sexta-feira, 8 de maio de 2020

Sussurros

Um demônio me rodeia já há alguns dias. Eu quase consigo tocá-lo com minhas próprias mãos, e escuto seus passos onde estou. Posso imaginar seu corpo esguio, seus dentes enfileirados com as presas pontiagudas, os dedos longos a devanear por sobre a minha cabeça, enchendo minha mente das idéias mais terríveis, como se tentáculos gelados me congelassem a alma, como se uma espada de aço lhe fosse transpassada o coração. Sinto seu hálito fresco, sussurrando em meu ouvido:

"Não, as coisas não darão certo. Nada foi feito para dar certo. Olhe o mundo ao seu redor: assassinatos, pandemia, fome, dor... Nada foi feito para ser bom, o bom foi algo concebido pela mente humana para fugir da realidade. E a realidade é esta que te rodeia, uma realidade cuja única perspectiva de futuro é a morte mais lenta e dolorosa possível. Os seus queridos morrerão, ou te abandonarão, quem você mais ama vai te apunhalar ou morrer gemendo de dor na sua frente. As coisa serão assim para você!

Você vai ver seu mundo desmoronar bem aos seus pés. Será recoberto pelos escombros e pelos corpos, sujo de sangue, poeira e fuligem. Essa sujeira que te cobre inteiro é a sua própria sujeira, você não é mais do que isso. 

As coisas continuarão dando errado. Você não vai se livrar desse cansaço, eu não vou permitir. Colocarei uma carga cada vez mais pesada sobre os seus ombros até que caia, sem poder respirar e sem força para levantar, e seja esmagado, pelo peso dos seus próprios pecados e dos pensamentos que eu coloco em sua mente. 

Aos poucos eu vou envenenando o seu coração, voltando-o contra tudo e contra todos. Aos poucos eu vou tornando-o fechado, frio, como o meu próprio coração. 

E você continuará triste, irritado, com tudo e todos. Com o barulho das suas companhias ou o silêncio ensurdecedor da solidão. Vai querer se afogar, se cortar, achando que aquelas poucas gotas de sangue que caem do seu braço vai eliminar o veneno que pouco a pouco faço você beber. Mas esse veneno não está só no seu sangue, está em cada fibra do seu corpo, está no seu próprio ser, e não pode ser eliminado. 

E, no fim, você desejará a morte. Clamará pelo fim. Mas não há fim! No fim você virá para os meus braços, como já vive, bem longe Daquele que te ama verdadeiramente. Esse é o futuro que eu tenho para você!

E morrerá sozinho, com frio, abandonado por todos, sentindo o gosto do seu próprio sangue, vendo os corpos daqueles que mais ama espalhados pelo chão, com suas almas rastejando pela miséria do inferno a implorar por misericórdia. O mesmo inferno que rastejam aqui, nesse mundo cheio de horrores que vêm do seus próprios corações, depois de um simples sopro meu. 

E lá, na completa escuridão, onde há choro e ranger de dentes, quem haverá de compreender seu coração, quem haverá de te ouvir, quem haverá de te amar? 

Eu trabalho para que aqui você já viva um pouco do que tenho guardado para você lá. Eu trabalho para que sua mente nunca descanse, eu trabalho para que Ele não te alcance. E tenho feito um ótimo trabalho!" 

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