quarta-feira, 15 de outubro de 2025

Com alguns companheiros

E mesmo assim não sou bom o bastante. 

O raciocínio deles funciona mais ou menos assim: idealizam alguém, desde os detalhes da aparência até a personalidade e até suas contrariedades. Alguém que certo tipo de cabelo, adepta da religião e ainda assim cheia de tesão na cama... E então, focados nisso, perdem as pessoas boas que os rodeiam e que possuem aquilo que mais deveria importar: o carinho, dedicação e sentimentos por eles. Cegados pelos próprios desejos, pelas próprias idealizações. 

Quanto tempo perdemos com essas pessoas que nunca serão capazes de enxergar a nós. Mais uma vez tentando fugir desse ridículo plural majestático, quanto tempo eu perdi com essas pessoas incapazes de me enxergar, mesmo quando eu dava o meu melhor, mesmo quando eu disponibilizava meu tempo, meu carinho, tudo? Quantas vezes quis ser aceito, amado, querido, desejado?

Byung-Chul Han chamou de “sociedade do cansaço” o tempo em que o sujeito explora a si mesmo. As redes sociais novo espelho do narcisismo: precisamos ser vistos para existir. O vício não é na tela, é na validação. A solidão aumentou porque ninguém suporta o próprio silêncio. Com isso buscamos a validação nas fotos e nos vídeos sensuais e eróticos que produzimos e enviamos para as pessoas que idealizamos, na intenção de que sejamos exatamente aquilo que elas procuram, assim como elas são aquilo que buscamos tão ávidamente.

Buscamos pessoas de aparência virtuosa, que citam reflexões religiosas aparentemente profundas, mas repletas apenas de sentimentalismo vazio. Buscamos a beleza perfeita, sem saber que ela pode esconder corações completamente destroçados que também buscam ali a validação que preencha seu vazio interior e que as assusta tanto a ponto de se exporem desse modo. Se eu tivesse uma aparência agradável e não tão horrenda, também o faria. Fico então revisitando as páginas, abrindo as mensagens, na esperança ávida de que, em algum momento, me reconheçam, me percebam. 

No entanto, amor não se mede pelo quanto preenche, mas pelo espaço que deixa. Lacan dizia que desejar é sustentar a falta. É manter esse oco no peito, vendo claramente que o seu sentimento é ignorado, desvalidado, diminuído, porque não corresponde as idealizações do outro. 

Mas esse outro também é idealizado? Nem sempre, o creio eu, pois o desejo pode nascer da convivência, daquilo que vimos no outro e daí brota o carinho. Mas isso não significa que vá brotar também no coração do outro. Também isso pode estar errado, também eu posso estar, na verdade, idealizando que qualquer um me queira, justamente porque nenhum me quer. Quem ama demais ama uma fantasia. A idealização é a defesa contra o real. Simone Weil chamaria de amor idólatra, Kierkegaard de desespero disfarçado. Amamos o reflexo, não o outro. E é na queda do ideal que o amor começa. Esse desespero é algo que sinto diariamente, em cada palavra trocada: é como se absolutamente tudo que eu fizesse só encontrasse valor quando o outro me valida. Como não acontece, o desespero brota e faz repetir infinitamente, me prendendo num eterno retorno do horror de não ser amado.

Creio que não idealizo o outro, mas o sentimento, quase abstrato e metafísico, de um amor, de um companheirismo. E por isso as demonstrações contrárias me chocam tanto. 

Entender demais é um veneno lento, o tomamos em doses homeopáticas. O lúcido sofre porque enxerga até o que preferia não ver. Camus via nisso o preço da consciência. Mas talvez o alívio venha quando aceitamos o absurdo como parte da beleza. Pensar não é curar, é suportar o real. E quantas vezes essas constatações me são tão insuportáveis que eu simplesmente fujo do real para as páginas em branco que preencho visceralmente?  

Ser autêntico exige perder aplausos. A máscara social dá menos trabalho que a verdade. Citando Kierkegaard mais uma vez, chamava isso de desespero: o sujeito que vive no personagem. Autenticidade não é sinceridade. É coragem para continuar sendo, mesmo quando ninguém reconhece. No meu caso não há mais máscara ou papel a ser mantida, ou interpretado, e por isso mesmo, na obrigação do ser, me confronto com a realidade brutal da solidão.

O medo de morrer é disfarce do medo de não ter vivido direito. Heidegger dizia que só quem encara a morte entende o valor da existência. Não se trata de pressa, mas de presença. A vida não é curta, é mal usada. Quem vive distraído morre antes da hora. Eu vejo o horror que as pessoas tem da morte. Eu a desejo, a vejo como uma esperança num mundo onde, aquilo que idealizei, o amor, simplesmente não existe. Porque vejo que, após tanto esforço, tantas palavras gastas, ainda assim não sou bom o bastante.

No fim, percebo que não sei para onde vou e nem por onde vou, mas sei que irei sozinho. 

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