quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Palavras Secas

Acho que antevendo a empolgação dos próximos dias, o meu corpo vem acumulando energia, meio que entrando em hibernação. Parece que, de repente, tudo ficou coberto por uma névoa densa, que vai entorpecendo os sentidos e me fazendo, pouco a pouco, mergulhar na escuridão do sono profundo. 

Sei que, antevendo a empolgação dos próximos dias, devo me preparar para não falar demais. Sim. Embora na terapia muito se tenha dito sobre criar uma rede de apoio, eu sei bem que, no meu caso, não é assim que a coisa acontece, quando você fala o que sente e o que sofre, o outro não tem compaixão, pelo contrário, se afasta, te diminui. A doença mental é sempre vista como fraqueza, incômodo e, convenhamos, ninguém quer alguém assim por perto. Por eu quero cada vez mais estar distante do outro. 

Pode ser que até presente fisicamente, mas distante. Devolvendo ao mundo a distância que sempre recebi. Me recordo dos momentos sorrindo em mesas com mais de dez pessoas ao redor, sem estar exatamente ali. Como se apenas assistisse a um filme numa tela enorme. Mas eu não estava ali naquela cena, aquela não era minha história. 

Não tenho conseguido escrever sobre mim esses dias, e nem sobre outras coisas também. No momento em que pensei e disse, em voz alta, que queria começar a registrar mais dos meus estudos e impressões para, num futuro, possivelmente usar como base para um trabalho sério, acabei sendo acometido de imediato por um enorme desânimo. 

Pensei em como poderia escrever sobre a linguagem audiovisual das produções tailandesas, coreanas e japonesas e então traçar um paralelo com a Sociologia, bem como coletar alguns aspectos religiosos e aplicar à Filosofia da Religião e à Religião Comparada. Por enquanto seriam apenas anotações, breves apontamentos que, algum dia, poderiam ser usados numa reflexão mais séria. 

Mas, bem, foi pensar nisso que perdi completamente a força de escrever um parágrafo sequer. 

Eu só queria... Não ser assim. Mas não sei bem como queria ser. Mais disposto? Mais inteligente? Mais bonito? Acho que, em verdade, só não queria ser eu. Qualquer outra coisa seria, e isso seria bom. 

Não há poesia alguma nessas palavras, apenas a secura de um homem medíocre que reconhece sua mediocridade.  

segunda-feira, 27 de outubro de 2025

A Montanha da Verdade

A maior parte do seguinte texto foi transcrita da aula 422 do Seminário de Filosofia do Prof. Olavo de Carvalho, com adaptações minhas. 

As pessoas, em geral, não conseguem suportar situações que lhes pese a consciência por muito tempo. Ou se acostumam com ela ou lutam contra veementemente, não raras vezes, desenvolvendo neuroses no caminho. Não é difícil notar o ambiente opressivo em que vivemos, das mais diversas formas: a cada esquina alguém aparece com uma fórmula para salvar o mundo. Vivi isso muito recentemente quando, ao ir ao médico e ele apontar algumas deficiências no meu exame de sangue, as recomendações que recebi prontamente foram inúmeras: alguns disseram que eu deveria mudar minha dieta imediatamente e fazer exercício, outros disseram que o tratamento do médico, a reposição pontual daquilo que necessitava, era apenas um paliativo, e que eu devia buscar na medicina chinesa a alternativa natural para tratar todo meu ser. Comecei a tomar várias cápsulas de remédios naturais, na promessa de, equilibrar o organismo. Depois de algum tempo outra pessoa disse que isso não era natural o suficiente e que eu deveria preparar eu mesmo cada dose do que tomaria. E aí eu desisti ou, em pouco tempo, estaria numa fazendo cultuvando meu próprio alimento sem agrotóxicos e, ainda assim, com deficiência de vitaminas.

Bem, essa introdução é, na realidade, uma anotação. Meus estudos sempre foram baseados na minha memória, mas, recentemente, tenho visto um declínio da mesma, e como esse tema me é caro, quis condensar aqui alguns ensinamentos do Prof. Olavo, de modo que, uma vez registrados, possa voltar a eles mais tarde.

Com exceção do próprio Professor, nunca ouvi ninguém falar sobre o Monte Veritá. Como introdução a esse tema ele indica no livro do Hermann Hesse, "Pequeno Mundo", em que há um conto chamando O Reformador do Mundo, contendo um resumo bastante esquemático da experiência que o próprio autor teve nesse lugar e que, de certo modo, revela também a experiência que muitos tiveram, revelando muito sobre o espírito da época. Não sendo um dos grandes escritos dele, é esquemático demais, dando a impressão de que ele anotou o assunto para retomar depois, servindo como documentação para esse estudo. De modo ainda mais recente, o filme Midsommar também revela, pelo menos até a metade, algo do que é dito na obra de Hesse. 

O conto diz respeito de um jovem que se forma na faculdade de Belas Artes com o desejo de se tornar um crítico de arte, e acaba se decepcionando com a vulgaridade do meio que encontrou, sendo que ele desejava ter contato com a alta expressão de valores autênticos. Ao mesmo tempo então em que ele conhece uma moça muito culta e séria com quem tem longas conversas e por quem acaba se apaixonando, ele também toma conhecimento de uma série de comunidades que propõe um novo estilo de vida, estilo esse que se caracteriza pelo vegetarianismo, pela liberdade sexual, por alguns pendores anarquistas e socialistas, tudo junto, e que se distinguem do resto da sociedade por meio de sua indumentária: usam túnicas no estilo romano, sandálias feitas ali mesmo e que tentam voltar a uma espécie de simplicidade natural, ou que lhes parecia natural. 

Essa busca do retorno à natureza é uma coisa que sempre reaparece, como observou muito bem o historiador Martin Green, que todo fim de século retorna esse tema da volta à natureza. Então em 1790, 1890, em 1990 de novo. Por outro lado, a próprio preocupação com o espírito da época é um sinal do espírito da época, porque nós não temos sinal de nenhuma outra época, anterior ao século XVIII, que se preocupasse com o seu próprio espírito: qual é o sentido desta época, para onde nós estamos indo? E, sobretudo, esse hábito de falar em nome da humanidade, usando o, a primeira pessoa do plural: "Nós estamos indo. Nós estamos experimentando isto." "Nós" quer dizer, vagamente, a humanidade inteira, mas não temos o menor sinal de que as pessoas que falam dessa maneira, tenham pesquisado a opinião pública para saber se todos nós pensamos assim. Então, fica no ar a famosa pergunta: "a gente quem, cara pálida?" Uma coisa pode ser boa para você mas o outro pode estar sentindo outra completamente diferente. Portanto esse estilo de avaliar a nossa situação como o espírito da época se torna ele próprio um sinal da época. E isso se repete de tempos em tempos e tem se tornado uma constante cada vez mais intensa. O número de pessoas que falam a respeito do nosso destino, das nossas vidas é cada vez maior. 

Curiosamente o Monte Veritá foi uma experiência que condensou praticamente todos os movimentos revolucionários, reformistas de tipo Nova Era do século XX. Apesar de tudo, ele nunca foi objeto de estudo como deveria. Claro que há alguns historiadores se dedicam  a isso mas são poucos. Na maior parte dos casos, costumam olhar isso mais como um treco exótico: como se fossem um bando de malucos. Mas, se você observar as prospostas desse bando de malucos, elas se repetem ao longo do tempo. E até hoje, essas mudanças propostas por eles, continuam recebendo um investimento cada vez maior de poder e de dinheiro por parte de grandes fortunas. Então, parece que os malucos não são tão malucos assim não é? Alguém decidiu levá-los a sério ao menos na sua natureza prática, mas não no aspecto do estudo. Então aquilo que os historiadores desprezam, os grandes donos do poder tipo George Soros, Bill Gates, Bilderberg estão levando muito a sério e investindo muita coisa ali. 

Então, Monte Verità, a Montanha da Verdade, foi uma comunidade naturista, vegana ocultista, artística, erótico, nudista, revolucionária, fundada em 1900 no topo de uma colina de 300 metros de altura, na modesta Vila de Ascona, Condado de Ticino, Suíça, por Henry Oedenkoven, filho de um industrial Holandês, e sua amante Ida Hofmann. 

Quem primeiro falou ao Professor dessa comunidade foi a célebre astróloga germano-brasileira Emma de Mascheville. Mascheville é o nome francê que ela pegou do marido, originalmente era Emma Brepohl e que, como sobrinha de Ida Hofmann passou ali parte da sua infância, abrilhantada pela convivência com artistas e pensadores, gênios e malucos de toda a sorte, entre os quais, Carl Gustav Jung, Hermann Hesse, Isadora Duncan, o príncipe anarquista Kropotkin, Rudolph Steiner, Max Weber, Rudolf Laban, Gustav Stresemann, que viria a ser o chanceler da Alemanha por 102 dias durante a malfadada República de Weimar, Prêmio Nobel da Paz 1926. E o igualmente malfadado psiquiatra e psicopata, Otto Gross. Otto Gross foi visto durante algum tempo por Freud como o seu sucessor na liderança do movimento psicanalítico, mas depois acabou se metendo em encrencas cada vez mais complicadas, estragando a sua reputação. 

Embora o fenômeno fosse intensamente atraente pelo peso histórico dos personagens envolvidos, poucos se deram conta que ali se concentravam pela primeira vez numa mixórdia esplêndida os germes dos principais estilos artísticos e literários, modas culturais e correntes políticas que viriam marcar a história do ocidente no século XX e continuam a marcar até hoje. Foi como se todas as angústias, todas as insatisfações, todas as correntes da rebelião política, estética, religiosa e sexual, se avolumavam em segredo por baixo da ordem aparente da Europa industrializada e racionalizada, tivessem atraído como por afinidade mágica, se concentrado em um só ponto do globo para dali se espalhar por todos os continentes. Os ventos de mudança que ali convergiam sopravam em todas as direções. Malgrado suas incongruências e incompatibilidades internas, o programa ostentava, em unidade, as suas pretensões como nada menos que a reforma da vida, não se trata de uma reforma política ou de um regime, mas a reforma da vida!

Os moradores da comunidade, e visitantes, já que nem todos moraram mas ali passaram algum tempo,  enxergava na sua montanha uma das pontas do eixo do mundo, Axis Mundi, o lugar certo para começar uma nova humanidade (ou um novo inferno). O significado profundo desse movimento e a vastidão profunda das consequências que simbolicamente anunciava, não se deixam apreender sem um recuo de muitos séculos: a história do Monte Veritá começa em verdade no tempo das catedrais. 

O Monte Veritá aparece em dois lugares ao mesmo tempo. Por um lado Munique, no sul da Alemanha e capital da Bavária, num movimento intelectual e artistisco muito intenso e foi dali que surgiu a ideia do Monte Verità. Então, pessoas que falavam bonito, trocavam experiências e acabavam indo para o Monte Verità ou comunidades semelhantes, pois houve outras também ali ao redor. Uma delas fundada pelo próprio Bakunin, o líder anarquista. Mas não eram uma comunidade como essa que houve no Brasil, Colônia Cecília, que era formalmente anarquista. Ali era anarquista do sentido muito mais amplo do que o anarquismo político. Era um anarquismo político, religioso, sexual, ético...  

Recuando historicamente, é possível entender como foi possível dentro da evolução histórica europeia, chegaa a esta, esta situação. 

Percorrendo as gravuras do livro maravilhoso em que o arquiteto Louis Charbonneau-Lassay colecionou as imagens de animais que, nos templos católicos da Idade Média, representavam a figura do Cristo, temos um vislumbre de uma época para a qual a sentença "os céus e a Terra celebram a glória de Deus", ainda tinha um sentido concreto e presente. Além do bestiário, Charbonneau-Lassay pretendida ainda compor um florilégio e um lapidário, não só os bichos, mas também as flores e as pedras eram a manifestação visível da presença divina.  Essa concepção não era só estética, mas científica, como se vê nas obras de Santo Alberto Magno, por exemplo. 

Só o espírito mesquinho das épocas subsequentes podem ter enxergado na alquimia um antepassado grosseiro da Química moderna, como expediente de falsários empenhados em fabricar ouro. Ela era claro, na verdade, uma ousada tentativa de sondar a ação do espírito na matéria por meio de uma rede intrincada de forças intermediárias, entre as quais, obviamente, as influências dos astros. Santo Tomás de Aquino, seguindo o seu mestre Alberto Magno, afirma resolutamente que Deus move todos os corpos inferiores por meio dos superiores, os quais, agindo sobre o corpo humano, podem conquistar as operações da inteligência e despertar paixões capazes de alterar significativamente a sua conduta. 

Considero um ato de  subserviência intelectual à modernidade a tentativa de C.S. Lewis de revalorizar a estetica e a simbólica medieval, sem nem por um instante admitir que houvesse nela algo mais que uma beleza desprovida de verdade, como está no livro The Discarded Image: An Introduction to Medieval and Renaissance Literature. Não há dúvidas de que, quando ele chamou René Guenon de charlatão, houvesse uma ponta de respeito pela compreensão superior que o escritor francês tinha do simbolismo. René Guenon foi um agente do imperialismo islâmico mas nunca um charlatão. 

O advento do cristianismo não aboliu a antiga visão pagã de um universo cheio de deuses, como chamava Heráclito, apenas reorganizou a sua realidade caótica de forças sutis da natureza num todo sinfônico, em que se ouvia por toda parte sobre formas infinitamente variáveis a mensagem de Deus. Nesse mundo repleto de vozes, o homem da Europa Cristã não se sente apenas ligado ao ambiente material numa rede significados, mas também por um elo vital a todos os outros membros da espécie humana. Johan Huizinga, no clássico Outono da Idade Média, relata que, nas cidades da Europa medieval, os menores acontecimentos, como uma viagem ou o nascimento de um bebê, davam ocasião a grandes explosões de emoção coletiva. A execução de um delinquente, o carrasco abraçado ao condenado pedia-lhe perdão entre os olhos da multidão que chorava copiosamente. O pecado não era considerado uma anormalidade, mas o destino comum da espécie humana e não convidava ao desprezo, mas a piedade. Era frequente que os pecadores contumazes terminassem sua vida no mosteiro, buscando a redenção pela prece. Separadas pela estratificação social, raças e classes, reunidas pela emoção religiosa, pela submissão aos sacramentos, por atos públicos de subsistência e nas Cruzadas pela solidariedade guerreira entre nobres e plebeus. 

Vários fatores contribuíram para quebrar a unidade do Imaginário Cristão e aprisionaram os homens no mundo banalizado e opressivo no qual algumas almas insatisfeitas viriam buscar refúgio no Monte Veritá. O mais decisivo desses fatores veio, é claro, da ciência.

No seu livro Il Saggiatore de 1623, Galileu Galilei introduz uma distinção entre as qualidades primárias e secundárias dos corpos. Aquelas, a  grandeza, proporções, o peso, o movimento, a posição, existiam nos corpos em si mesmos, e ainda tinham a vantagem de poderem ser representadas matematicamente. As segundas, como a cor, o gosto, o som, o cheiro, dependiam do observador humano e eram, portanto, subjetivas. Galileu chega a afirmar que objetivamente elas nem existem, são "produtos da nossa imaginação". A distinção, sem maiores discussões, foi aceita por Descartes, Hume, Berkley e Locke, incorporando-se ao vocabulário da filosofia natural e depois ao senso comum, no sentido gramsciano da humanidade ocidental. As consequências foram portentosas: de um só lance o universo inteiro dos objetos sensíveis tornava-se duvidoso. Só restando de certo e confiáveis as suas propriedades matemáticas. Era o mesmo que dizer a humanidade inteira, o conjunto dos homens naturais viviam num mundo ilusório. Só os cientistas com sólida formação matemática é que estavam firmemente instalados no real. 

Com essa bifurcação, como chamou o professor Wolfgang Smith, Galileu abolia a concepção aristotélica segundo a qual todos os corpos são compostos de matéria e forma e se distinguem uns dos outros pela forma, significativamente. A forma não entra na lista galilaica, nem das qualidades primárias, nem das secundárias. Ambos os tipos de qualidades são sensíveis, mas o sentido se desprovido do auxílio matemático, já não são testemunhas confiáveis da realidade dos objetos. 

Essa bifurcação inaugurou a era do fenomenismo, em que a humanidade vive perdida entre meras aparências, sem poder apreender a verdadeira realidade, quer ela seja constituída de arquétipos matemáticos, quer seja admitida, como será com Kant, um mistério inacessível. Malgrado a sua utilidade prática para as ciências físicas e malgrado o prestígio quase sagrado de que ainda desfruta na imaginação popular, a distinção era de uma grosseria incomparável. A forma, no sentido aristotélico, não é só o formato visível dos objetos, mas a sua formula, o seu algoritmo, a sua lei de proporcionalidade intrínseca, como chamava Mario Ferreira dos Santos, a qual faz com que eles sejam o que são e não outra coisa. 

Se entendermos isso é lógico e inevitável que cada objeto possua junto das suas qualidades primárias, uma capacidade determinada para emitir sinais que, captados diferentemente por observadores distintos, conforme as respectivas estruturas do deu aparato de percepção, nem por isso deixa de refletir na variedade mesma das impressões que produzem a unidade interna do objeto emissor. Mesmo que um objeto possa emitir diferenres sinaus para diferentes receptores conforme a estrutra de percepção de cada um deles, nem por isso deixa de haver uma unidade na fonte emissora. Por exemplo: a azaleia parece vermelha, porque o nosso aparato de percepção capta assim os raios luminosos que batem em cima dela nos emitem então o sinal, mas um outro bicho pode enxergar uma coisa diferente, um mosquito, por exemplo, não acha que a azeleia seja vermelha, mas alguma outra coisa. Mas de onde estão vindo esses sinais para mim e para o mosquito? Da mesma azaléia. Galileu então confunde a multiplicidade dos sinais emitidos para diferentes observadores e receptores com objetivismo e subjetivismo. E não tem absolutamente nada que ver uma coisa com a outra. Muitos desses sinais e a sua variação, conforme o meio luminoso, espacial e acústico, são hoje mensuráveis e matematizáveis, provando que aquelo Galileu considerava como subjetivo, era perfeitamente real e objetivo. 

O erro da concepção galilaica é quase nada comparado a vastidão das suas consequências culturais. Edmund Hurssel assinalou que a troca dos objetos da percepção real pelo seus esquemas matemáticos levou a inumeráveis becos sem saída na filosofia e na ciência, mais seu efeito principal e imediato é bloquear o acesso à simbologia Cristã. Se os objetos percebidos são os dados quantitativos reais, o resto só poderia ser simbólico na imaginação de poetas e malucos. O imenso sistema da cosmologia medievial reduzia-se até assim a um mero dicionário de figuras de linguagem. Ou seja, esta simbólica toda não estava na natureza, estava na imaginação das pessoas que olhavam a natureza e concebiam-nas. Em vez então de um simbolismo natural, nós temos um produto cultural. 

Se o céu e a terra cantavam a glória de Deus, isso não tinha mais valor que as fantasias de um bêbado. O impacto dessa mudança foi ainda mais profundo nos países de confissão protestante, onde o ascetismo cognitivo de Galileu se mesclava a dois outros fatores para gerar o ambiente seco e severo do mundo burguês. Em  primeiro lugar, o ascetismo visual que condenava como idolátrica a devoção as imagens, e de um só golpe deu um ponto final na experiênci da arte sacra medieval. Se as igrejas católicas eram como livros que produzem formas visíveis de toda uma cosmologia, os templos protestantes eram apenas lugares de reunião, sem nenhum significado particular. Até hoje é assim e a coisa ainda ficou pior: esse mesmo estilo protestante invadiu também o meio católico. Hoje, qualquer edifício pode servir, porque ele não precisa obedecer a regras da simbólica cristã. Ele não precisa, em si mesmo, significar nada. Ele pode criar coisas como, por exemplo, aquela horrível Catedral de Brasília, que é um cacho de banana virado de cabeça pra baixo, e dizer que é uma catedral. Aprofundando esse assunto fica a indicação da leitura do livro do Michael Rose, Ugly As Sin que mostra o que fizeram com arquitetura sacra do mundo moderno. 

A confluência dessas duas linhas de força que são totalmente independentes, por um lado, a ciência galilaica com a sua redução das aparências sensíveis como produto da imaginação humana e, por outro, o ascetimso o visual protestante que suprime a as imagens, suprimindo portanto, toda a estética do templo Cristão. Qualquer catedral da idade média poderia ser lida durante meses e seu conteúdo nunca acabaria. Ela contémm todo um sistema cosmológico, toda a complexidade de uma riqueza extraordinária. Tanto que se pode dizer que praticamente toda a doutrina cristã está ali gravada em pedra. E isso não era assim, só porque as pessoas queriam, mas por que o próprio templo deveria documentar na sua existência física, aquilo mesmo que ele estava veiculando. Essa unidade do sentido, da forma e da experiência religiosa, tudo isso se perdeu graças a essa confluência de fatores.

A simbólica não desapareceu só da imaginação popular, mas do próprio quadro terrestre. Em segundo lugar, o predestinacionismo, que separando antecipadamente os eleitos e os condenados. Mas sem que houvesse meios de distinqui-los na vida real, só deixava ao crente a alternativa de comportar-se em público como se fosse um dos eleitos para evitar escândalo. Tornava-se então uma obrigação. Se não temos como saber se estamos eleitos ou danados mas, se eu me comportar como um danado, eu estou dando mal exemplo, então, daí eu estou danado mesmo. Então, eu tenho que me comportar como se fosse um dos eleitos, ainda que eu seja um dos danados. 

A solidariedade dos santos, e dos pecadores, no sofrimento comuns do destino humano era substituída pela convivência ascética entre os eleitos que cultivavam um sacrossanto horror aos desviantes e dos réprobos. Toda a origem do moralismo é essa, ao passo que na Idade Média tinha-se toda uma mistura, uma mixórdia de santos e pecadores numa proximidade muito grande. As histórias de conversões de  ladrões, assassinos, as cenas de arrependimento público, tudo isso era muito comum na idade média. De repente, não, aqui estamos nós e lá os pecadores e não nos metemos com eles. 

A moral tornava-se, assim, indistinguível da decência, da austeridade no traje e na conduta, da polidez, das boas aparências. Instantaneamente a Europa se recobre de pessoas vestidas de preto. Um traje asltero sem todos aqueles adornos, aquela parafernália. Adornos que não eram só da nobreza medieval mas que marcavam toda uma estrutura de classe: pelo traje era possível saber qual era a origem social de um sujeito e até sua ocupação. Tudo isso daparece. Cria-se uma uniformidade do traje, pelo menos entre as pessoas desse certo nível social. Tudo aquilo que na era moderna, sobretudo nos meios germânicos, anglo-saxônicos, mesclando-se ao pretígio crescente da ciência da Medicina viria a formar a imagem da normalidade. Essa mesma ideia de normalidade se for buscada na Idade Média não existia, não era anormal um sujeito ser louco. Toda cidade tinha seu louco. E um sintomas visíveis disso foi a mudança na indumentária. Os trajes da antiga nobreza, com seus adornos, brasões e tecidos multicoloridos, eram uma árvore genealógica, onde o observador podia identificar imediatamente pelo signo hieráldico a posição social do indivíduo, seu dever de estado e até a história da sua família. De repente, tudo isso desaparecia, sendo substituído pela uniformidade asltera dos trajes negros. Um pastor só se distinguia de um comerciante ou de um funcionário civil por algum sinal discretíssimo, por trazer uma Bíblia debaixo do braço, enquanto o outro podia trazer um livro de contabilidade. 

A moderna psiquiatria assinala com um dos primeiros sinais da síndrome depressiva a desimaginação, o empobrecimento do imaginário. Como uma espécie de compensação, a imaginação se volta mais para o mundo das emoções individuais. Aí começa o gênero romântico, investigando mais as coisas da alma individual, da a intimidade, e começamos a entender de que estavam fugindo os primeiros autores e exilados alemães do Monte de Verità.

Mas a coisa não para por aí. Da antiguidade até o fim da Idade Média, os governantes, reis e imperadores, só eram reconhecidos quando sagrados pela igreja, em consonância com a noção tradicional de que Jesus dera a Pedro, e a mais ninguém, as chaves dos dois reinos: a autoridade espiritual e o poder temporal. Lutero e  Calvino, que haviam rejeitado a autoridade da Igreja e não aceitavam nem mesmo a ideia de um clero, muito menos a sucessão apostólica, não tiveram remédio senão concluir e espalhar que a autoridade dos governantes civis vinha diretamente de Deus, sem intermediarios. Ironicamente, mais tarde, seus discípulos inventaram, e até hoje a massa evangélica americana acredita piamente, que a Igreja Católica havia inventado o direito divino dos Reis do qual a humanidade sofredora foi libertada pela reforma. Acontece que foi a Reforma Protestante que inventou isso. Elevando assim ao sétimo céu o poder e a soberba dos governantes e, ao mesmo tempo, as igrejas protestantes, apregoando a livre interpretação pessoal da Bíblia, em vez da obediência ao Magistério e à Tradição, se esfarelava em mil seitas diversas, desarmando-se pela posterioridade contra o monstro que elas mesmas haviam criado. Colocando o governante como enviado de Deus, quando esse governante começa a oprimir o povo, já não se tem uma igreja unificada para reagir, e sim mil seitas separadas. 

Não espanta que, daí por diante o Estado Nacional foi ampliando cada vez mais seu raio de ação e usurpando áreas que, antigamente, estavam submetidas ao sagrado, como a educação e a moral. A filosofia que, nos séculos subsequentes, passou a se desenvolver na Alemanha protestante, concorreu decisivamente para que esse resultado e decerto nem Lutero e nem Calvino não o previram nem mesmo em sonho. Immanuel Kant, 1724-1804, cavou mais fundo o abismo que Galileu havia aberto entre o conhecimento humano e o mundo. Ele acreditou ter descoberto que tudo que conhecemos reflete apenas a estrutura do nosso modo de perceber e pensar, e não necessariamente as coisas mesmas. Ele não negava a existência dessas últimas, mas afirmava que só podemos conhecer aquilo que nos chega, seja pela experiência sensível, que é determinada pela forma dos nossos órgãos de percepção, seja pelo nosso pensamento, que não produz senão esquemas formais derivados da estrutura da nossa razão. Nos dois casos, as coisas em si, isso é, as coisas consideradas  independentemente do observador humano, ficavam de fora. Resultado: não há mais um conhecimento objetivamente verdadeiro, ficando o conhecimento adequado às exigências da razão tomado no seu mais alto patamar de desenvolvimento na situação dada. 

Isso consolidava, de uma vez por todas, o poder da classe científica com o detentora do único conhecimento válido, enquanto os demais homens andavam às tontas num mundo de aparências. Completando e, ao mesmo tempo contestando Kant, George Hegel observou: a mais alta e desenvolvida expressão da razão humana não eram as ciências e sim o Estado, do qual o sistema inteiro das ciências era apenas parte e instrumento. E a ideia pegou. Até a destruição do país por duas guerras mundiais, o sonho de todo alemão dotado de algum QI, era tornar-se um servidor competente da máquina estatal, seja como funcionário  da administração, da Justiça, da polícia, seja como um oficial das Forças Armadas, seja com professor universitário e cientista. 

Havia ainda outra implicação: não sendo possível conhecer as coisas em si, muito menos se poderá saber algo do que estivesse para além dos limites da experiência sensível, Deus, os mundos espirituais e imortalidade da alma. Mas dizia que devíamos acreditar nessas coisas, ou pelo menos agir como se acreditássemos, era obrigação de todos. Ou seja, nós não podemos conhecer nada a respeito de Deus, da imortalidade da alma, mas nós temos que acreditar nessas coisas, porque se não acreditarmos, não seremos suficientemente humanos. Então, ele impõe como uma obrigação moral aquilo que ele mesmo disse que é cognitivamente impossível. 

Kant levava, assim, às últimas consequências a redução protestante da religião à moral e da moral à decência.  Então as nossas ideias sobre a imortalidade da alma, sobre Deus, não tem fundamento cognitivo algum, mas tem um fundamento moral, então a moral está acima de tudo, até mesmo do conhecimento da realidade. A conduta do homem decente, o cumpridor dos seus deveres, refletir-se no sucesso dos seus empreendimentos, autorizando-o, caso fosse religioso, a sentir-se como um dos eleitos. E caso não fosse, a ser bem aceito na sociedade, onde a conduta do crente e do ateu unificada no culto comum da decência e marcado pela mesma rigidez intransigente na defesa das aparências não se distinguiam significativamente uma da outra. 

Na segunda metade do século XIX o progresso econômico fez a Alemanha, unificada em 1871, o país mais industrializado e rico da Europa, com um exército terrível com seu prestígio fortalecido pela vitória na guerra contra a frança em 1870 e 1871, um stablishment acadêmico-científico que acumulava glória sobre glória, uma população crescente que subia mais 50 milhões de habitantes, a influência cultural política e econômica da alemanha dominaram a vasta área entorno abrangendo o império austro-húngaro e uma variedade de povos como húngaros, servo-croatas, poloneses, e tudo isso elevava às nuvens a empáfia da burguesia dominante e seu sistema de valores morais a aparência de uma fortaleza, uma prisão indetrutível.

Isso pode ser observado no livro do Jakob Wassermann, O Processo Maurizius, onde o personagem, o jovem Etzel Andergast é filho de um desses potentados, juiz de direito ou alguma coisa assim, e ele percebe que tem alguma coisa errada nesse mundo mas não sabe direito o que é. 

Os muros da prisão, no entanto, tinham algumas rachaduras. A mais visível é a resistência socialista que, aliada ao partido católico do barão e bispo Emmanuel von Ketteler, conhecido como "Bispo dos Trabalhadores" chegou a conseguir algum poder político e bloquear a guerra cultural do Príncípe Bismarck no esforço organizado do governo para erradicar na Alemanha toda influência da Igreja de Roma. Mas o catolicismo continuou minoritário e nem um arranhão fez na religião civil do patriarcalismo. A Igreja, conseguiu defender o seu território, mas não mudou nada no conjunto.

A segunda rachadura era mania ocultista e teosófica que se espalhavam nas faixas letradas como uma reação quase instintiva ao culto burguês da razão, da ciência, da tecnologia e do progresso econômico, chegando mesmo a ganhar a simpatia de algumas estrelas no universo acadêmico.  Ficaram célebres as sessões de espiritismo em que os médiuns juravam provar a existência do mundo espiritual por meio de mensagens recebidas do além. A partir de 1875, nada menos que duzentos e nove clubes de ocultismo foram fundados nas principais cidades alemãs, compartilhando suas atividades com sessenta e nove empresas comerciais dedicadas à astrologia, radiestesia, leitura de mãos, magnetismo e etc. Intimamente associadas a esse movimento apareceram várias clínicas de cura natural geralmente baseadas no vegetarianismo estrito, em que até ovos, leite e peixes eram proibidos. As escolas doutrinárias variavam muito, incluindo a ariosofia, que associava a vida natural à pureza da raça e deveria ter uma influência, aliás, modesta, na ideologia nazista. 

Por toda a parte ecoava, a partir desse ambiente o apelo da “volta à natureza”. O livro "Fruit and Bread: A Scientific Inquiry into the Origin of the Human Diet", escrito por Gustav Schlickeysen, médico de Hanover, chegou a fazer sucesso até na América. Pregava total abstinência de carne, álcool, fumo e café, assim como recomendava homeschooling e a troca geral do vestuário burguês por saiotes. Infelizmente, a única foto localizada desse autor mostra-o num traje convencional, a imagem viva da descência germânica. 

Na onda do retorno à natureza pareceram também inúmeras comunidades rurais cujos habitantes vestiam túnicas bíblicas, calçavam sandálias e se alimentavam somente de vegetais crus. A mais famosa foi a dos pintores Karl Wilhelm Diefenbach e Hugo Hoppner, ou a de Gusto Gräser que, após cumprir cinco meses de cadeia por fugir ao serviço militar, após se dedicar a uma vida errante na qual transitou por algumas dessas comunidades, tornou-se uma dessas figuras estelares do Monte Veritá.

Com isso é possível entender todo o ambiente psicológico preparado ao longo de séculos, que criou num determinado lugar do cosmos, essa ânsia por fugir para uma natureza idílica, na verdade totalmente imaginária e que não tem absolutamente nada de natural. Por exemplo, algo que se entenda como natural é o primitivo, aquilo que é mais antigo. Mas, por mais que se recue no tempo, não se encontrará nenhuma comunidade humana que praticasse ao mesmo tempo, a liberdade sexual e o ascetismo gastronômico — isso nunca existiu, isso foi realmente inventado na Alemanha com o nome de natural mas, não tem nada de natural, nem no sentido biológico, e muito menos no sentido histórico. Pior ainda: dessa época se originam uma infinidade de confusões psicológicas e morais que ainda são o tecido da nossa vida cotidiana, especialmente no que diz respeito à moral sexual. 

Hoje em dia a moral sexual cristã é abertamente desafiada, não só por comunidades como essa, mas por governos, por potentados das finanças. Esse pessoal do Monte veritá percebeu que havia algo de errado na sociedade industrializada, racionalizada, e imediatamente inventou uma saída, uma solução, sem parar um minuto para pensar de onde veio tudo isto. Essa história, que vem desde a Idade Média até aqui, foi totalmente ignorada por todos os membros do movimento. Esse se tornou um dos traços típicos da cultura moderna: fazer proposições de soluções para problemas que simplesmente não se estudou, e não se quer saber como surgiram. Isso denota uma alienação francamente psicótica: se você não sabe qual é o problema, vai errar na solução, e evidentemente, se adotada, essa solução vai agravar o problema e fazer surgir novos, entendidos menos ainda.

Antes das Nove da Manhã

Queria poder... Na verdade, eu não sei. Transcrevi uma aula de ontem para hoje, tentando memorizar um tema que me é tão caro e que se coaduna com uma pesquisa melhor que pretendo desenvolver nos próximos anos e que já teria algum avanço caso eu não estivesse tão debilitado. Parece que tudo concorre para atrasar meus estudos: minha memória cada dia pior, o desânimo para ler... 

O sol brilha forte, só encoberto por pequenos temporais de primavera. A estação começa a firmar, o calor vem aumentando gradativamente. Apesar da luz dar novos ares para uma cidade tão cinza, eu me incomodo com isso. Especialmente com aqueles que ficam animados demais, porque eles sempre se animam com coisas bobas, como a mensagem safada de uma garota. 

Não quero ver nada disso. Quero me isolar de tudo. Mas também queria ajudar mais minha família. Só que, no momento, não consigo ajudar nem a mim. Quero ficar dias sem sair, mas já estou dias sem sair e isso não eu me sentir melhor.

Queria um empréstimo, mesmo sabendo que nenhuma instituição vai aprovar. Sim, queria comprar bobagens. 

Também quero dormir, mesmo sabendo que não é uma solução e que meu estoque de remédios não é infinito. Há tanto que eu sinto e não consigo dizer que tudo parece vazio, mas a verdade é que, diante de tudo que se embola no meu peito, eu acabo emudecendo. E então esse silêncio, como uma névoa, vai fazendo com que eu aos poucos desapareça...

Deveria sair um pouco, tentar conhecer outras pessoas, mas há duas semanas eu não consigo sair do circuito quarto e sala. Acho que vou tomar mais um café, e depois um chá, e depois alguns remédios. Não são nem 9h da manhã e sinto que já morri uma dezena de vezes.

Acho que é mais um daqueles dias de contemplação da minha própria melancolia. Onde a névoa, a fumaça que sobe do chá, penetram meu coração e desaparecem como no ar. Sinto que não há muito que dizer, ao mesmo tempo que há muito que quero escrever, mas não consigo. Apenas olho pela janela, o tempo passa lá fora, enquanto parece que eu parei por aqui.

"Sou apenas o rastro de uma presença física no mundo perdida há muito tempo." (César Augusto)

sábado, 25 de outubro de 2025

Notas sobre a Divisão

Foi uma semana de ânimos exaltados no mundo da Liturgia e, não me surpreende que bem poucos consigam ler o que realmente tem acontecido, enxergando apenas um expediente de seus próprios partidos religiosos e sem perceber o impacto maior que isso tem no quadro geral da igreja no Brasil, nem muito menos compreendendo os fatores que levaram a essa situação.

Primeiramente, a congregação a qual pertencia a Ir. Miria T. Kolling publicou uma nota repudiando as modificações que atualmente tem sido feitas nas suas músicas. Acontece que a Ir. Miria foi, de fato, uma grande compositora, com um enorme número de músicas, mas, num período em que a Liturgia no Brasil estava em completo desalinho com a da Igreja. Não que hoje esteja melhor. E por isso muitas de suas composições, especialmente aquelas que constituem o ordinário da Missa, não contemplam o que de fato pede a Igreja: a simples, mas completa, fidelidade ao texto. 

Como suas músicas são bem conhecidas e fazem parte de algo como um "repertório nacional", muitos cantores, acompanhando a crescente onda de formações a respeito do assunto, fruto da disseminação de grupos de estudos na internet e iniciativas que buscam reformar e retornar a sacralidade da Missa no Brasil, tem adaptado suas letras de modo a não abandonar as composições de uma só vez e nem descumprir o que nos pede a Igreja. 

Segundo a nota da congregação, essa atitude é um desrespeito à memória da compositora. Mas, composições feitas num tempo em que os bispos não davam a mínima importância para o que se cantava, preocupados demais com as questões sociais que dominaram o país por meio da Teologia da Libertação, realmente precisam ser revistas e adaptadas ou substituídas. Infelizmente ninguém fala a respeito das belas músicas, em português mesmo, que se cantavam antes da onda vernacular pós-Concílio Vaticano II. Para a congregação, o respeito pela composição é mais importante que o respeito pelas normas litúrgicas, e, portanto, mais importante que a própria Igreja, uma vez que a lex orandi é a lex credendi, colocando assim a pessoa da compositora acima da unidade da Santa Mãe Igreja, já que a nota está repleta de um certo repúdio a obediência que se deve aquilo que nos pede a Igreja. Acho que não preciso falar mais.

Logo depois, o bispo de Aracaju publicou um decreto, na verdade, publicado no dia de Nossa Senhora Aparecida mas que só agora se difundiu, em que repudia aqueles que não respondem às aclamações presentes nas orações eucarísticas aprovadas para a Igreja do Brasil. Segundo o decreto, o purpurado percebeu a necessidade após um ano à frente da referida cátedra onde, por certo, deve ter tido contato com comunidades que buscam uma comunhão maior com a Igreja ao aproximar ainda mais nosso rito de todos os outros. Sinceramente, cada vez que vejo algo assim, como quando defendem a substituição de "e com teu espírito" por "ele está no meio de nós", sinto que nos tratam como burros. Desse modo, quando os fiéis, orientados por sacerdotes de uma renovada ars celebrandi, explicam que apenas no Brasil isso ocorre porque nosso povo dificilmente consegue entender que a participação ativa e frutuosa da assembleia também diz respeito a oração silenciosa, para os liturgistas que sequestraram nossas rubricas, o brasileiro precisa estar em constante diálogo com o celebrante, quase numa concelebração, ou então sente que não participa. Outro ato lamentável.

Infelizmente ninguém parece se dar conta que a inserção do vernáculo e a abolição do latim é o ponto de partida dessa problemática. Ainda ousam dizer que o rito permite que o fiel participe da missa em qualquer ponto do globo, mas isso não é verdade. Exceto pelo fato de conhecer o rito, como poderia entender uma missa celebrada em japonês? Se fosse latim, uma formação básica da língua serviria para a maioria, ao passo em que momentos específicos como a liturgia da Palavra poderiam se beneficiar do vernáculo. Um missal bilingue também resolveria fácil a situação, mas agora, se eu quiser participar de uma missa no Vietnam, qual a chance de encontrar um missal em vietnamita-português?

Ainda em nossas terras, o Centro Dom Bosco, nos últimos anos levantando a bandeira em defesa da doutrina tradicional, anunciou uma procissão em honra de Cristo Rei, com a presença da FSSPX, inclusive de Dom Fellay a conduzir a mesma. Claro que isso não passou e nem passará despercebido dos demais católicos que vão acusar o instituto de cisma por unir-se a Fraternidade, muito embora o próprio Vaticano não tenha declarado tal, a mesma continuando numa espécie de limbo canônico e um problema que ninguém sabe como resolver. Mais uma batalha nessa longa guerra. Muitos acusam a Fraternidade e o próprio CDB de cismáticos, um pouco arrogantes talvez, mas cismáticos por defender a ortodoxia não. Muito embora eu creia que esses grupos só estejam lutando para manter o já escasso espaço que possuem dentro da Igreja, já que nos últimos anos vivemos uma crescente aceitação de tudo, menos da tradição. Mas, em alguns pontos, parece-me que há também uma boa dose de sensacionalismo e provocação nesses atos. 

E, por falar em Vaticano, pela primeira vez em vários anos tivemos a Liturgia Tradicional sendo novamente celebrada na Basílica de São Pedro. A Missa no Rito Tridentino foi celebrada pelo Cardeal Burke, um gigante defensor da Tradição. Embora esse fato em particular só tenha repercutido entre os grupos mais conservadores, em consonância com os demais, apenas mostra o quão divididos estamos. É uma centelha de esperança que, ao menos, o rito tridentino possa ser novamente celebrado sem a perseguição dos bispos que, por anos, ignoraram o motu proprio de Bento XVI, mas que publicaram ferozes documentos no dia seguinte ao do Papa Francisco, não dando nenhum espaço para as comunidades tradicionais, ao passo em que grupos heréticos e pregadores sem a mínima formação ganham palco, mídia e aprovação universal.  

De um lado temos defensores de uma reforma que ninguém sabe onde vai parar, outros defensores de um retorno quase sem limites, e, na realidade, temos jovens que acham que a igreja são as músicas da Colo de Deus (sic!). Há ainda aqueles que buscam uma posição conciliatória. Vejo alguns jovens se intitularem como "tradismáticos", que buscariam um retorno a tradição com uma espiritualidade carismática. Enquanto criticam alguns excessos da Renovação Carismática que, pouco mais de uma década atrás, ainda arrebanhava centenas de milhares de pessoas para qualquer um de seus eventos, não notam que essas novas comunidades, como a própria Colo de Deus, Samaria e tutti quanti, na verdade, só trazem uma nova roupagem da via neopentecostal daquela, e nem notam ainda que ela é completamente inconciliável com a tradição. 

Quando me refiro, por exemplo, a essa banda execrável, de composições bregas e shows/pregações repletos de momentos de sugestão e transe, além da baixíssima qualidade das falas e das próprias músicas, isso se contrasta diretamente com a riqueza do simbolismo profundo que a Igreja perdeu nas últimas décadas, gerando uma pobreza imaginativa gigantesca. Essa ausência simbólica criou um vácuo no coração da igreja no Brasil, preenchido então por toda sorte de parafernálias, como a crescente burocratização sacramental, as pavorosas inovações litúrgicas que se fincam nos abusos e erros mais deploráveis e numa completa despreparo espiritual dos pastores. O povo então inventa aquilo que lhe parece completar e, ao menos alguns, conseguem notar que o retorno à Tradição é a única via segura, e que as demais são apenas falatório confuso.

Um claríssimo exemplo disso são as frequentes manifestações da CNBB sobre qualquer assunto. A Conferência parece ser hoje dominada por verdadeiras múmias que se preocupam apenas em emitir notas de repúdio que só bobos como eu as leem e pedir dinheiro nos dias de maior concorrência de fiéis nas paróquias, calando-se completamente nos casos em que seria justificável sua intervenção. A obscena demora na tradução do missal, mais fiel à versão latina que, não por coincidência, saiu apenas depois da promulgação do Papa Francisco de que as traduções não precisariam mais passar por uma acurada revisão de Roma, mas apenas ser chancelada por ela. Recentemente o Secretariado Nacional para a Liturgia, ao tratar em nota a ocorrência dos dias de Finados e Todos os Santos num fim de semana, cometeu o desserviço de salientar que a Comemoração dos Fiéis Defuntos é celebrada com paramentos roxos, pois, no Brasil, não é costume usar o preto, ignorando completamente o alcance da mesma nota para incentivar que o mesmo costume seja também aderido por nós.

A Associação dos Liturgistas do Brasil (ASLI), que felizmente é pouco conhecida, frequentemente publica artigos que levam do nada a lugar nenhum. Uma mixórdia de reflexões que servem apenas para criticar todo e qualquer resquício de tradicionalismo nas nossas paróquias, incluindo, mas não limitando-se, até mesmo aquelas igrejas históricas e de valor espiritual inestimável ao povo de Deus, que receberam uma mesa de pedra cortada num formato estranho com toalha costurada porcamente no meio, quebrando completamente a estética que, para nós cristãos, nunca teve apenas valor estético, senão catequético e profundamente espiritual, tornando nossos templos cada vez mais próximos do pauperismo protestante. Com frequência a referida associação também divaga em reflexões sem nenhum sentido, como dizer que a Pastoral Litúrgica deve-se ocupar com a crescente integração do povo no mistério celebrado, mas sem dar nenhuma sugestão concreta, o que, sem a devida formação, é entendido como a aplicação de toda sorte das mais toscas invencionices: o povo deve participar, ao invés de fazer isso rezando e contemplando (afinal não há mais nada a ser contemplado no templo), deve fazê-lo por meio de peças de teatro, de fantasias, momentos de sentimentalismo ou de absurdos, como o tal Cerco de Jericó, que transforma Jesus na Santíssima Eucaristia como partícipe cativo de uma pantomima ridícula. 

Formadores que discutem entre si. Bispos ocupados demais com uma burocracia que eles mesmos inventaram e negligenciando o povo que, sem quem os guiar, inventam qualquer coisa que lhes pareçam completar, e sempre aumentando o grau dessas invencionices, já que a necessidade que eles sentem é do Cristo mesmo, devidamente honrado, como naquela procissão ao fim da Missa recentemente celebrada no Vaticano, soleníssima, em que se cantava, e que esperamos que seja em breve, que "Cristo vive, Cristo reina, Cristo impera!"

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Dias insones

"Rain clouds", Vladimir D. Orlovskij

“Sou como um quarto vazio onde o vento entra e sai.” (Fernando Pessoa)

Nada mais faz efeito, quantidades absurdas de remédio não são suficientes para sustentar o meu eu desperto, venho precisando encarar cada maldito momento dos dias. No início da semana, pelo menos tinha a desculpa de, com a crise alérgica, poder tomar ainda mais e misturar mais, mas mesmo assim, dormia por pouco tempo, retornando para essa realidade e, com uma incrível angústia, perceber que continuo vivo. Que grande decepção! Quão doce o dia que deitarei e não tornarei a abrir os olhos, e tudo o que me cerca não será mais problema meu. O quanto anseio por esse dia.

Anseio pelo dia que não mais pensarei em nada que demonstrei minha imensa imaturidade. Como o fato de ter vivido uma adolescência tardia. Não vivi um romance de adolescência, eu era feio (e hoje estou pior) e ninguém me queria (o que também não mudou), eu não saía para festas, não fui rebelde. Eu fui  o filho exemplo, sempre com boas notas, sem reclamações dos professores. E ainda carrego isso. Eu me arrependo não ter vivido mais, sempre me dedicando a ser sério e dar o meu melhor, para os outros. Sinto que perdi a fase de criar conexões, hoje só tenho colegas, não tenho amigos que chamo na minha casa ou que converso sempre ou que possa confiar. 

Percebo que preciso aprender a lidar com tempestades. Vê-las chegando ao longe, seus ventos e as ondas impetuosas que elas causam no mar, e depois a calmaria que se segue, quando o sol se abre novamente pela manhã, brilhando no reflexo da água. 

Não sei se é uma aceitação de que todos se vão e eu vou continuar sozinho ou o eterno retorno. que eu não consigo amar, de amores que vêm e vão sem nunca serem recíprocos, ao mesmo tempo que buscam o mesmo. Já aceitei a invisibilidade. 

É madrugada, e faz silêncio lá fora. Queria que começasse a chover, mas acho que não terei essa sorte. Ao menos do meu lado tem uma caneca fumegante de chá. 

Lia algumas páginas de Pequeno Mundo, do Hermann Hesse. A princípio movido pelo interesse pela última novela do livro, O Reformador do Mundo, e os estudos sobre aqueles movimentos esotéricos vividos em gérmen pelo próprio autor na Comunidade do Monte Veritá. Pretendia anotar sobre isso, já que recuo no percurso histórico que tornou possível essa comunidade é uma das coisas mais interessantes que já estudei.

Mas, considerando minhas limitações, atualmente maximizadas pelas perdas de memória típicas do transtorno e das medicações que venho tomando, bem... Acho que isso me consumiria boa dose de esforço. 

Acabei me detendo em outro conto presente no livro, O Noivado, me identificando completamente, e com boa dose de vergonha, com o personagem dele. Um homem nos seus trinta anos, sem nenhum talento especial para os estudos, que cuida da loja de aviamentos da tia e, com tamanha incapacidade de traquejo social que aprendeu a falar apenas alguns meneios enquanto faz algumas mesuras. Além disso, um homem feito, mas sem nenhuma perspectiva de futuro, que faz tudo o que a mãe manda, inclusive ao buscar uma noiva, algo que ele considera impossível. 

Muito embora os contos desse livro não estejam entre grandes escritos de Hermann Hesse, como documento realmente são valiosos. Nesse em específico, destaco essa imaturidade que, num personagem ali, simbolizaria toda uma geração de jovens adultos absolutamente incapazes. Meus pais não terminaram o Ensino Médio e, embora até hoje morem de aluguel, desde bem novos davam um jeito de se virar. Meu pai criou quatro filhos, com seus desmantelos é claro, mas a minha irmã mostra completa inépcia de fazê-lo. Não fosse pela família, meu sobrinho não teria completado um ano no último dia dezessete. 

Me identifiquei muito com o personagem principal que, aos trinta, se encontra completamente desconhecido dos amores e até mesmo das amizades. Esse campo da existência lhe parece um mistério. O outro se lhe apresenta como alguém tão distante que jamais pode ser conhecido e, se conhecido, não pode ser alcançado e, se ainda assim pudesse ser alcançado, não poderia haver entre eles uma comunicação real. Ele observa seus colegas de coro como se o quisessem ajudar, suportando o ridículo de subir num caixote para ficar à altura dos demais, sem perceber que isso é apenas troça, da mesma forma como acaba se expondo ao ridículo no passeio do grupo.  

Sua falta da habilidade social é tamanha que, visando apenas aquela por quem se interessa, ignora a que se interessa por ele, e que ele nota apenas e tão somente quando se vê sem nenhuma possibilidade. Em personagens rasos, Hesse revela a pequenez de espírito do homem atual. Me incluo entre eles e conheço um inumerável de pessoas buscam alguém, mas ignoram quem está ao seu lado. Até poderia extrapolar essa observação com aquela feita sobre O Reformador do Mundo, em que cada novo grupo revolucionário, de tipo Nova Era e tutti quanti, se arroga o direito de falar em nome do mundo. O apaixonado enxerga a todos que quer amar menos quem o ama, o revolucionário enxerga a humanidade que quer salvar, mas não o próximo ao seu lado que necessita de salvação. E assim vamos vivendo. Em paz?

(...) Ontem, em pleno expediente, comecei a sentir uma misteriosa angústia. Quero que me entendam. Disse “angústia”, mas explico: — era um sofrimento menor e indefinível... Sofria sem nenhum motivo preciso, concreto. Fui ao boteco da esquina tomar um cafezinho. A angústia continuava lá. Mexendo o cafezinho, descobri subitamente tudo. Eu me afligia porque estava sentindo falta de alguma coisa e não sabia o quê. “Falta alguma coisa”, repetia para mim mesmo. Mas não sabia o que. (Nelson Rodrigues)

domingo, 19 de outubro de 2025

O Piano e o Abismo

Ao som do Concerto para Piano nº 1 em Mi menor, Op. 11, de Frédéric Chopin

O piano começou a falar, e eu soube que era de mim que ele falava. As notas se erguiam tímidas, como quem pede perdão por sentir demais. A orquestra, solene, respondia em ondas que pareciam vir do próprio tempo — antigas, dolorosas, infinitamente belas. Havia algo de oração naquelas melodias, algo de desespero também, como se o instrumento buscasse um Deus que nunca respondeu. O som não era apenas música, era um corpo tentando respirar dentro da tristeza. E, por um instante, tudo que havia em mim — a saudade, o cansaço, o amor que não se cumpriu — tornou-se som. Chopin, sem saber, contava a minha história, muito antes de eu nascer, naquele seu primeiro concerto para piano.

Fiquei acordado durante todo o dia, vi meu sobrinho brincar com um bolinho cheio de Chantilly, sorrimos bastante. 

Assisti algumas séries. "That Summer", com os Winny Satang está ótima, gostando da profundidade emocional deles e claro, apaixonado pela beleza do Satang, do Mond e do Ryu. Também teve a estreia de "Me and Who" com Big e Pak, produzida em parceria entre a WeTV e a Mandee, duas das minhas produtoras favoritas. E o último trabalho desses dois foi tão gostoso de acompanhar, mesmo tendo bem menos investimento, que eu fiquei com alta expectativa. 

Também quero, por alguma razão, assistir mais durante a noite. Toda manhã sinto o coração inquieto. Ouço uma orquestra ao longe, se erguendo infinitamente rumo ao céu. Ela anuncia uma solenidade ainda em segredo, mesmo com o sol claro dos últimos dias. É na noite que ela há de se revelar, como o prelúdio de um sentimento ainda sem nome.

O fato é que o barulho das pessoas durante o dia me incomoda, e tenho tentado assistir de fato com mais atenção, afinal defini já há muito que esse momento seria o meu momento. Mas também creio que haja mais por trás disso, por exemplo, o fato de ficar com um pouco mais de sono no dia seguinte, me ajudando no objetivo de dormir sem precisar ver ninguém. E eu definitivamente não quero ver ninguém. Não quero precisar sair do quarto durante todo o fim de semana.

Já não sei mais que nome dar a isso: se é um episódio misto ou uma manifestação do Borderline. Eu não sei mais nada. Mas sei que eu não quero me humilhar num abraço qualquer, não quero mandar mensagens o fim de semana todo como se fôssemos melhores amigos quando, na realidade, sou sempre a última das opções. Então, enquanto esse turbilhão não diminui, prefiro não ver ninguém. Se conseguisse, me afastaria completamente da internet, mas ainda não cheguei a esse ponto. 

Cada palavra minha, assim com cada nota daquela partitura para piano, é uma confissão. É um virtuosismo onde não cabe arrogância, apenas as súplicas de um homem em profunda aflição. O piano, ou eu, fala ao destino como quem pede por gentileza. Mas gentil é algo que o destino não é. 

Tentei por duas vezes ler um pouco, e só consegui umas poucas páginas. Minha atenção e minha memória estão péssimas. Minha vontade também, pífia, eu já não tenho coragem nem de comentar sobre os episódios que assisto, coisa que antes fazia com tanto prazer. Sinto que deixei partes de mim nos últimos anos, em cada esquina fui deixando um pouco de minha vida, e eu já não sei mais quem eu sou. 

Dormi o dia inteiro, após uma noite atribulada por uma crise respiratória. Teve uma tempestade durante a tarde. Não sei por qual razão deveria achar que ele pensaria em mim nessa tarde chuvosa. Não é o tipo de companhia que ele espera. Eu não sou o que ele deseja.

E então as notas, minhas palavras, se revelam uma carta de amor que não foi enviada. Uma melodia que desliza como dedos sobre a pele, num toque que nunca se completa. É o amor visto à distância, envolto em névoa, entre o desejo e o impossível. Há um perfume de ausência pairando em cada compasso, como se o próprio tempo hesitasse em avançar para não ferir o instante.

Acabei falando com ele empolgado demais, e tive o entusiasmo transformado em desilusão. A resposta fria e rápida, cortante como ferro frio. 

Minhas palavras foram como explosão. Após tanto suspirar, o piano ri, dança, corre — mas é uma alegria desesperada, quase febril. Como quem sabe que a felicidade dura o tempo exato de um acorde. O riso se transforma em vertigem. O piano é uma alma que tenta escapar de si — e termina exausta, triunfante e só.

Quando o concerto termina, o silêncio que o sucede é quase sagrado. Fica no ar a impressão de que Chopin não compôs para o público, mas para o próprio vazio, ou para mim. 

Sua obra é uma oração dita ao espelho — e o espelho responde com lágrimas e o silêncio se uma escuridão abissal.

Não sei por qual razão achei que dessa vez seria diferente. Nunca é. A vida é sempre decepção. Como eu posso ser tão burro assim? Como eu ainda posso esperar algo, de novo e de novo, depois de tantas vezes ter visto a verdade?

E quando a última nota se dissolveu no ar, percebi que o silêncio era mais sonoro do que a própria música. O mundo inteiro pareceu suspenso, como se respirasse comigo — ou por mim, já que eu mesmo não conseguia mais. Tudo que restou foi uma brisa fria atravessando a sala, e nela o eco de algo que não voltará. Chopin calou-se nos dedos do jovem virtuoso, mas o que ele disse continua vivo, latejando nas fibras rasgadas do meu peito. Por um instante, pensei que talvez eu também fosse feito apenas de som: 

uma melodia breve, 
nascida do nada, 
destinada ao nada.

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Noite entre uma nota e outra de Chopin


Mais uma noite.
E o piano — esse eco distante de um mundo que não existe mais —
me embala em melancolia.

Mais uma noite — e eu, sentado diante do nada,
escuto Chopin como quem escuta a própria alma chorar.

A música toca, mas não me toca.
Estou só, minimamente interessado em continuar vivo.

As teclas tocam o ar,
mas é em mim que a melodia se derrama, lenta,
como luz que já não ilumina.

Essa música que cai em mim, atravessa — e fico oco.
É como se o mundo tivesse sido varrido de sentido
e restasse apenas o eco do que um dia foi humano.

Pensei em ver alguma história de amor,
qualquer coisa que me distraísse do abismo,
mas o desânimo veio primeiro,
como uma maré que engole a vontade.

Tentei erguer o braço e alcançar um livro,
mas o gesto morreu antes do movimento.
A vida ficou parada numa sonata que acabou,
entre o querer e o desistir.

Não é alegria, tampouco dor:
é o espaço entre uma nota e outra,
onde o tempo suspira cansado.

É estranho:
parece que toda a alegria do mundo foi recolhida
— e o que restou foi apenas o pó do silêncio.

E esse silêncio pesa.
Pesa tanto
que até respirar torna-se um gesto inútil.

Tudo pesa.
O ar torna-se apenas uma lembrança antiga
de quando respirar ainda era possível.

Fico imóvel,
ouvindo o som que não consola,
mas existe.
Talvez seja isso o consolo —
que algo ainda exista.

E, quando a última nota morre,
sinto que é o próprio mundo que se cala em mim.

E na pausa entre uma nota e outra,
a derradeira,
eu também me apago.

A pilha de livros que me aguarda


“Há um cansaço da alma que nenhuma esperança consola.” (Fernando Pessoa)

Fiquei um bom tempo procurando algo para assistir. Algo que me despertasse, que me lembrasse, por um instante, o que é estar vivo. Mas fiquei rolando a tela por longos minutos — talvez horas — e nada. Nada me agrada. Tudo parece velho, gasto, já visto. É como se o mundo inteiro tivesse perdido o brilho e eu, por dentro, estivesse apagando junto.

Há dias em que sinto que vivo numa montanha-russa de exaustão e euforia, e nenhuma das duas me serve de abrigo. O corpo dói, os olhos pesam, o sono não vem. E, quando vem, é tão raso que não descanso. É como se eu dormisse em um buraco.

Nada me toca. A música morreu, a poesia sumiu, e até as cores parecem se esconder de mim. Vivo num silêncio opaco, onde nada tem contorno. Em cima da cama há cinco livros abertos, todos pela metade — testemunhas mudas da minha desistência. Um deles está ali desde o ano passado, e ainda assim comprei outro hoje. Não o abri. Só o deixei sobre a pilha, como quem acrescenta mais um peso à própria inutilidade.

Tentei um filme. Parei no meio. Tentei uma série. Travei no terceiro episódio. Há algo em mim que se quebrou em algum ponto, e eu não sei onde nem quando. Só sei que o gosto da vida azedou. Tudo que me resta é uma tristeza antiga, dessas que não se curam nem com o tempo, porque o tempo também adoeceu comigo.

Hoje fiz compras idiotas. Coisas que não preciso, que não posso pagar, mas que por um segundo pareceram prometer algum sentido. Meu seguro termina no próximo mês. Eu deveria enviar currículos, tentar, fazer qualquer coisa. Mas a verdade é que não sei se estarei vivo quando, e se, alguém me chamar para uma entrevista.

Penso às vezes que minha vida se resume a essa espera: esperar dormir, esperar acordar, esperar que algo finalmente aconteça — e nada acontece. Não fosse a promessa de uma viagem com meu afilhado, o abraço que ainda quero sentir antes do fim, talvez eu já tivesse terminado tudo semanas atrás.

Mas sigo. Não por esperança, mas por inércia.
A tristeza, afinal, também é uma forma de existir.

Fecho os olhos.
E por um instante, o vazio me acolhe.
E penso — talvez seja isso o que chamam de paz.

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

Com alguns companheiros

E mesmo assim não sou bom o bastante. 

O raciocínio deles funciona mais ou menos assim: idealizam alguém, desde os detalhes da aparência até a personalidade e até suas contrariedades. Alguém que certo tipo de cabelo, adepta da religião e ainda assim cheia de tesão na cama... E então, focados nisso, perdem as pessoas boas que os rodeiam e que possuem aquilo que mais deveria importar: o carinho, dedicação e sentimentos por eles. Cegados pelos próprios desejos, pelas próprias idealizações. 

Quanto tempo perdemos com essas pessoas que nunca serão capazes de enxergar a nós. Mais uma vez tentando fugir desse ridículo plural majestático, quanto tempo eu perdi com essas pessoas incapazes de me enxergar, mesmo quando eu dava o meu melhor, mesmo quando eu disponibilizava meu tempo, meu carinho, tudo? Quantas vezes quis ser aceito, amado, querido, desejado?

Byung-Chul Han chamou de “sociedade do cansaço” o tempo em que o sujeito explora a si mesmo. As redes sociais novo espelho do narcisismo: precisamos ser vistos para existir. O vício não é na tela, é na validação. A solidão aumentou porque ninguém suporta o próprio silêncio. Com isso buscamos a validação nas fotos e nos vídeos sensuais e eróticos que produzimos e enviamos para as pessoas que idealizamos, na intenção de que sejamos exatamente aquilo que elas procuram, assim como elas são aquilo que buscamos tão ávidamente.

Buscamos pessoas de aparência virtuosa, que citam reflexões religiosas aparentemente profundas, mas repletas apenas de sentimentalismo vazio. Buscamos a beleza perfeita, sem saber que ela pode esconder corações completamente destroçados que também buscam ali a validação que preencha seu vazio interior e que as assusta tanto a ponto de se exporem desse modo. Se eu tivesse uma aparência agradável e não tão horrenda, também o faria. Fico então revisitando as páginas, abrindo as mensagens, na esperança ávida de que, em algum momento, me reconheçam, me percebam. 

No entanto, amor não se mede pelo quanto preenche, mas pelo espaço que deixa. Lacan dizia que desejar é sustentar a falta. É manter esse oco no peito, vendo claramente que o seu sentimento é ignorado, desvalidado, diminuído, porque não corresponde as idealizações do outro. 

Mas esse outro também é idealizado? Nem sempre, o creio eu, pois o desejo pode nascer da convivência, daquilo que vimos no outro e daí brota o carinho. Mas isso não significa que vá brotar também no coração do outro. Também isso pode estar errado, também eu posso estar, na verdade, idealizando que qualquer um me queira, justamente porque nenhum me quer. Quem ama demais ama uma fantasia. A idealização é a defesa contra o real. Simone Weil chamaria de amor idólatra, Kierkegaard de desespero disfarçado. Amamos o reflexo, não o outro. E é na queda do ideal que o amor começa. Esse desespero é algo que sinto diariamente, em cada palavra trocada: é como se absolutamente tudo que eu fizesse só encontrasse valor quando o outro me valida. Como não acontece, o desespero brota e faz repetir infinitamente, me prendendo num eterno retorno do horror de não ser amado.

Creio que não idealizo o outro, mas o sentimento, quase abstrato e metafísico, de um amor, de um companheirismo. E por isso as demonstrações contrárias me chocam tanto. 

Entender demais é um veneno lento, o tomamos em doses homeopáticas. O lúcido sofre porque enxerga até o que preferia não ver. Camus via nisso o preço da consciência. Mas talvez o alívio venha quando aceitamos o absurdo como parte da beleza. Pensar não é curar, é suportar o real. E quantas vezes essas constatações me são tão insuportáveis que eu simplesmente fujo do real para as páginas em branco que preencho visceralmente?  

Ser autêntico exige perder aplausos. A máscara social dá menos trabalho que a verdade. Citando Kierkegaard mais uma vez, chamava isso de desespero: o sujeito que vive no personagem. Autenticidade não é sinceridade. É coragem para continuar sendo, mesmo quando ninguém reconhece. No meu caso não há mais máscara ou papel a ser mantida, ou interpretado, e por isso mesmo, na obrigação do ser, me confronto com a realidade brutal da solidão.

O medo de morrer é disfarce do medo de não ter vivido direito. Heidegger dizia que só quem encara a morte entende o valor da existência. Não se trata de pressa, mas de presença. A vida não é curta, é mal usada. Quem vive distraído morre antes da hora. Eu vejo o horror que as pessoas tem da morte. Eu a desejo, a vejo como uma esperança num mundo onde, aquilo que idealizei, o amor, simplesmente não existe. Porque vejo que, após tanto esforço, tantas palavras gastas, ainda assim não sou bom o bastante.

No fim, percebo que não sei para onde vou e nem por onde vou, mas sei que irei sozinho. 

segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Quatro Palavras


Apenas quatro palavras bastaram
para, em estado devastado, 
o pobre que há muito havia se enamorado

À conversa de meses atrás
aquela franqueza maldita
finalmente dita

E as verdades que vieram à luz
tomando pela mão
ao pobre para as trevas conduz

"Já tivemos essa conversa"

Aquilo que, por anos,
em silêncio por um lado acordado 
mas por outro...

A brisa do inverno parece que se foi
a primavera trouxe consigo o calor
e o meu peito, que sempre foi calor

Arrefeceu, não por querer
mas porque como água fria
arremessado se frustrou

E tudo o que era doce virou silêncio,
e o que era sonho, pó.
Nem o tempo, com sua lerdeza,
soube desfazer do górdio o nó.

Veio-me à mente o riso,
aquele leve, distraído,
que um dia pensei ser abrigo.

Mas era só vento,
soprando promessas em vão,
levando contigo meu coração.

Agora falo contigo apenas no pensamento,
numa espécie de prece sem fé,
pedindo que não me lembres —
e que eu te esqueça, se puder.