domingo, 18 de dezembro de 2022

Até o centro

Por alguns bons minutos, durante um percurso de um terminal até o centro, nós ficamos próximos, e eu senti como se o mundo parasse de repente. Não me importava mais com nada ao meu redor além dele. Nem as pessoas se amontoado cedo pela manhã e nem os solavancos do trânsito cheio nessa sexta onde todo mundo foi trabalhar de mau humor por causa do jogo da copa mais tarde. Eu fiquei ali, parado, extremamente consciente da presença dele encostado em mim, seu braço tocando as costas da minha mão e um de meus dedos lentamente roçando sua pele branca e fresca por causa do movimento do veículo. E eu fiquei encarando sua nuca e, quando ele se virava, os seus olhos caramelos. Meu braço estava erguido e ele levou a cabeça para trás e se encaixou perfeitamente no ângulo que se formava, mais um pouco e ele se deitaria no meu ombro. Por aquele instante, em que podia sentir o cheiro doce do seu cabelo ainda úmido, eu sorri, e senti como se uma onda elétrica passasse por todo meu corpo, e eu só queria poder fechar os olhos e ficar na presença dele pra sempre. Sua imagem era um símbolo de simplicidade e pureza, seu olhar iluminado porém confuso, sua tez como a de um daqueles deuses menores, que não se ocupam de cuidar dos homens mas apenas em soprar uma brisa fresca, Zéfiro, pelos campos e agrestes escarpados do meu coração, entrando por entre os cedros do meu jardim fechado, ele nem mesmo sabe que está diante de uma paisagem tão íntima que ninguém mais além dele pode ver. 

Não importa como, se isso significasse que eu posso ficar ao seu lado eu iria querer...

Visualizo então a gente vivendo juntos num apartamento pequeno e branco, os olhares melancólicos de duas pessoas que não podem viver mais separadas. Silenciosamente conectadas de modo eterno por um fio vermelho ligado aos seus corações. Um fio que pode se esticar e se enrolar mas que nunca se partirá. 

X

Estou tentando superar outra dificuldade. Desde que cheguei aqui sei bem que preciso parar de tomar tanto remédio para dormir, mas tem sido muito difícil. Depois de apenas uma semana eu já sinto meu corpo pedir por aquela alta dose de um sono profundo, eu já sinto cada fibra pedir pra sentir aquele relaxamento artificial poderoso, que me faz fechar os olhos e acordar somente horas depois, com o dia avançado e aquela sensação de entorpecimento dos sentidos. 

Eu tenho vários episódios de série pra ver, aulas que me interessam e livros que preciso terminar, mas nesses dias livres tudo que eu quero é apagar por um bom tempo e não pensar em nada, não pensar na minha figura no espelho e nem nos anjos que me inspiram e me causam inveja ao mesmo tempo, nem nas obrigações, nem nos problemas financeiros... Apenas apagar, ser envolto pela grande escuridão e esquecer um tempo da existência. 

Sei que bem que é verdade que meus dias não são mais ruins a ponto de eu realmente precisar de me apagar assim, mas o fato é que me tornei viciado nesses remédios e eles me dão apenas um prazer químico breve e destruidor, pois os efeitos no meu organismo devem ser horríveis, mas ainda assim só o que eu consigo pensar é na dificuldade que vai ser daqui um tempo quando a maldita fiscalização começar a complicar a minha vida. 

Pronto, tomei os remédios, e vou apagar em breve, o o entorpecimento dos sentidos pelos benzodiazepínicos, e é uma boa sensação. Pouco a pouco vou sentindo a visão nublada, o doce encantamento de Morpheu, 

Dormirei, e retornarei brevemente... Queria ter sido forte para estudar mais esses dias, mas não consegui, de fato me entreguei aos braços de Hypnos, potência ctônica imensamente maior do que eu e que, espero, possa me conceder um breve vislumbre do mundo dos sonhos, onde a realidade é mais bela do que aqui, onde apartamentos divididos por duas pessoas que se amam e não imaginam como pode ser a vida sem o outro são a realidade. 

X

Eu finalmente tenho conseguido fazer algumas coisas sozinho. Me lembro da tranquila felicidade que foi ir ao cinema sem companhia pela primeira vez, assim como ir a um musical na semana passada e também à algumas apresentações antes disso. Hoje tem um concerto especial de Natal aqui perto do trabalho, e quero ir pois quero que essas coisas façam parte do meu cotidiano, um contato que antes não tinha e que pode me possibilitar, no mínimo, uma maior abertura de consciência para coisas belas. E se não forem belas, que sirvam de contraste para as que são. 

Mas. depois de três meses aqui, começo a me sentir um pouco sozinho aqui, pois não tenho com quem ir a esses lugares. Sei que a solução é justamente me acostumar com minha companhia e, acima de tudo, me agradar dessa companhia. E conseguir viver e acompanhar essa beleza sozinho. No fim das contas como a vida cultural e artística fazem parte do cultivo da intelectualidade, eu preciso me conformar com a vida solitária, adquirindo uma resistência para com esse estado. 

De todo modo, hoje vou fechar os olhos e ouvir a música, deixar que ela faça parte do meu universo interior e passe a compor o meu imaginário, enriquecendo o meu ser, ainda que seja um pouquinho, e ainda que eu tenha vontade de dividir isso com alguém que amo.

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