terça-feira, 5 de maio de 2020

Em perspectiva

Um homem chamou do portão, eu acabara de acordar e estava na sala, meus pais estavam na área e foram falar com ele. Aparentemente se conhecem, se chamam pelo nome, o chamaram para entrar. A conversa era alta, não pude deixar de ouvir. 

Estamos em estado de (relativo) isolamento social por conta do coronavírus, então a maior parte dos serviços não essenciais foram suspensos. Algumas pessoas que trabalham de modo informal ficaram sem ter muito o que fazer, já que diaristas, pedreiros e aqueles tipos de faz-tudo não estão mais trabalhando normalmente. 

Ele veio falar da dificuldade das últimas semanas. Disse que há dias sua família come apenas arroz e feijão, e que por isso veio pedir ajuda. Algo que pudesse ser usado no preparo de uma alimentação melhor, mais completa ou, ao menos, com um pouco mais de sabor. Imagine só, comer apenas arroz e feijão por dias, sem nada mais! 

Quantas outras pessoas não estão na mesma situação que ele ou ainda piores? Ele ainda tem o que comer, ainda que pouco. Mas e aqueles que já nada tem e que não possuem outra opção senão pedir, de porta em porta?

Meus pais são duas das pessoas mais generosas que eu conheço. Nunca vi eles dizendo não para alguém que precisasse, e mesmo quando eles mesmos estavam em dificuldade ai dividiam o pouco que tinham. Ambos tiveram uma criação cheia de limitações, e acho que saber como é a fome faz das pessoas um pouco mais humanas com o próximo. 

Eu, por outro lado, me vejo como extremamente egoísta, mesmo tendo sido criado por eles. Uma coisa me marcou: aquele homem estava há semana sem fazer uma refeição completa, comendo apenas o básico para sobreviver, e eu ainda estava com as mãos sujas de um produto facial que custou o suficiente para alimenta-lo e a toda sua família por uma semana. 

Não tirando o mérito de que comprei com o pagamento pelo meu trabalho mas o que me deixou chocado foi outra coisa. Aquele homem não parece ser fraco como eu, que se tranca no quarto para chorar porque não consegue se relacionar direito com as pessoas ou porque foi atacado por falsos e críticos. Aquilo que me desestabiliza nem de perto desestabilizaria alguém como ele, forte que, na dificuldade tem coragem de bater na casa de outras pessoas a pedido de ajuda. E eu com vergonha de ir na loja trocar a mercadoria que comprei errado. 

Uma pessoa arrogante poderia olhar para ele e sentir desprezo. A minha despensa está cheia, posso me dar ao luxo de comer ou não carne e de escolher entre diversas opções em cada uma das refeições, eu tenho um creme para cada parte do corpo e, literalmente, centenas de reais gastos em cosméticos e maquiagens, além de, é claro, mais livros do que eu consigo ler. Mas, ao olhar para aquele homem, eu não me considero metade da pessoa que ele é!

Eu sou apenas um garoto mimado, acostumado a ter tudo, chorando por bobagens, fugindo dos meus problemas, cansado de não fazer nada, com uma mente distorcida e delicada demais. Eu sou apenas um menino patético que nunca conseguiria sobreviver a uma situação como a dele, morreria a míngua, com vergonha de minha condição. Nele há a vontade, e a força, para viver mesmo na dificuldade, em mim há a desesperança mesmo em meio à fartura. 

Por isso continuo enxergando somente uma pessoa patética quando me olho no espelho. Sequer sou digno de pena. Ele é digno de pena, precisa de ajuda. Eu preciso desaparecer, não mereço abrir a boca para reclamar de nada, mesmo estando infeliz com tudo, justamente por ser apenas um idiota que não conhece a dor e a dificuldade senão nas histórias que li ou nas pessoas que encontrei. Não sou digno de pena, apenas de desprezo e asco. Aquele homem deveria ser um rei!

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