sábado, 25 de outubro de 2025

Notas sobre a Divisão

Foi uma semana de ânimos exaltados no mundo da Liturgia e, não me surpreende que bem poucos consigam ler o que realmente tem acontecido, enxergando apenas um expediente de seus próprios partidos religiosos e sem perceber o impacto maior que isso tem no quadro geral da igreja no Brasil, nem muito menos compreendendo os fatores que levaram a essa situação.

Primeiramente, a congregação a qual pertencia a Ir. Miria T. Kolling publicou uma nota repudiando as modificações que atualmente tem sido feitas nas suas músicas. Acontece que a Ir. Miria foi, de fato, uma grande compositora, com um enorme número de músicas, mas, num período em que a Liturgia no Brasil estava em completo desalinho com a da Igreja. Não que hoje esteja melhor. E por isso muitas de suas composições, especialmente aquelas que constituem o ordinário da Missa, não contemplam o que de fato pede a Igreja: a simples, mas completa, fidelidade ao texto. 

Como suas músicas são bem conhecidas e fazem parte de algo como um "repertório nacional", muitos cantores, acompanhando a crescente onda de formações a respeito do assunto, fruto da disseminação de grupos de estudos na internet e iniciativas que buscam reformar e retornar a sacralidade da Missa no Brasil, tem adaptado suas letras de modo a não abandonar as composições de uma só vez e nem descumprir o que nos pede a Igreja. 

Segundo a nota da congregação, essa atitude é um desrespeito à memória da compositora. Mas, composições feitas num tempo em que os bispos não davam a mínima importância para o que se cantava, preocupados demais com as questões sociais que dominaram o país por meio da Teologia da Libertação, realmente precisam ser revistas e adaptadas ou substituídas. Infelizmente ninguém fala a respeito das belas músicas, em português mesmo, que se cantavam antes da onda vernacular pós-Concílio Vaticano II. Para a congregação, o respeito pela composição é mais importante que o respeito pelas normas litúrgicas, e, portanto, mais importante que a própria Igreja, uma vez que a lex orandi é a lex credendi, colocando assim a pessoa da compositora acima da unidade da Santa Mãe Igreja, já que a nota está repleta de um certo repúdio a obediência que se deve aquilo que nos pede a Igreja. Acho que não preciso falar mais.

Logo depois, o bispo de Aracaju publicou um decreto, na verdade, publicado no dia de Nossa Senhora Aparecida mas que só agora se difundiu, em que repudia aqueles que não respondem às aclamações presentes nas orações eucarísticas aprovadas para a Igreja do Brasil. Segundo o decreto, o purpurado percebeu a necessidade após um ano à frente da referida cátedra onde, por certo, deve ter tido contato com comunidades que buscam uma comunhão maior com a Igreja ao aproximar ainda mais nosso rito de todos os outros. Sinceramente, cada vez que vejo algo assim, como quando defendem a substituição de "e com teu espírito" por "ele está no meio de nós", sinto que nos tratam como burros. Desse modo, quando os fiéis, orientados por sacerdotes de uma renovada ars celebrandi, explicam que apenas no Brasil isso ocorre porque nosso povo dificilmente consegue entender que a participação ativa e frutuosa da assembleia também diz respeito a oração silenciosa, para os liturgistas que sequestraram nossas rubricas, o brasileiro precisa estar em constante diálogo com o celebrante, quase numa concelebração, ou então sente que não participa. Outro ato lamentável.

Infelizmente ninguém parece se dar conta que a inserção do vernáculo e a abolição do latim é o ponto de partida dessa problemática. Ainda ousam dizer que o rito permite que o fiel participe da missa em qualquer ponto do globo, mas isso não é verdade. Exceto pelo fato de conhecer o rito, como poderia entender uma missa celebrada em japonês? Se fosse latim, uma formação básica da língua serviria para a maioria, ao passo em que momentos específicos como a liturgia da Palavra poderiam se beneficiar do vernáculo. Um missal bilingue também resolveria fácil a situação, mas agora, se eu quiser participar de uma missa no Vietnam, qual a chance de encontrar um missal em vietnamita-português?

Ainda em nossas terras, o Centro Dom Bosco, nos últimos anos levantando a bandeira em defesa da doutrina tradicional, anunciou uma procissão em honra de Cristo Rei, com a presença da FSSPX, inclusive de Dom Fellay a conduzir a mesma. Claro que isso não passou e nem passará despercebido dos demais católicos que vão acusar o instituto de cisma por unir-se a Fraternidade, muito embora o próprio Vaticano não tenha declarado tal, a mesma continuando numa espécie de limbo canônico e um problema que ninguém sabe como resolver. Mais uma batalha nessa longa guerra. Muitos acusam a Fraternidade e o próprio CDB de cismáticos, um pouco arrogantes talvez, mas cismáticos por defender a ortodoxia não. Muito embora eu creia que esses grupos só estejam lutando para manter o já escasso espaço que possuem dentro da Igreja, já que nos últimos anos vivemos uma crescente aceitação de tudo, menos da tradição. Mas, em alguns pontos, parece-me que há também uma boa dose de sensacionalismo e provocação nesses atos. 

E, por falar em Vaticano, pela primeira vez em vários anos tivemos a Liturgia Tradicional sendo novamente celebrada na Basílica de São Pedro. A Missa no Rito Tridentino foi celebrada pelo Cardeal Burke, um gigante defensor da Tradição. Embora esse fato em particular só tenha repercutido entre os grupos mais conservadores, em consonância com os demais, apenas mostra o quão divididos estamos. É uma centelha de esperança que, ao menos, o rito tridentino possa ser novamente celebrado sem a perseguição dos bispos que, por anos, ignoraram o motu proprio de Bento XVI, mas que publicaram ferozes documentos no dia seguinte ao do Papa Francisco, não dando nenhum espaço para as comunidades tradicionais, ao passo em que grupos heréticos e pregadores sem a mínima formação ganham palco, mídia e aprovação universal.  

De um lado temos defensores de uma reforma que ninguém sabe onde vai parar, outros defensores de um retorno quase sem limites, e, na realidade, temos jovens que acham que a igreja são as músicas da Colo de Deus (sic!). Há ainda aqueles que buscam uma posição conciliatória. Vejo alguns jovens se intitularem como "tradismáticos", que buscariam um retorno a tradição com uma espiritualidade carismática. Enquanto criticam alguns excessos da Renovação Carismática que, pouco mais de uma década atrás, ainda arrebanhava centenas de milhares de pessoas para qualquer um de seus eventos, não notam que essas novas comunidades, como a própria Colo de Deus, Samaria e tutti quanti, na verdade, só trazem uma nova roupagem da via neopentecostal daquela, e nem notam ainda que ela é completamente inconciliável com a tradição. 

Quando me refiro, por exemplo, a essa banda execrável, de composições bregas e shows/pregações repletos de momentos de sugestão e transe, além da baixíssima qualidade das falas e das próprias músicas, isso se contrasta diretamente com a riqueza do simbolismo profundo que a Igreja perdeu nas últimas décadas, gerando uma pobreza imaginativa gigantesca. Essa ausência simbólica criou um vácuo no coração da igreja no Brasil, preenchido então por toda sorte de parafernálias, como a crescente burocratização sacramental, as pavorosas inovações litúrgicas que se fincam nos abusos e erros mais deploráveis e numa completa despreparo espiritual dos pastores. O povo então inventa aquilo que lhe parece completar e, ao menos alguns, conseguem notar que o retorno à Tradição é a única via segura, e que as demais são apenas falatório confuso.

Um claríssimo exemplo disso são as frequentes manifestações da CNBB sobre qualquer assunto. A Conferência parece ser hoje dominada por verdadeiras múmias que se preocupam apenas em emitir notas de repúdio que só bobos como eu as leem e pedir dinheiro nos dias de maior concorrência de fiéis nas paróquias, calando-se completamente nos casos em que seria justificável sua intervenção. A obscena demora na tradução do missal, mais fiel à versão latina que, não por coincidência, saiu apenas depois da promulgação do Papa Francisco de que as traduções não precisariam mais passar por uma acurada revisão de Roma, mas apenas ser chancelada por ela. Recentemente o Secretariado Nacional para a Liturgia, ao tratar em nota a ocorrência dos dias de Finados e Todos os Santos num fim de semana, cometeu o desserviço de salientar que a Comemoração dos Fiéis Defuntos é celebrada com paramentos roxos, pois, no Brasil, não é costume usar o preto, ignorando completamente o alcance da mesma nota para incentivar que o mesmo costume seja também aderido por nós.

A Associação dos Liturgistas do Brasil (ASLI), que felizmente é pouco conhecida, frequentemente publica artigos que levam do nada a lugar nenhum. Uma mixórdia de reflexões que servem apenas para criticar todo e qualquer resquício de tradicionalismo nas nossas paróquias, incluindo, mas não limitando-se, até mesmo aquelas igrejas históricas e de valor espiritual inestimável ao povo de Deus, que receberam uma mesa de pedra cortada num formato estranho com toalha costurada porcamente no meio, quebrando completamente a estética que, para nós cristãos, nunca teve apenas valor estético, senão catequético e profundamente espiritual, tornando nossos templos cada vez mais próximos do pauperismo protestante. Com frequência a referida associação também divaga em reflexões sem nenhum sentido, como dizer que a Pastoral Litúrgica deve-se ocupar com a crescente integração do povo no mistério celebrado, mas sem dar nenhuma sugestão concreta, o que, sem a devida formação, é entendido como a aplicação de toda sorte das mais toscas invencionices: o povo deve participar, ao invés de fazer isso rezando e contemplando (afinal não há mais nada a ser contemplado no templo), deve fazê-lo por meio de peças de teatro, de fantasias, momentos de sentimentalismo ou de absurdos, como o tal Cerco de Jericó, que transforma Jesus na Santíssima Eucaristia como partícipe cativo de uma pantomima ridícula. 

Formadores que discutem entre si. Bispos ocupados demais com uma burocracia que eles mesmos inventaram e negligenciando o povo que, sem quem os guiar, inventam qualquer coisa que lhes pareçam completar, e sempre aumentando o grau dessas invencionices, já que a necessidade que eles sentem é do Cristo mesmo, devidamente honrado, como naquela procissão ao fim da Missa recentemente celebrada no Vaticano, soleníssima, em que se cantava, e que esperamos que seja em breve, que "Cristo vive, Cristo reina, Cristo impera!"

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