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| "Rain clouds", Vladimir D. Orlovskij |
“Sou como um quarto vazio onde o vento entra e sai.” (Fernando Pessoa)
Nada mais faz efeito, quantidades absurdas de remédio não são suficientes para sustentar o meu eu desperto, venho precisando encarar cada maldito momento dos dias. No início da semana, pelo menos tinha a desculpa de, com a crise alérgica, poder tomar ainda mais e misturar mais, mas mesmo assim, dormia por pouco tempo, retornando para essa realidade e, com uma incrível angústia, perceber que continuo vivo. Que grande decepção! Quão doce o dia que deitarei e não tornarei a abrir os olhos, e tudo o que me cerca não será mais problema meu. O quanto anseio por esse dia.
Anseio pelo dia que não mais pensarei em nada que demonstrei minha imensa imaturidade. Como o fato de ter vivido uma adolescência tardia. Não vivi um romance de adolescência, eu era feio (e hoje estou pior) e ninguém me queria (o que também não mudou), eu não saía para festas, não fui rebelde. Eu fui o filho exemplo, sempre com boas notas, sem reclamações dos professores. E ainda carrego isso. Eu me arrependo não ter vivido mais, sempre me dedicando a ser sério e dar o meu melhor, para os outros. Sinto que perdi a fase de criar conexões, hoje só tenho colegas, não tenho amigos que chamo na minha casa ou que converso sempre ou que possa confiar.
Percebo que preciso aprender a lidar com tempestades. Vê-las chegando ao longe, seus ventos e as ondas impetuosas que elas causam no mar, e depois a calmaria que se segue, quando o sol se abre novamente pela manhã, brilhando no reflexo da água.
Não sei se é uma aceitação de que todos se vão e eu vou continuar sozinho ou o eterno retorno. que eu não consigo amar, de amores que vêm e vão sem nunca serem recíprocos, ao mesmo tempo que buscam o mesmo. Já aceitei a invisibilidade.
É madrugada, e faz silêncio lá fora. Queria que começasse a chover, mas acho que não terei essa sorte. Ao menos do meu lado tem uma caneca fumegante de chá.
Lia algumas páginas de Pequeno Mundo, do Hermann Hesse. A princípio movido pelo interesse pela última novela do livro, O Reformador do Mundo, e os estudos sobre aqueles movimentos esotéricos vividos em gérmen pelo próprio autor na Comunidade do Monte Veritá. Pretendia anotar sobre isso, já que recuo no percurso histórico que tornou possível essa comunidade é uma das coisas mais interessantes que já estudei.
Mas, considerando minhas limitações, atualmente maximizadas pelas perdas de memória típicas do transtorno e das medicações que venho tomando, bem... Acho que isso me consumiria boa dose de esforço.
Acabei me detendo em outro conto presente no livro, O Noivado, me identificando completamente, e com boa dose de vergonha, com o personagem dele. Um homem nos seus trinta anos, sem nenhum talento especial para os estudos, que cuida da loja de aviamentos da tia e, com tamanha incapacidade de traquejo social que aprendeu a falar apenas alguns meneios enquanto faz algumas mesuras. Além disso, um homem feito, mas sem nenhuma perspectiva de futuro, que faz tudo o que a mãe manda, inclusive ao buscar uma noiva, algo que ele considera impossível.
Muito embora os contos desse livro não estejam entre grandes escritos de Hermann Hesse, como documento realmente são valiosos. Nesse em específico, destaco essa imaturidade que, num personagem ali, simbolizaria toda uma geração de jovens adultos absolutamente incapazes. Meus pais não terminaram o Ensino Médio e, embora até hoje morem de aluguel, desde bem novos davam um jeito de se virar. Meu pai criou quatro filhos, com seus desmantelos é claro, mas a minha irmã mostra completa inépcia de fazê-lo. Não fosse pela família, meu sobrinho não teria completado um ano no último dia dezessete.
Me identifiquei muito com o personagem principal que, aos trinta, se encontra completamente desconhecido dos amores e até mesmo das amizades. Esse campo da existência lhe parece um mistério. O outro se lhe apresenta como alguém tão distante que jamais pode ser conhecido e, se conhecido, não pode ser alcançado e, se ainda assim pudesse ser alcançado, não poderia haver entre eles uma comunicação real. Ele observa seus colegas de coro como se o quisessem ajudar, suportando o ridículo de subir num caixote para ficar à altura dos demais, sem perceber que isso é apenas troça, da mesma forma como acaba se expondo ao ridículo no passeio do grupo.
Sua falta da habilidade social é tamanha que, visando apenas aquela por quem se interessa, ignora a que se interessa por ele, e que ele nota apenas e tão somente quando se vê sem nenhuma possibilidade. Em personagens rasos, Hesse revela a pequenez de espírito do homem atual. Me incluo entre eles e conheço um inumerável de pessoas buscam alguém, mas ignoram quem está ao seu lado. Até poderia extrapolar essa observação com aquela feita sobre O Reformador do Mundo, em que cada novo grupo revolucionário, de tipo Nova Era e tutti quanti, se arroga o direito de falar em nome do mundo. O apaixonado enxerga a todos que quer amar menos quem o ama, o revolucionário enxerga a humanidade que quer salvar, mas não o próximo ao seu lado que necessita de salvação. E assim vamos vivendo. Em paz?
(...) Ontem, em pleno expediente, comecei a sentir uma misteriosa angústia. Quero que me entendam. Disse “angústia”, mas explico: — era um sofrimento menor e indefinível... Sofria sem nenhum motivo preciso, concreto. Fui ao boteco da esquina tomar um cafezinho. A angústia continuava lá. Mexendo o cafezinho, descobri subitamente tudo. Eu me afligia porque estava sentindo falta de alguma coisa e não sabia o quê. “Falta alguma coisa”, repetia para mim mesmo. Mas não sabia o que. (Nelson Rodrigues)
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