fora de si, mas para encontrar amigos, conhecer pessoas novas, ouvir música e beber. E ele fica radiante com isso, cada vez que o vejo assim eu o sinto feliz. Não sinto que é uma fuga, até pode ser, mas um hábito, algo que o faz feliz, e fico feliz em vê-lo assim. 

Mas eu amo o longe e a miragem. Outra amiga me disse que eu era como uma ideia, um conceito pairando no mundo das ideias, porque me sinto triste quando estou sozinho e quando estou acompanhado, e é verdade, infelizmente. Eu preciso de silêncio, espaços, vírgulas, reticências. 

Preciso fechar os olhos durante uma sinfonia de Mahler ou um concerto de Rachmaninoff e então deixar fluir pelos dedos algo que vem do coração. Do contrário, me restam dias como hoje, exaurido pelo barulho, indo dormir ao meio-dia, incapaz de continuar. 

E hoje eu queria tentar ir ao cinema sozinho, mas tomei tanto remédio que provavelmente só vou acordar amanhã. 

Queria tentar fazer algo só. 

Queria, 

só uma vez,

não ficar a mercê do que querem os outros para mim e ignorar o que eu quero. Eu queria tentar ser só e ser feliz, ou ao menos satisfeito, já que, estando só sempre, acompanhado ou não, essa é a minha forma essencial. 

"O seguro desemprego acaba, e lá estamos nós, como ratos: sem nenhum lugar para se esconder, ratos que precisam pagar o aluguel, com barrigas que sentem fome, caralhos que ficam duros, espíritos que se cansam, e sem educação, sem profissão. Uma merda difícil de aguentar, como dizem, essa é a América. Não queríamos muita coisa e não conseguíamos nada. Era tudo uma merda." (Charles Bukowski) 

quarta-feira, 23 de julho de 2025

Por essas paragens

Meu sobrinho acordou assustado, e começou a chorar, e ninguém conseguiu fazer ele parar. Peguei ele no colo e brinquei com ele por mais de vinte minutos até ele se acalmar. Ele estava com muito sono, encostava a cabeça no meu peito, mas não conseguia pegar no sono. Depois de parar de chorar ele tomou um pouco de leite com chocolate e, ainda minutos depois, pegou no sono. A imagem dele encostado em mim sempre me marca bastante, especialmente depois que ele para de chorar. De algum modo aquele pequenino confia em mim, se sente confortável o bastante para sorrir e dormir quietinho no meu colo. A pureza delicada desse momento é uma lembrança cara, a qual eu nunca imaginei ter, afinal, nunca imaginei ser pai e, mesmo sendo apenas tio, essa é uma experiência que me faz repensar sobre tudo: sobre uma pequenina pessoa, incapaz de sobreviver sozinha por algumas horas, dormindo paciente e confortavelmente em meus braços, sorrindo quando eu brinco, e se acalmando quando a acalento. 

Essa breve visão é um tipo de, como poderia dizer? Pense num caminheiro a cruzar agrestes escarpados, ventos fustigantes a castigar seu rosto, depois um deserto escaldante, meses longe de sua cidade, sem lugar para repousar a cabeça, e enfim, no meio do caminho ele encontra um bosque, onde pode sentar-se na beira de um riacho e refrescar sua face, saciar sua sede com aquele fonte cristalina e a fome com as frutas que crescem ali perto, ao alcance da mão. É um sorriso do mundo para um homem cansado, caminhando sem rumo, mas que, por instantes, pode contemplar alguma beleza que não as dores de seu corpo ou as estradas da vida. Essa contemplação, de um viajante silencioso, é assim, silenciosa, amorosa. Ele observa ao redor e cada detalhe se imprime em seu coração. Lhe servirá ao retomar a jornada uma vez mais.

A beleza desse bosque é essa. Ele, no entanto, não pode ficar apenas ali. A caminhada continua, a beleza fica para trás até que se encontre outra. O homem então deixa ali aquele instante, leva consigo suas memórias, e fica aguardando a próxima paragem. Retorna sua jornada, mesmo sem vontade.

Ele caminha, de novo sem saber para onde vai, apenas continua. No entanto, não raramente, ele apenas para e se deita beira da estrada, incapaz de continuar. É como se, a cada passo, seu corpo fosse ficando mais e mais pesado. Quando isso acontece, não importa o calor do sol ou o frio, ele apenas apaga. Muitas vezes acorda coberto de poeira, neve ou próximo a algum pássaro que acha que se trata de um estranho tronco caído, já sem vida. O que, de certo modo, não está errado. É que, de tempos em tempos, ele precisa morrer, ainda que seja essa morte breve de cada dia, porque a vida, contínua, lhe é demasiado pesada. E então ele fita o horizonte, antes de cair em sono profundo,

"Eu às vezes tenho uma saudade de uma coisa que eu não sei o que é, nem de donde, me afrontando." (João Guimarães Rosa)