sábado, 2 de agosto de 2025

O Sim que Nunca Ouvi de Ninguém (Nem de Mim)

O combo para dormir hoje incluiu Fernegan, Ciclobenzaprina, Dramin, Zolpidem e Diazepam. Qualquer um diria que estou tentando me matar, e pode ser verdade, embora eu ache que eu só não estou evitando morrer. Na verdade, não seria ruim, e por isso insisto em dormir, ficar desperto é um incômodo profundo.

Acordei confuso, com muitas mensagens no celular e nenhuma vontade de responder.

Ainda assim fui para a Celebração do Sagrado Coração, onde pelo menos minha função me permitia ficar quieto. Mesmo assim voltei para casa exausto. Tantas pessoas, por alguma razão o sentimento de falta de sacralidade, me deixaram com um vácuo absurdo. Nem sequer consigo exprimir direito. 

E então o resultado é este: cá estou eu, noite de sexta, absolutamente sozinho, tomando energético pra ficar acordado e planejando tomar remédio de novo para dormir durante o dia. Pena que a previsão é de calor. 

Acordei confuso, com muitas mensagens no celular. Mas nenhuma delas me agradou, nenhuma delas era o tipo de mensagem que eu queria receber.

Ao mesmo tempo que me sinto solitário, com a carência latente, me sinto completamente incapaz de me aproximar de outras pessoas. Mas o que aconteceu? 

Fobia social? Decepções sucessivas num número maior do que posso contar que me deixaram ferido e com medo de me relacionar? O fato de continuar sendo o amigo que resolve os problemas, mas nunca o amigo que chamam pra beber na sexta? E se chamassem, eu iria? 

Li em algum lugar que, qualquer coisa como "talvez", "vamo ver" ou "eu não sei" e variantes = não

"Não sei se quero" = não quer

"Talvez eu vá" = não vai

"Preciso pensar" = já decidiu e a resposta é não

O "sim" é sempre muito claro. Qualquer resposta diferente de sim, é não.

É uma lição valiosíssima que eu devia ter aprendido muito antes de as coisas ficarem assim. Frágeis, vazias e sem contorno. Eu demorei muito, bem mais do que deveria, que o "sim" é sempre muito claro. Mas já não cobro isso de ninguém, apenas de mim mesmo. Eu já desisti de respostas claras e, principalmente, já desisti de mim mesmo.

O combo para dormir amanhã vai incluir Fernegan, Ciclobenzaprina, Dramin, Zolpidem , Diazepam e umas trinta ou quarenta gotas de Rivotril. Minha dopada candura é poder me desligar do mundo ao redor.

Devo acordar em algumas horas, e talvez devesse desligar o celular para não ver nenhuma mensagem.

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Altos, Baixos e o Lugar Nenhum

Altos e baixos. A vida continua como um pêndulo. No sentido descrito por Schopenhauer, entre ânsia de ter e o tédio de possuir, mas também, a meu ver, num sentido ainda mais pessimista, como um náufrago que, levado pelas ondas incontroláveis de um oceano brutal, às vezes consegue enxergar a luz clara do sol e outras vezes apenas vê e sente o peso obscuro da água que o sufoca. Altos e baixos.

E o sufoco é algo que sinto constantemente, como se nadasse, corresse, em círculos, um mero macaco andando em círculos na palma da mão de Deus, sem nunca chegar a lugar nenhum. Lugar nenhum. Esse parece ser o meu destino.

Altos e baixos. Em alguns momentos eu quero me cuidar, falo de skincare com os amigos, volto a acompanhar os lançamentos, até me animo em comprar. E no dia seguinte eu sequer consigo sair da cama, quanto mais usar o que quer que seja. 

Altos e baixos. Em alguns momentos pensar no amor, no sentido abstrato ou cristão do termo, me enche de uma luz quente, inflamado, como dizia S. João da Cruz. Mas, como também o dizia no início do mesmo verso, me encontrando em plena noite escura, me perguntando se um dia voltarei a amar. 

Acordei com uma incômoda enxaqueca, não sei se causada pela variação térmica de 10° dos últimos dias ou se é apenas reflexo do desequilíbrio químico no meu cérebro. E então, ontem me obriguei a participar de uma reunião inútil e hoje tenho outro compromisso, mas, a bem da verdade, eu só queria um remédio que me fizesse dormir o dia inteiro. 

Só queria conseguir ser um pouco mais constante no sentir, sem tantos altos e baixos. Sem amar com tanta intensidade ou tanto desprezo, sem mudar tão rápido, sem perder o brilho como fogos de artifício que voam, iluminam e logo depois se apagam. Sem estar com a mente repleta de barulhos ou em completo silêncio.

"Os olhos nus. Em verdade vos digo que chegará o dia em que a nudez dos olhos será mais excitante do que a do sexo." (Lygia Fagundes Telles)

quinta-feira, 31 de julho de 2025

Entre Leituras Inacabadas e Campos Amarelos


Não consegui me ater a uma leitura mais complexa, e me senti um pouco frustrado por isso, mas talvez ainda não seja o momento. Ao contrário do que pensam aqueles idiotas que outrora eu deveria obedecer, eu não estou de férias no CAPS, mas me tratando, enquanto noto inclusive alguns sutis sinais de esquizofrenia na minha conduta.

Me contentei em abrir um pequeno livro de eclesiologia, nada muito extenuante, que consegui vencer em poucas horas e que, felizmente, se encaixa bem com minha linha de pesquisa maior. Ainda fazem parte desse todo que eu quero explorar o simbolismo oriental e a perda do simbolismo no ocidente, bem como seu impacto na teologia cristã, de modo que, por meio do esvaziamento daquele, se deu o esvaziamento do próprio cristianismo. Fato facilmente verificável na futilidade teológica que vemos em nossas paróquias. Bem, ao menos não fiquei completamente paralisado e dei um passo, ainda que mínimo, no que, penso, possa me resultar num livro futuramente, ou uma série deles. De todo modo, se não acontecer, ao menos eu entendi, e estando minha consciência em paz, já estarei grato. 

Imaginei caminhar por um campo de girassóis, estão floridos nessa época do ano. O amarelo daquelas flores contrasta com o céu opaco. Embora algumas pessoas estejam comigo, sinto mais a presença de cada uma daquelas plantas, e tão somente elas. Um belo rapaz caminha no caminho ao meu lado, estamos separados por alguns metros de pés de girassóis, mas é mais do que isso. Ainda que eu corresse por entre as flores, eu jamais poderia alcançá-lo.

Andei um pouco por um bairro mais movimentado aqui, e me arrependi dessa decisão menos de dez minutos depois de ter saído de casa. Sei que passei a maior parte do tempo apático, mas já foi uma evolução, eu acho. Ao menos eu saí não é? Talvez seja isso que chamam de funcionalidade, conseguir cumprir as demandas, no caso comprar presentes pra minha irmã e meu pai. 

Fui direto pra cama quando voltei e dormi um pouco. Ainda estou um pouco travado na leitura, embora considere a lentidão na leitura ainda melhor que leitura nenhuma, ou quase isso. Como comecei falando, não tenho conseguido me concentrar em nada muito complexo, como o livro de Victor Frankl que comecei, mas estou conseguindo acompanhar aos poucos as Vinte Mil Léguas Submarinas de Julio Verne. Mas a reunião de hoje, essa eu vou adiar. Não estou com paciência pra encarar todas aquelas pessoas que acham justo fazer uma reunião para organizar uma festa enquanto fazem aquele teatro ridículo que foi o Cerco de Jericó. Objeção de consciência com pitadas de fobia social.

E já tinha até aceitado que iria, mas, de repente, me sobreveio uma melancolia profunda e, atendendo ao chamado grave do abismo, resolvi fechar os olhos e ouvir a poderosa Sinfonia da Ressurreição de Mahler. Quem sabe eu ressuscite também? 

Há dias em que o coração
amanhece com um pranto
guardado no canto

Um pranto manso, que não grita
mas insiste em escorrer - silencioso - 
por algo que nem sei se foi, se é, ou se será.

Choro pelo que já se desfez.
Choro, talvez, pelo que nunca chegou a ser.
E também por tudo aquilo que existe só no pensamento...

... nas mil possibilidades que a vida poderia ter tomado ou ainda pode tomar.

Não é tristeza. 
É uma melancolia que me visita com as mãos vazias
e ainda assim consegue me tocar inteira.

É um lamento sem nome, sem forma,
como uma saudade de algo que nunca tive.

(Alma Poética)

terça-feira, 29 de julho de 2025

Entre o Silêncio e o Asco

Tem um monte de coisas que eu queria falar com você, mas não é possível. Meu interior quer partilhar com você, por que é isso que os amigos deveriam fazer não é mesmo? Mas eu não posso, e percebo isso quando você vem em minha direção como um tsunami prestes a destruir tudo, sem deixar espaço pra mais nada. Você é um fenômeno da natureza em mim.

Sei bem que esse sentimento é resultado da aglutinação de vários elementos, os quais preciso graduar com relação à realidade e não a minha resposta emocional. O primeiro desses elementos é a sociedade ao meu redor, que me induz por todos os lados a mediocridade da personalidade, valorizando a subjetividade ao invés da realidade, tornando-me um homem incapaz de amadurecer. Essa imaturidade resulta numa falta de senso das proporções, e percebo isso com uma clareza brutal ao ver a importância que dou a essa parte da minha, desperdiçando uma energia que poderia com muito mais proveito ser aplicada ao estudo do que a mera ruminação sentimental. 

Por fim, não menos importante, é a dificuldade que é enxergar as coisas como elas são quando até a química do meu cérebro se desajusta a todo momento. Vivo sempre nessa montanha-russa. Tendo impressões erradas a todo instante que me levam a atitudes que, por fim, me deixam só. 

É mais uma madrugada fria. Embora eu goste do inverno, o acho particularmente solitário. Ainda mais quando olho no espelho e tenho nojo do que vejo, e imagino o nojo que os outros teriam ao ver o mesmo. Por isso venho tentando desaparecer. Acabo então guardando também mais coisas para mim. 

Não disse a ninguém que, tendo engordando, e ficado tanto tempo deitado nesse episódio depressivo, que minhas virilhas estão sujando minha roupa de sangue. Também não disse que ao trocar fotos com um semi desconhecido num aplicativo de mensagens ele me bloqueou assim que me viu nu, ou seja, uma confirmação do asco que sinto de mim mesmo. 

É mais uma madrugada fria. Saí de alguns grupos porque não quero conversar muito com ninguém. Talvez na outra semana, ou quando receber meu próximo pagamento, eu vá ao cinema sozinho de novo.

É mais uma madrugada fria e eu, fera muda, já não grito Eu no coração do mundo.

O Peso de Abrir os Olhos Outra Vez

Eu sei que cheguei ao fundo do poço de um episódio quando vou dormir pedindo a Deus que não acorde no dia seguinte. E então eu abro os olhos do mesmo jeito na maldita manhã seguinte. 

Esperei demais para começar a escrever, o barulho falou mais alto, é sempre assim. E aí as minhas ideias ficam confusas e eu não condigo sintetizar direito. Esse pequeno acontecimento diário é um reflexo também do que se passa no meu coração. Uma pedra lançada sob a superfície de um lago cristalino que, no fundo, esconde revoltosas correntes. 

Eu sei que cheguei ao fundo do poço de um episódio quando vou dormir pedindo a Deus que não acorde no dia seguinte. E então eu abro os olhos do mesmo jeito na maldita manhã seguinte. 

Os raios de sol como penetras pelas frestas das cortinas, tingindo o quarto de um verde-amarelado, vivo. Olho pela janela e constato que, apesar da queda de temperatura, o sol brilha forte.  Qualquer um sentiria animação diante dessa visão. Mas eu não, minha única vontade é a de voltar a dormir, mas sem acordar.

Eu sei que cheguei ao fundo do poço de um episódio quando vou dormir pedindo a Deus que não acorde no dia seguinte. E então eu abro os olhos do mesmo jeito na maldita manhã seguinte. 

É um inferno, meu inferno particular, preso nos recessos da minha própria mente. 

segunda-feira, 28 de julho de 2025

Notas Perdidas Entre Wagner e Mahler

“Sra. Marie Krøyer no jardim em Skagen”, Peder Severin Krøyer

Devia ter aproveitado o tempo sozinho para escrever. Agora, rodeado de vozes, eletrodomésticos barulhentos e tudo mais que se possa imaginar. Penso se poderia me esforçar em organizar melhor a casa. Principalmente agora que finalmente fui demitido, tem tanta coisa fora do lugar que, não raras vezes, fica difícil conseguir organizar o pensamento.

Mais uma vez recorro aquele movimento circular entre a forma da mente e o mundo exterior. Mas acho que também não daria certo. Observo certa relutância das pessoas daqui em manterem uma organização que favoreça uma comunicação mais efetiva entre quem somos e onde estamos. Parece que só eu observo isso. 

Amanheceu bonito, a despeito dos 10° graus de amplitude térmica dessa noite e dos próximos 10° a menos previstos para amanhã. Estava meio nublado, mas alguns raios claros de sol conseguiam transpor a grossa camada cinza. A persistência dessa luz, no entanto, venceu, revelando um céu claro, de um azul belo, vívido, ao mesmo tempo, calmo e delicado. Visão bela. 

Me perdi por entre as conversas, uma tentativa bem ortodoxa de uma protestante de me corrigir, enquanto tentava ouvir a Vorspiel un Liebestod de Tristão e Isolda, de Richard Wagner, e a Sinfonia N° 3 do Mahler. Em vão. Sem possibilidade de concentração. Por isso continuo preferindo as madrugadas,

Mas, além disso, me entupi de remédios, além dos tradicionais Rivotril, Diazepam e Miosan acrescentei também um Dramin. Bom, só espero sono mesmo. Queria mesmo era ter voltado a dormir no momento infeliz em que acordei. Pelo menos já sinto o sono chegar, e não devo resistir a ele. 

"Existo à base de algo que não conheço. Apesar de toda a incerteza, sinto a solidez do que existe e a continuidade do meu ser, tal como sou. [...] Achar que a vida tem ou não sentido é uma questão de temperamento. Como em toda questão metafísica, as duas alternativas são provavelmente verdadeiras: a vida tem e não tem sentido, ou então possui e não possui significado. Espero ansiosamente que o sentido prevaleça e ganhe a batalha." (Carl G. Jung)

sábado, 26 de julho de 2025

Sobre Desistir

Obra de Sasha Hartslief

Mais uma noite em que planejava ficar acordado e assistir, mas acabei desistindo. Não é que a reprise de Hidden Agenda não me tenha prendido, mas de repente, mesmo achando que estava começando a estabilizar, senti de novo aquela dor de cabeça incômoda e a disposição se esvair por entre as fibras do meu corpo.

Mais cedo o barulho me incomodou, e eu não conseguia pensar direito. Agora, tudo é silêncio, como se olhasse uma parede vazia. Quero dormir. Mas não só dormir. Quero dormir de novo quando acordar amanhã, e não ver esse dia desgraçado que é o domingo, mesmo que todos os dias se pareçam com domingo atualmente. Quero acordar só na segunda, ou nunca. Quero acordar quando a química do meu cérebro estiver equilibrada. Quero acordar quando conseguir ver algo além de desesperança no meu futuro. 

Enquanto penso no que mais escrever, já que obviamente minhas experiências de vida estão tão limitadas que já nem sei mais sobre o que falar, e não tenho conseguido ler o suficiente para mudar isso, escuto uma versão da Sinfonia N° 4 de Mahler pela batuta de Leonard Bernstein que, confesso, achei mais fraca que outras peças que já ouvi sob a regência dele. Ou talvez seja meu desânimo falando mais alto. Se, ao fim da sinfonia, somos apresentados a certa concepção de que um longo andamento humano não é páreo para uma breve música dos anjos, eu tento encontrar e entrada para esse mundo.

Mas fui deixado no silêncio, uma vez mais. Não sei se queria companhia, ou se queria pedir pizza. Fico pensando que sempre falta algo para que eu realmente tenha vontade de ser. Que me falta uma bela casa, bons amigos, boa aparência, um bom namorado. Mas eu sei que não é verdade. O que me falta não é algo externo como essas coisas, não. Minha ausência é algo intrínseco a mim. É uma parte que falta no meu próprio ser. 

Mais uma noite em que planejava ficar acordado e assistir, mas acabei desistindo. Não de ficar acordado, mas de mim mesmo.

"(...) Eu às vezes tenho uma saudade de uma coisa que eu não sei o que é, nem de donde, me afrontando." (João Guimarães Rosa)

sexta-feira, 25 de julho de 2025

A luz que não passa

Consegui encontrar alguma força para ir, ainda que sozinho. O que sentia durante toda a experiência? Bem, não é como se eu tivesse tomado a decisão de fazer isso sozinho. Não. Era apenas a aceitação, quase estoica, de um destino a mim imposto. Eu não escolhi ir sozinho, o fui porque não tinha outra opção além dessa ou ficar em casa e não fazer o que tinha vontade. Mas não tive sequer ânimo de comprar chocolates ou entrar numa loja de presentes para ver canecas. Não. Só conseguia estar super consciente da minha condição: completamente sozinho. 

Percebia a cada passo solitário, que realmente sou aquele do qual todos se lembram num problema, mas que, em momentos como aquele, que gostaria de partilhar uma alegria, singela e até comum, eu olhava ao meu redor e não encontrava ninguém. 

Estava lá, sozinho, mas não por escolha minha.

"Atualmente percebo, com toda a nitidez, que eu mesmo, em virtude da minha ilimitada vaidade e, por conseguinte, da exigência em relação a mim mesmo, olhava-me com frequência, com enfurecida satisfação que chegava à repugnância e, por isso, atribuia mentalmente a cada um o meu próprio olhar." (Fiódor Dostoiévski)

X

Podia. Houve um tempo em que podíamos falar de tudo. Então tudo isso mudou quando você começou a enxergar erro e falsidade onde havia beleza, descartando tudo que se parecesse com o pecado, ainda que fosse oposto a isso. Você não percebeu, mas ao fazer isso, levantou uma barreira entre nós. Você não a enxerga, mas para mim ela é não só visível como palpável, uma gigantesca muralha de cristal, refletindo ambos os lados. A beleza que tento te mostrar não chega a você, e você se fechou num estado de contemplação surpresa onde, imobilizado pela grandeza do que vê, é incapaz de avançar justamente porque dar um passo significaria aceitar que há beleza após esses umbrais que você evita transpassar.

É triste, pois a muralha também impede que meu amor o alcance, e então você, ao olhar o que supostamente seria seu horizonte, enxerga apenas as possibilidades que dele me excluem completamente. Incapaz de ver a verdade em meus sentimentos. 

Por isso eu só posso me lembrar com saudades daquela época, em que podíamos fala de tudo, e que não parecia haver uma barreira tão grande diante de nós. Os reflexos de sombra e luz que você julga serem a verdade são, em verdade, reflexos do seu medo. Medo esse alimentado por um puritanismo que contaminou seu coração, impedindo que você usasse a luz da Verdade para limpar aquilo que lhe era realmente útil, bom, justo, daquilo que lhe era sujo. Em verdade é uma linha tênue de se distinguir, mas a muralha que você ergueu também me impede que eu o ajude. Logo, o que você vê, essa luz brilhante, na verdade esconde as sombras que se aproximam lentamente do seu coração, como tentáculos silenciosos, prestes a joga-lo no mesmo abismo do qual você julga fugir. 

"Mas o destino não é o único
culpado
nós desperdiçamos 
nossas oportunidades,
nós estrangulamos 
nossos próprios corações.

Uma pena, uma pena, uma pena."

(Charles Bukowski)

quinta-feira, 24 de julho de 2025

Sob a mercê

Tragédia anunciada. Queria escrever e logo cedo percebi que não seria possível. Barulho, muito barulho. Não uma sensibilidade auditiva nem nada do tipo, mas crianças chorando, panela de pressão, pessoas gritando, entregas sendo feitas. Talvez seja essa uma reclamação "burguesa", do tipo Odete Roitman reclamando do Brasil, mas adorando uma carne nacional, se é que o leitor me entende. Eu também amo uma carne nacional, já que não me tem sido oferecida nenhuma carne asiática. 

Acontece que cada um necessita de coisas distintas. Tenho um amigo que há anos sai quase todos os dias do trabalho e da faculdade para um barzinho, nem sempre para ficar bêbado, às vezes completamente fora de si, mas para encontrar amigos, conhecer pessoas novas, ouvir música e beber. E ele fica radiante com isso, cada vez que o vejo assim eu o sinto feliz. Não sinto que é uma fuga, até pode ser, mas um hábito, algo que o faz feliz, e fico feliz em vê-lo assim. 

Mas eu amo o longe e a miragem. Outra amiga me disse que eu era como uma ideia, um conceito pairando no mundo das ideias, porque me sinto triste quando estou sozinho e quando estou acompanhado, e é verdade, infelizmente. Eu preciso de silêncio, espaços, vírgulas, reticências. 

Preciso fechar os olhos durante uma sinfonia de Mahler ou um concerto de Rachmaninoff e então deixar fluir pelos dedos algo que vem do coração. Do contrário, me restam dias como hoje, exaurido pelo barulho, indo dormir ao meio-dia, incapaz de continuar. 

E hoje eu queria tentar ir ao cinema sozinho, mas tomei tanto remédio que provavelmente só vou acordar amanhã. 

Queria tentar fazer algo só. 

Queria, 

só uma vez,

não ficar a mercê do que querem os outros para mim e ignorar o que eu quero. Eu queria tentar ser só e ser feliz, ou ao menos satisfeito, já que, estando só sempre, acompanhado ou não, essa é a minha forma essencial. 

"O seguro desemprego acaba, e lá estamos nós, como ratos: sem nenhum lugar para se esconder, ratos que precisam pagar o aluguel, com barrigas que sentem fome, caralhos que ficam duros, espíritos que se cansam, e sem educação, sem profissão. Uma merda difícil de aguentar, como dizem, essa é a América. Não queríamos muita coisa e não conseguíamos nada. Era tudo uma merda." (Charles Bukowski) 

quarta-feira, 23 de julho de 2025

Por essas paragens

Meu sobrinho acordou assustado, e começou a chorar, e ninguém conseguiu fazer ele parar. Peguei ele no colo e brinquei com ele por mais de vinte minutos até ele se acalmar. Ele estava com muito sono, encostava a cabeça no meu peito, mas não conseguia pegar no sono. Depois de parar de chorar ele tomou um pouco de leite com chocolate e, ainda minutos depois, pegou no sono. A imagem dele encostado em mim sempre me marca bastante, especialmente depois que ele para de chorar. De algum modo aquele pequenino confia em mim, se sente confortável o bastante para sorrir e dormir quietinho no meu colo. A pureza delicada desse momento é uma lembrança cara, a qual eu nunca imaginei ter, afinal, nunca imaginei ser pai e, mesmo sendo apenas tio, essa é uma experiência que me faz repensar sobre tudo: sobre uma pequenina pessoa, incapaz de sobreviver sozinha por algumas horas, dormindo paciente e confortavelmente em meus braços, sorrindo quando eu brinco, e se acalmando quando a acalento. 

Essa breve visão é um tipo de, como poderia dizer? Pense num caminheiro a cruzar agrestes escarpados, ventos fustigantes a castigar seu rosto, depois um deserto escaldante, meses longe de sua cidade, sem lugar para repousar a cabeça, e enfim, no meio do caminho ele encontra um bosque, onde pode sentar-se na beira de um riacho e refrescar sua face, saciar sua sede com aquele fonte cristalina e a fome com as frutas que crescem ali perto, ao alcance da mão. É um sorriso do mundo para um homem cansado, caminhando sem rumo, mas que, por instantes, pode contemplar alguma beleza que não as dores de seu corpo ou as estradas da vida. Essa contemplação, de um viajante silencioso, é assim, silenciosa, amorosa. Ele observa ao redor e cada detalhe se imprime em seu coração. Lhe servirá ao retomar a jornada uma vez mais.

A beleza desse bosque é essa. Ele, no entanto, não pode ficar apenas ali. A caminhada continua, a beleza fica para trás até que se encontre outra. O homem então deixa ali aquele instante, leva consigo suas memórias, e fica aguardando a próxima paragem. Retorna sua jornada, mesmo sem vontade.

Ele caminha, de novo sem saber para onde vai, apenas continua. No entanto, não raramente, ele apenas para e se deita beira da estrada, incapaz de continuar. É como se, a cada passo, seu corpo fosse ficando mais e mais pesado. Quando isso acontece, não importa o calor do sol ou o frio, ele apenas apaga. Muitas vezes acorda coberto de poeira, neve ou próximo a algum pássaro que acha que se trata de um estranho tronco caído, já sem vida. O que, de certo modo, não está errado. É que, de tempos em tempos, ele precisa morrer, ainda que seja essa morte breve de cada dia, porque a vida, contínua, lhe é demasiado pesada. E então ele fita o horizonte, antes de cair em sono profundo,

"Eu às vezes tenho uma saudade de uma coisa que eu não sei o que é, nem de donde, me afrontando." (João Guimarães Rosa)

terça-feira, 22 de julho de 2025

Depois da Euforia

Em dias que estou eufórico, eu não penso nas consequências. Quero um livro? Que tal comprar mais do mesmo autor, mas isso pode elevar um pouco o valor. Dois mil, três, quatro, cinco mil em livros? Parece okay. Suplementos alimentares, canecas, perfumes... Mas tudo isso é um problema meu. No fim eu vou ter que dar um jeito de pagar. 

O problema real é quando, nesses dias, eu falo demais. E aí, no dia seguinte, depois de uma noite consumida de desejo que se tornou cinza, eu me vejo em meio a um campo de batalha. Convoquei exércitos, lancei bombas, todos se viraram contra mim. E então ela retorna, a depressão, o fundo do abismo que não apenas te olha, mas ameaça te devorar. 

Com tudo isso vem de novo o medo da solidão, de ser deixado para trás enquanto os outros riem e sorriem. Mas, afinal, eu já não estou sozinho mesmo? O que muda? Claro, a minha aceitação a esse destino, amor fati, mas que, no entanto, é mais fácil falar do que fazer. 

Em momentos como esse, o silêncio, as parcas palavras, a distância, tudo diz para minha mente distorcida que é de novo uma nova condenação de memória, de silêncio, de solidão. Vou alimentando um monstro que quer me devorar. Prenunciando uma profecia autorrealizável. 

E então, numa monstruosa contraposição, o mundo de silêncio se enche de barulho, e eu, que até então tateava na escuridão por companhia, me vejo querendo fugir de tudo e todos. Quando tudo era silêncio, eu clamei por alguém e só podia ouvir minha voz num eco, e agora, quando não quero senão a solitude, as vozes não me deixam. Por mil infernos! 

Sempre querendo algo, seja a companhia no silêncio ou a calmaria em meio a uma imensa multidão. 

Em momentos assim eu nem sei quem sou. Eu ou a doença. Essa energia toda é finalmente um bom dia ou um episódio hipomaníaco que vai deixar rastros de destruição. Essa depressão, esse cansaço absurdo, tristeza profunda, é só um dia ruim como todos têm? Eu já não sei mais o que sou eu, o que é efeito da medicação, quem são os amigos, quem eu amo de verdade? O que é real? O que estou vendo sob o véu de um transtorno afetivo? O que estou imaginando como se fosse o efeito colateral bizarro de uma anestesia mal aplicada?

E sei também que isso cansa, não só a mim, mas os outros. Por isso os amigos logo se vão, por isso os convites se tornam escassos, por isso eu deveria ficar cada vez mais sozinho. Ninguém suporta tanta mudança, uma pessoa tão instável. Com uma demanda constante por afeto tão esmagadora. Num querer, num gostar, num amar que muitas vezes me tira até o fôlego. Amar é complicado. Sentir é complicado. Mas eu só sei sentir assim. Uma chatice, insuportável. E então as mensagens vão se tornando cada vez mais raras, a menos que alguém precisa de mim. E no fim é isso que resta: alguém que é útil, mas que ninguém quer ter por perto. Uma bomba de efeito retardado. 

É solidão, mesmo quando acompanhado.

"Não desejo nada mais que um sono reparador. 
Contudo, parece que já estou dormindo. 
E que vivo um estranho sonho." 

“Kumonosu-jō” (1957) 
Dir. Akira Kurosawa

domingo, 20 de julho de 2025

Falta

Hoje eu senti sua falta. 

Hoje eu senti tanto a sua falta. E isso não foi apenas para uma pessoa. 

Mas eu não devia. Eu devia, eu devo, eu preciso, aprender a fazer, aprender a ser sozinho. A comer sozinho, ir no cinema sozinho. Não mandar mensagem quando não correspondido. Mas eu continuo. 

Continuo. 

Continuo. 

E não devia. Mesmo estando e sendo sozinho há tanto tempo, eu ainda não sei. Hoje, de novo, eu senti sua falta. Ontem também. Amanhã provavelmente sentirei também. Mas eu não devia. Só que eu não sei ser diferente. Eu só sei sentir. Sentir sua falta. 

E por isso eu sinto muito.

Estou com aquela sensação de que nada vai bem. Meu corpo todo dói, reflexo de vários dias deitado por conta de um episódio depressivo mais forte que o normal, além de uma crise respiratória grave ontem que me deixou completamente acabado. E claro que, quando se passa muito tempo deitado, o coração encontra espaço na cabeça para plantar suas sementes, que nascem como pragas, brotando como esperança, essa terrível inimiga dos apaixonados. 

Então agora não sei se minha vontade é tomar um vidro inteiro de xarope ou uma meia garrafa de vinho de uma só, ou quem sabe ambos. Porque eu sei que, quando deitar, e ficar super consciente da dor e de todo desconforto, 

eu ainda vou pensar que senti sua falta. 

sexta-feira, 18 de julho de 2025

Sonhos e Delírios

Assim como o ciclo das estações se sucede indefinidamente, desde a aurora dos tempos, passando pelo outono das eras. Ao mesmo tempo em que tudo se repete, nada permanece igual, tudo muda, como disse o velho Heráclito. Conclusão igualmente desconcertante, obvia, conquanto genial, que só pode vir da observação, algo digna de um quase monge que tenha, imóvel, por décadas, observado na sucessão infinda da criação, as mudanças que a tornam tão mutável. 

Mas, enquanto os filósofos observam, junto aos cosmólogos, os naturologistas, biólogos e tutti quanti, o que acontece ao universo ao nosso redor, os poetas, os bêbados, e os que, como eu, não se encaixam nem entre os primeiros e nem entre os segundos, se ocupam de observar, não com menos atenção e espanto, o próprio interior do homem.

Seja por meio dos grandes escritores da história, ou daqueles relegados ao esquecimento, dos pensadores moralistas que intentavam sondar o interior de cada homem, dos estudiosos da mente humana que buscavam compreender os impulsos mais profundos e discretos, desconhecidos e ignorados inclusive por aqueles por eles controlados. Em todos os casos observamos esse reflexo do universo, o microcosmo de estações que se sucedem se repetem e que, ao mesmo tempo, se transformam sempre num movimento infinito. 

O coração do homem é, talvez, ainda mais misterioso que os oceanos profundos e o imensurável espaço até hoje inexplorados pela humanidade que, ignorando o que se passa em si, se volta para as belezas que a rodeiam. 

Sim, porque é mais fácil. Agora, sem me arrolar o direito de falar em nome da humanidade, digo que é mais fácil observar os homens belos, as criaturas, os dias de sol e de chuva, as grossas nuvens, do que me perguntar a razão de continuar a insistir naquilo que já me é mais do que conhecido e resolvido, que já passou, que em nenhum momento houve real possibilidade de ser, ao mesmo tempo em que, no coração, alimentava-se uma esperança, tão bela, tão luzidia quanto a mais valiosa esmeralda, mas que, depois de certo tempo, transmutou-se em gema de desespero, conservando o brilho esverdeado já não refletia mais um futuro belo, mas a verdade cruel de um espelho quebrado. 

Esse futuro nunca será, jamais será. Foram apenas os habituais devaneios, surtos, sonhos alucinados de um não-ser, fantasias de uma criança com medo do abandono. De um homem que, dentre todas as conquistas dos homens, apenas queria acordar ao lado do amado, sem que fosse um sonho, um delírio causado por um remédio anormalmente forte. 

É sexta a noite, e eu só queria uma companhia. Um amigo, um amante. Alguém pra tomar umas cervejas, foder e assistir séries, depois dormir num abraço. Delírio.

"Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria e peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles." (Clarice Lispector)

terça-feira, 15 de julho de 2025

Coelhinho Branco

A psiquiatra diminuiu a dose de um medicamento mais uma vez, e isso leva tempo para o meu corpo se acostumar. 

Meu corpo parece feito de chumbo. Tenho dormido mais de dezesseis horas direto. Tudo parece meio nublado, minha cabeça dói e meu humor muda várias vezes ao dia. De manhã eu quero maratonar uma série a noite toda, chega a noite e eu só quero dormir. Impaciente. Estou obcecado pelo Apo que dançou no MV de White Rabbit do Daou Pittaya. Queria rebolar como ele. Ou segurar na cintura dele. Ou ser atropelado. Eu já nem sei mais o que fazer. Tem um domingo eterno na minha vida. Melancólico, demorado e com gosto de ressaca.

Comecei a rever Dangerous Romance, quando Perth e Chimon ainda eram parceiros, antes do Chimon se afastar para tratar a saúde mental. E pensar que ele chegou até a aparecer nos primeiros materiais de divulgação de Perfect 10 Liners, onde foi substituído pelo Santa. E o Chimon é, na minha opinião, um dos melhores atores da geração, ao lado do amigo Nanon, que também é um caso grave de depressão. Me lembro dele, Nanon, dizer que só se sente vivo quando trabalha, isto é, quando interpreta, quando dá vida a algum personagem, já que ele mesmo não existe. Não sei se consigo virar a noite como planejei.

Isso me mostra, embora não me conforte, que eu não o único a ficar doente assim. Isso me enche, na verdade, de novo pessimismo, uma espécie de conformismo fatalista onde me parece que todos, do viado maníaco-depressivo ao ator lindo e talentoso, estão ferrados nessa vida. A diferença é que nem todos se dão conta, e eu não queria lembrar dela, mas aquela velha bruxa com uma mania supercontroladora motivada por um transtorno obsessivo compulsivo que ela não diagnostica e não trata, também se inclui aqui, mas ela não sofre sozinha, o faz perturbando os outros. Talvez como Oscar Wilde disse, "o pessimismo é uma pessoa que, podendo escolher entre dois males, prefere os dois." 

Me sinto um pouco alucinado. Talvez seja o energético de manga que tomei brigando com os outros elementos químicos do meu cérebro. Mais cedo eu jurava que ia conseguir virar a noite, empolgado com PerthChimon, mas agora, já quero dormir. Estou inseguro com meu dinheiro do FGTS, não consigo ficar tranquilo dependendo dessa burocracia para ter dinheiro. Sempre acho que alguma coisa vai dar errado. Estava adiando por dias a entrada no meu Seguro Desemprego porque achei que seria quase impossível de resolver, quando só precisei digitar um código de dez dígitos. Mas eu preferi sofrer antecipadamente por dias. Foi Millôr Fernandes quem disse que "o pessimista fica feliz quando acerta e quando erra." Talvez fosse melhor eu forçar um pouco e voltar para minha série, atualizar o aplicativo do banco de madrugada certamente não vai fazer o dinheiro entrar na minha conta.

Por fim, a última citação, porque eu mesmo não consigo dizer mais nada, portanto, deixo que os outros falem por mim: 

"Esperar pelo melhor é preparar‑se para o perder: eis a regra. O pessimismo é bem grande, é fonte de energia." (Fernando Pessoa)

segunda-feira, 14 de julho de 2025

Desencontro

"A busca pelo desencontro é o teatro preferido de quem teme investir no desejo." (Lacan)

Há anos eu tenho essa impressão, e cada vez mais certeza, sobre mim: há algo definitivamente quebrado em, algo de intrinsecamente errado, uma espécie de imperfeição fundamental no ser. Por isso que, mesmo depois de tantas e tantas tentativas, continuo quebrado, esquecido numa cama, com o corpo coberto de feridas e dores em todos os músculos: trata-se da manifestação dessa imperfeição. Ela me impede que eu me conecte com os outros, ainda que me conecte com palavras e músicas de outros tempos, mas os outros, aqueles que estão próximos, ainda sinto que estou mais distante deles do que daqueles que já se foram. 

É quase como se, ao ler um livro, eu conseguisse captar aquela tristeza atemporal, aquela luta de todos os tempos, a angústia que perpassa o coração do homem desde seu primeiro pensamento, e isso me faz participante dessa história. Mas ao olhar o outro, ou simplesmente falar com ele, não consigo sentir senão uma distância abissal. Não basta que me mantenha aberto, não basta que eu ame, que eu demonstre, a distância parece jamais diminuir. E é dolorido, ver que entreguei tudo que tinha, mas, ainda assim, não foi o bastante, porque meu gênero, a faculdade, o tempo, foram mais decisivos que os sentimentos. 

E como eu insisti. Maldita insistência.

Eu queria dizer alguma coisa, mas tornei a esquecer, tem sido assim ultimamente. Venho tentando ignorar minha família se empolgar com uma mudança para o bairro ao lado, eles querem uma casa maior e, embora eu também queira, sei que vai ser só mais espaço para bagunça. 

Eu consegui e levantar, tomar um banho, mas não mais que isso. Desanimo de qualquer possibilidade no exato momento em que a ideia se cristaliza na minha mente, e então a destruo com um grande martelo. A mudança não significa nada, como o amor não significa, como os livros que sempre me gabei de ler, mas que agora pegam mofo nas prateleiras, também não significam. Nada é capaz de fazer brilhar meus olhos. 

Queria ficar acordado, eu juro que queria. Queria ficar deitado no chão, lendo e ouvindo música, me alimentando de algum modo. Mas eu não consigo. Me sinto cada vez mais e mais dependente dos remédios para dormir que me fazem passar inconsciente pelos dias entediantes. Uma solução seria buscar logo um trabalho, mas eu me recordo de ter que receber ordens daquela velha bruxa com super controladora por causa de um transtorno obsessivo compulsivo que ela não diagnostica e não trata, e aí desanimo também. 

Vou receber algum dinheiro nos próximos dias. Deveria guardar? Ou comprar mais dos livros que eu quero e que desejo um dia ler, fazendo parte daquele plano geral das minhas ideias? Não vejo essa compra como inútil. Seria mais útil se eu conseguisse ler mais rápido, mas, no momento, venho tentando me distrair com histórias mais leves. Pelo menos é melhor que nada, mas, após ler um livro inteiro em dois dias, o segundo já abri dois dias atrás e li apenas alguns capítulos. E acho que hoje não vou evoluir muito, visto que já enchi a cara de remédios.

Queria emagrecer, e comprei algumas sopas na internet, naturais e até bem gostosas que poderiam me ajudar (sim eu sei que não vou perder 30kg tomando sopa, mas é o que posso fazer). Mas até elas eu estou com preguiça de fazer. Academia ou exercícios ao ar livre? Fora de questão, se até levantar da cama é um suplício. Tirei algumas fotos na vernissage da galeria de um amigo meu, queria inaugurar uma espécie de nova fase, mas ao ver o tamanho da minha barriga, desisti completamente.

Alguns amigos sabem que não estou bem. Mas não sabem tudo.

Eles não sabem das feridas no meu corpo. Da minha virilha e axilas sangrando por conta dos pelos e do suor acumulado. Não sabem do sono desregulado, dos pesadelos, das dores no corpo todo. Eles oferecem apoio. Mas eu me sinto sozinho. 

Comecei esse texto com uma citação de Lacan. Ele faz referência a uma dinâmica bastante comum, no campo da subjetividade. Há muitos sujeitos, como eu, que apostam repetidamente nas frustrações planejadas, na autossabotagem, como forma de se protegerem de um desejo real e realmente destrutivo. Por isso a minha longa lista de paixões por homens que nunca se interessariam por mim. Quando, no entanto, sinto aquela eletricidade, uma espécie de sinal indicando que posso seguir em frente, eu fujo inventando as desculpas mais estapafúrdias, como a aparência, que justamente é meu cavalo-de-batalha ao afirmar que a gentileza supera a beleza física imediata.

A imagem teatral é bastante conveniente. Enceno o desencontro, a dor, a partida, sempre próximo "ao que poderia ter sido e que não foi". É uma estratégia de autoproteção. Escolho situações em que posso sair de cena, ainda que insista permanecer nelas, porque comprometido com uma narrativa real significa não poder fugir facilmente, e enfrentar verdades dolorosas de uma realidade impiedosa. 

"Há palavras que requerem uma pausa e silêncio." (Herberto Helder)

sábado, 12 de julho de 2025

Nada Adianta

Nem adianta ficar bravo, quieto ou em silêncio. Em verdade não somos importantes assim. Não importa que durma o dia inteiro, tomando tanto remédio para isso que meu estômago já dói. Ninguém liga. Acho até que manter distância é um favor que faço, não é mesmo? 

Pois bem, aproveito a companhia de algumas taças de vinho e, hoje, um dos concertos para piano de Beethoven, admitindo que a maior parte do meu interesse é no Yuncham Lim, se além de virtuoso ao piano também e um colírio para os olhos, então que aproveitemos não é mesmo? Se a solidão é nossa sorte de todo modo, ao menos que possa gozar dela de algum modo.

E enquanto isso todos dormem. E eu reflito sobre a solidão. Uns fariam poesia disso. Eu só me acho patético mesmo. 

Admito, se pudesse, eu apenas dormiria, numa casa bonita e arrumadinha. Sairia do quarto pra sala usando roupas largas, sem me preocupar com prazos, entregas... Nada disso. Meus livros, produzo em quantidade não para cumprir um prazo editorial, mas apenas para descarregar toda frustração que carrego entranhada no ser. Uso as gotas de sangue como tinta, numa caligrafia caprichada escrevendo minhas bobagens, porque eu tenho consciência disso, não passam de linhas e mais linhas de bobagens infantis, adolescente apaixonado que ainda não cresceu. Nada de valioso, nada de virtuoso. Apenas a sensibilidade de uma criança.

Nem adianta ficar bravo, quieto ou em silêncio. Em verdade não somos importantes assim. Não importa que durma o dia inteiro, tomando tanto remédio para isso que meu estômago já dói. Ninguém liga. Acho até que manter distância é um favor que faço, não é mesmo? 

Maybe they just don't give a damn!

"(...) Por que o senhor pretende excluir de sua vida qualquer inquietude, qualquer dor, qualquer melancolia, sem saber o que essas circunstâncias realizam?" (Rainer Maria Rilke)

sexta-feira, 11 de julho de 2025

Minhas Imagens

"Encare o mundo de forma criativa, crie o mundo. Só o que você cria tem significado para você" (Winnicot)

Começou. 

Meus constantes devaneios. As imagens de luz e sombra, sorrisos e momentos de carinho. Duas canecas de café fumegando ao lado do casal que se olha de modo terno.

Sim, é irritante quando alguém deseja algo e só consegue pensar naquilo, não é mesmo? Os outros não conseguem entender. É impossível, pois é algo de valor apenas para mim. E de nada vale aos outros.

Sim, apenas aquela imagem foi capaz de mexer tanto comigo. Ou melhor, a falta de reação a ela. Mas eu bem sei que ela só tem esse significado para mim. Só eu vejo em duas canecas um sinal de intimidade maior que o sexo, vejo prelúdio de um tempo de carinho, prólogo de um amor que não poderia caber jamais em nenhum recipiente, mas que é, ao mesmo tempo, tão singelo quanto a fumaça que delas desprende em suave perfume, e tão quente, capaz de aquecer corpo, mente e espírito.

Mas eu também sei que os outros não conseguiriam apreciar isso. Tanto que estou aqui sozinho de madrugada falando sobre isso. Nada significa essa imagem aos outros, ainda que gostem de café. Assim como nada significa os meus convites, eu sou apenas a segunda opção, quando a garota recusa o convite para sair.  

Ou, em outros casos, nem opção eu sou.

O que Winnicott queria dizer é que somente tem sentido aquilo criado pelo ser, isto é, não uma criação "ex nihilo", mas uma espécie de conexão com o objeto, o outro, o mundo, enfim, algo que crie no eu um envolvimento profundo, emergindo daí então o significado. Parece óbvio, e, na verdade, o é, mas ainda assim esconde essa verdade que também pode ser dolorosa: a experiência é, por definição, pessoal, logo a conexão só pode ser também pessoal, resultando da mesma experiência significados diversos em seres diversos, espero aqui não estar incorrendo em kantismo demasiado, mas não consigo ver de outra forma.

Isso pode ser expresso nas limitações da linguagem bem como no escudo da consciência, nos limites entre o eu e o outro.

O que para mim é símbolo de intimidade, carinho, afeto, para o outro é simbolo de um bom momento, mas não um bom momento comigo.

Acho que esqueci da minha vida intelectual e de meus objetivos para me perder em devaneios olhando canecas fumagentes. 

"(...) A vida de estudo é austera e impõe pesadas obrigações. Ela traz compensações, por sinal, generosas; mas ela exige um investimento à altura de poucos. Os atletas da inteligência, tal como os do esporte, devem prever as privações, os longos treinos e uma tenacidade às vezes sobre-humana. É preciso entregar-se de todo o coração para que a verdade se entregue. A verdade só está a serviço de seus escravos." (A.D. Sertillanges)

terça-feira, 8 de julho de 2025

Palavras e Notas

Hoje eu só queria uma coisa: desaparecer, não ser, não existir, não sentir. 

Não perceber que me encontro numa página completamente diferente das outras pessoas: que o que lhes parece bom a mim é chato, e eu deveria começar a sair sozinho, se não achasse isso patético.

Não vejo motivo para isso. Apenas quero um dia sem ver ninguém.

E é de uma grande tornar a esse estado de melancolia um dia após ter escrito sobre a beleza de uma manhã ensolarada. Mas é assim que as coisas são, pelo menos para mim. 

Basta que feche os olhos e pense por alguns instantes naqueles que me são mais próximos e caros. Logo percebo o quão distante de cada um deles eu estou. Isso porque seus pensamentos são tão tão diferentes dos meus, que não consigo sequer compreendê-los, ao passo que também eles não compreendem a mim.

Vejo um enlouquecido pela rotina de trabalhos e estudos, quase já sem tempo para mim. O outro, nem mesmo sei o nome, mas era belo, e me mostrou as tatuagens do corpo com naturalidade e um sorriso cativante. Outro naquela fase da conversão em que as almas se apegam aos refrigérios e consolações e se deixam deslumbrar por elas, sem se preparar para a aridez que se seguirá. 

E essa aridez eu conheço bem.

Distantes. Todos eles. Distantes demais para que eu os alcance.

Pretendia virar a noite assistindo, e até tomei energético para isso, no entanto, perdi a vontade. Depois me sentei para escrever, com uma taça de vinho ao lado e Rachmaninoff no player, mas sem sucesso, cada uma dessas palavras me dói para ser escrita, não me soam verdadeiras, mas algum tipo de artifício: eu preciso dizer algo mas, por não saber o que é, me lamento dizendo que não consigo dizer. Eis-me diante dos umbrais dos limites da linguagem.

Da minha linguagem, das minhas limitações. 

Busco então inspiração em outros corações apaixonados, doloridos, poéticos. Me percebo que, num dia, escrevo sobre a beleza do sol e, no dia seguinte, me escondo do mesmo sol, atrás de cortinas finas que, filtrando a luz amarela como um véu verde, deixa as paredes do meu quarto numa cor que me evoca veneno, doença...

Penso no encontro do fim de semana, e lembro que, embora na minha frente, ele pensava em outra pessoa enquanto bebia do mesmo copo que eu. E sorrio sozinho quando me percebo caindo novamente na mesma armadilha que criei. Nesse abismo que cavei com meus pés, amo essa imagem da música de Cartola, mas também não é minha. Quase nenhuma das imagens que uso são. Até minhas lágrimas, a maioria são de Jeremias, o pessimismo do Velho Buck e outros, esse certo desencanto mesclado com esperança e boas doses de psicose de Clarice Lispector e assim sucessivamente. E então vou criando, como uma quimera, as minhas imagens, numa colagem de dores, de sonhos, de rompantes de ira.

Me pergunto se serei capaz de amar novamente. Amar mesmo, não apenas achar alguém bonito. Quem me conhece frequentemente acha que eu estou sempre amando. Mas eu não sei disso, acho que só amei de verdade aqueles que, ainda hoje, penso com um carinho especial, que me apertam o peito e mudam minha respiração. 

Yunchan Lim é simplesmente sensacional na interpretação do Concerto N° 3 de Rachmaninoff. Custo acreditar que alguém tão jovem consegue imprimir a profunda dor do compositor nessa peça. É preciso de mais do que uma técnica perfeita. Será que ele também sente dor, na pressão de ser o melhor? Ou consegue esse resultado pela sensibilidade natural que o fez tornar-se pianista? Talvez assim como eu vou coletando as dores dos escritores para descrever as minhas ele o faça com as notas daquelas partituras?

Não sei como estarei ao acordar. Vou tomar remédio para dormir e ver quem vence: ele ou o energético. E amanhã, bem, será quarta-feira.

X

todos os vicios me carregam
sou presa fácil do que me satisfaz
se amo, amo tanto que chega dói
se bebo, bebo até cair no banheiro do bar
se compro uma balinha, nem chupo
já vou logo triturando-a entre os dentes
cigarro eu não fumo, mastigo uma tragada
se não for pra comer todo o brigadeiro da panela
nem faço

vivo de excessos
que me vem uma tristeza
eu sempre morro

(Kaio Bruno Dias)

X

MUNDO GRANDE

Não, meu coração não é maior que o mundo.
Ê muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo.
Por isso me grito,
por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.

Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.

(Carlos Drummond de Andrade)

Sem Melancolia Hoje

Nunca vou me furtar a ser influenciado pelo belo que me rodeia. Um dia de sol claro, mas ainda fresco, em meio ao inverno. Por mais que goste dessa estação, admito que amanhecer com um pouco de luz atravessando as cortinas é como uma injeção de ânimo. Me espreguicei lentamente antes de levantar, esfregando os olhos e me acostumando com a claridade. A música ainda tocava, deixei rolando uma playlist do VIXX baixinha. Esqueci o aquecedor ligado. 

Meu bebê anda meio gripadinho, mas acordou melhor do que estava ontem. Brincamos um pouquinho antes que ele dormisse de novo. Parece que o sol lhe deu novo ânimo também, já que amanheceu mais disposto. 

Também as músicas, VIXX não é exatamente melancólico, e agora também não quis ouvir meus tradicionais Mahler ou Tchaikovsky, mas a bela "Ode à Alegria" de Beethoven. Algo mudou nesse dia claro, eu até estou esboçando um sorriso de verdade, enquanto sinto o calor na minha pele. É revigorante, devo dizer.

My Seetheart Jom, o lakorn BL com o Saint Suppapong e o fofo do Poom Nuttapart: eles passando um tempo sozinhos, comemorando o aniversário do mais novo de maneira simples mas tão importante: ao lado de quem se ama, mesmo que seja um amor que eles ainda não tenham assumido. As brincadeiras na chuva, sem os títulos de chefe da aldeia e protegido. Apenas dois amigos, duas pessoas que se amam, sorrindo, se abraçando. Não é sexo, não tem conotação sexual, é a felicidade de estar com aquele que desperta o coração, antes fechado e ocupado. O amor é divertido, é uma brincadeira na chuva... 

E, já dizia a poetisa Veveta Sangalo, maravilhosamente interpretada por Jeff Satur no último fim de semana:

"quando a chuva passar, quando o tempo abrir, abra a janela e veja: eu sou o sol!"

domingo, 6 de julho de 2025

Tendências

“Depois de tudo, no vazio
da manhã inabitável,
ajuda-me a negar
este remorso:
eu só queria uma canção
que não morresse
e a hipótese de um poema
que não fosse
o lugar onde me encontro
uma vez mais,
sem desculpa, sem remédio,
diante de mim mesmo.”

(Rui Pires Cabral)

Duas tendências aparentemente conflituosas habitam meu imaginário. Por um lado, o pessimismo que me é intrínseco ao ser, essa dose de ceticismo com tédio absoluto ao observar o quadro da existência, indo do geral ao particular, me fazendo crer que o universo é hostil, a humanidade é inviável e, além disso, cada maldito detalhe da minha vida vai dar errado. Por outro lado, há uma certa idealização do mesmo ser, que me faz tantas vezes olhar um rapaz bonito e, por ser por ele cumprimentado, já passo a imaginar como seria um futuro inteiro ao lado dele. 

Claro que não é difícil perceber que a frustração da imaginação gera o pessimismo, numa relação de causa e efeito imatura, tosca até. De um lado esse imaginário cor de rosa movido por pulsões ou algo do tipo e, do outro, a consciência da natureza decaída do homem pelo pecado. Então, como resultado dessa tensão, o desesperar-se de si, mais ou menos no sentido que tratava Kierkegaard.

O que me trouxe a pensar isso? Dois canudos numa caipirinha de vinho dividida com um amigo que, na minha cabeça, se tornou um encontro. Uma brevíssima conversa com aquele rapaz de moletom branco, sério demais para dançar com outros da idade dele, que descobri ter metade do corpo tatuado e um sentido autodepreciativo inflamado. Com ambos, sem nenhum controle, minha imaginação disparou. Com o primeiro, fantasiei o encontro, especialmente nas fotos em que, aparecendo parte do outro, postamos. Com o segundo, pensei numa possível amizade crescente fomentada pelos desenhos no corpo. 

Mas eu sei bem da verdade. Para o primeiro foi apenas uma coincidência, para o segundo, o corpo dele é bonito demais para ele olhar alguém como eu, que jamais teria coragem de levantar a roupa e mostrar as tatuagens ali como ele fez. Não como estou agora. 

Daí percebo a fraqueza causada pelo meu pecado. A corrupção da percepção da realidade em detrimento da minha vontade. Mais uma vez concordo com Kierkegaard que esse ciclo aparentemente ininterrupto é como uma doença até a morte. Como Nietzsche, ele buscava sair do niilismo, mas creio que a saída deste, embora um tanto quanto utópica ou estoica, o que acaba por retornar ao niilismo, me parece mais realizável. Só não para mim. 

X

Eu precisava daquele momento ontem à noite. O jovem falou no começo sobre pedir perdão e agradecer, e manter isso em mente, quando fiquei diante do Santíssimo, com o coração ferido por tantas ofensas a Ele proferidas por aqueles que mais deviam zelar pela sua dignidade, como lamentou Jeremias ao tratar de Jerusalém 

"de seus amigos traída, são inimigos agora" 

eu pude pedir perdão, primeiramente pelas vezes que eu mesmo desrespeitei-o, com meus pensamentos, atos e omissões, especialmente servindo tantos anos o santo altar, percebendo hoje que poderia ter sido ainda mais zeloso. Mas também agradecendo porque, depois de tantos ultrajes, Ele continua vindo a nós, vindo a mim, e se colocou ali, naquela sala cheia de jovens, mas eu senti que estava somente Ele e eu, a pedir perdão agarrado ao seu colo, como criança.

Por fim, me recordei daquela música que tantas vezes cantei: 

"Eu estava só, com você Jesus Cristo"

sábado, 5 de julho de 2025

Confiança e Certeza

Quero transformar esse momento numa espécie de ritual. Na verdade, já o era para mim, mas acabei perdendo-o nas areias do tempo. Deitado no tapete, com uma xícara de chã fumegando, penumbra, e um concerto tocando, Rachmaninoff ou Chopin, Brahms ou Mozart, qualquer um que, por aqueles minutos, me ajudassem a relaxar, e não cobrar, e não buscar entendimento. 

Falava isso mais cedo com um conhecido. Ele, sempre muito certeiro em tudo, por vezes acaba entrando em embates desnecessários com os outros por ser direto demais, o que, não raramente, torna sua visão das situações equivocadas, não de todo erradas, mas parciais demais. 

E então me recordei das lições do Prof. Olavo, de que o homem de estudos precisa estar habituado e, mais do que isso, confortável com o estado de dúvida. Porque essa condição é inerente a mente humana: ter dúvidas faz parte do ser humano, e isso o temos desde o primeiro pensamento. Adão, ao querer a certeza dos deuses, caiu em pecado. Tantos reis, imperadores, conquistadores, ao terem a certeza de sua supremacia, caíram. Quando o homem encontra alguma certeza, em verdade, encontra seu fim. A dúvida faz o homem permanecer em busca, continuar a caminhar. 

No âmbito religioso, a dúvida nos leva a fé. A fé não é certeza, no sentido intelectual do termo, mas confiança numa pessoa, no Cristo e nas suas promessas. Eu confio em Cristo, mas não posso saber se vou ou não para o céu, não por culpa d'Ele, mas pelos meus próprios pecados. Por isso eu apenas confio, na misericórdia, e espero o perdão dos meus pecados e os sinais que Ele quiser me oferecer. 

Por exemplo, enquanto fugia, durante essa semana difícil, de todas aquelas situações complicadas envolvendo o Santíssimo Sacramento, e eu no propósito de rezar em reparação, mesmo ciente de meu estado de pecado, acabei indo participar da Missa em honra do Sagrado Coração, e no Oferecimento Diário havia justamente uma prece em reparação, a qual eu nunca tinha prestado a devida atenção. Naquele momento senti a confiança, não a certeza, de que estava fazendo a coisa certa, o que me conduz, com confiança, a voltar ao estado de graça, para que minhas preces em reparação tenham efeito mais profundo na minha própria alma e nos que me cercam. 

Mudando completamente de assunto, agora na minha coleção tenho duas canecas de mesmo modelo, mas de cores diferentes, como canecas de casal. Casal que deita junto no tapete para ouvir música, tomar café e fazer carinho. Penso nisso enquanto ouço, sozinho, o último movimento do Concerto para Piano N° 2 do Rachmaninoff, um de meus favoritos, enquanto tomo um chá chileno de oito ervas. Logo vou dormir. Sozinho.

"A atenção se assemelha ao amor." (Louis Lavelle)

Entre deuses e homens

Preciso ser breve ao registrar isso, pois logo serão três da manhã e eu infelizmente marquei um compromisso e seria chato desmarcar, mas também não posso deixar de falar sobre isso.

Sobre aquele rapaz misterioso que surgiu na minha casa depois da Missa e da procissão do Santíssimo Corpo de Cristo. Ele estava escondido naquela multidão?

Não precisei de mais do que um brevíssimo olhar para notar que tudo nele era perfeito. Guardava em si perfeitas proporções. O formato do rosto, masculino, firme. O cabelo, as mãos, ombros largos e corpo forte, e outras partes que notei, mas que não seria de bom-tom comentar, já que as notei porque ele usava um moletom fino.

Ele voltou outras vezes, e eu sempre o olhava com uma cara de quem era indigno de sequer olhar tal beleza. Por isso sempre desviava logo o olhar, de certo nunca o encarei por mais de cinco segundos. Mesmo ele voltando de novo e de novo, e sendo simpático ao brincar com o bebê, eu nem mesmo me atrevi a perguntar seu nome.

Continua sendo apenas um rapaz misterioso. Um boto cor-de-rosa, um deus disfarçado de homem em visita aos mortais. 

Não digo isso como quem está apaixonado. Não me atreveria a isso nem se ele fosse solteiro, nem em meus maiores devaneios. Não. Ele namora uma bela moça, preciso reconhecer, e por isso ela deve tê-lo conquistado. Mas, quando olho para ele e, depois, para mim, não consigo sequer cogitar o fato de sermos da mesma espécie. Será que ele não é um homem, e sim de fato um deus ou um anjo, ou eu é que não sou um homem, mas um monstro? O que é essa linha invisível e, ao mesmo tempo, tão clara que nos separa?

Na verdade, não só dele, mas de todos os outros. Sinto isso até mesmo ao ver o meu reflexo confuso numa porta. Eu encaro os meus colegas trocando de roupa sem preocupação, com seus tanquinhos, corpos perfeitos, as meninas do outro lado, mas todas elas já devem tê-los vistos de modo íntimo ou, se ainda não viram, vão fazê-lo logo em breve. E eu, no meio do caminho, não estou com elas. Não verei nenhum deles na minha cama. Longe deles, não tiro a roupa e nem me atrevo a olhar, seria como olhar diretamente a luz brilhantíssima do sol, ficaria cego ou cairia por voar daquelas alturas.

Por isso já não voo mais. Nem mesmo olho para o céu. 

Não quero mais ser como uma cobra que rasteja pelo chão invejando a água que voa no alto céu, sabendo que nunca poderá ser como ela. Minha relação com essa perfeição, ou com essa beleza que transcende e muito a minha, ela é ambígua. Envolve desejo, é verdade, mas também envolve inveja, e tristeza, e um gosto amargo na boca. 

É o rapaz misterioso, deus desconhecido de beleza descomunal, e até homens que me rodeiam, cuja beleza me afetam. Não vou aqui cair na mentira de que "cada um deve aceitar seu corpo e que se você está contente com ele assim, que seja." Bem, é verdade, que seja, mas isso não transforma um corpo feio como o meu. Mudar a forma como se chama algo não muda a essência dessa coisa. Continuo sendo criatura disforme, sem nome, caminhando entre deuses e homens, talvez monstro mesmo. Nada mais complicado e simples que isso.

No entanto, como não há nada que eu possa fazer, senão apenas paliativos cansativos demais, eu posso apenas me lamentar, numa esperança demente de que essa vida termine logo. Enquanto isso tomo um café, recordando as palavras:

"Não condenes ninguém a morte antes de tomares o teu café." (Leonard Cohen)

quinta-feira, 3 de julho de 2025

Lembranças de Schopenhauer

Como manter um centro de atenção, a mente presente, quando tudo ao redor induz a uma loucura generalizada? Tento me proteger de todos os modos possíveis, com uma melodia interior, mãos dispostas, um meio sorriso, na intenção de não me deixar levar pela onda, avassaladora, daqueles que se entregaram, muitas vezes sem nem mesmo perceber, ao caos. 

Os problemas, diminutos e, muitas vezes, ridículos, quando somados, acabam se tornando esses entraves que requerem paciência e sabedoria, também estas não raramente indisponíveis na mesma proporção em que são demandadas. 

Bem, continuo aqui, mas tentando, tentando. Vendo tudo e todos funcionarem pela contínua aglutinação de problemas que se tornam problemas enormes. Enquanto isso, tento me concentrar na minha melodia interior. Não na gritaria das crianças, das coisas espalhadas na mesma (que não é culpa das crianças porque elas não alcançam a mesa), no barulho insuportável da TV no quarto ao lado com aqueles programas de auditório de qualidade duvidosa. Não nos idiotas que gostam de criar shows com o Santíssimo Sacramento, enchendo no coração dos pobres fiéis à ideia de que a presença de Cristo se mede pela sensação dada num ambiente artificialmente controlado. Qualquer um, inclusive eu, me emociono com uma música tocada em tonalidade menor, com vocais em contraponto repetindo a mesma mensagem em alto volume, meia luz, cenário e atuações sentimentais. Induzindo ao erro bobo, e protestante. 

Me lembro, e claro que ninguém nem sequer ouviu falar disso, de São João da Cruz explicando os perigos que de apegar a essas consolações, as lágrimas, a tudo isso que torna nosso coração mais terno por um tempo. Como o nome diz, é uma graça concedida para abrandar as almas exaltadas para que elas se preparem melhor para a aridez que se segue, e que essa, sim, eleva e aproxima a alma de Deus. Mas não posso escrever aqui um tratado de teologia ascética quando há tantos excelentes por aí. E este é o grande problema: eles estão disponíveis, mas os fiéis nãos os querem, porque eles falam da aridez, do vazio, das tentações, e elas querem apenas a promessa da cura, da queda das muralhas. É a teologia da prosperidade impregnada no Santíssimo Sacramento, que sofre como personagem secundário nesse teatro horrendo.

Essa é apenas mais uma das coisas que tento não prestar atenção. 

Também tento não pensar no coração. Nos amores que nunca foram e nos que não devem ser. Nos amores que eu não que minha dependência emocional criem. Porque é sempre assim, a proximidade produz o desejo em mim e, no outro, a repulsa, ao mesmo tempo, e proporção. 

Juro que pretendia dar a esse uma forma melhor. Mas a impressora estragou, o home theater desconfigurou, uma entrega chegou, a criança chorou, a outra gritou, as panelas caíram, as pessoas ralharam e eu, bem. . . Eu me esqueci da forma. O frio me deixou inspirado. A reprise de Be Loved In House: I Do, também. Mas acabei perdendo no meio desses brinquedos jogados no chão, entre biscoitos quebrados e controles remotos perdidos. Perdidos como eu que, fui ao quarto, tomei os remédios e sentei aqui para escrever, sem forma e sem contorno, enquanto ouvia Chopin e Mahler. 

E assim adormeci, longas e deleitosas horas. Nesses dias de inverno, dormir é como ser abraçado por anjos fofinhos. Ou talvez seja porque eu misturei vinho com os remédios. Acho que vou fazer isso de novo hoje. Pelo menos consegui assistir um pouco. Achei que ficaria mais feliz com os muitos livros que comprei, acho que pouco mais da metade já chegou, e eu sei que vou ler porque tem coisa muito boa ali, mas, ao mesmo tempo, sabendo que foi um exagero, de certo ponto de vista, esperava que ficasse mais feliz ao ver minha biblioteca crescer. Schopenhauer quase batendo à minha porta...

terça-feira, 1 de julho de 2025

Revolta Ansiosa

Estava ansioso para escrever, mas não sei bem ao certo sobre o assunto. Talvez seja um efeito da mistura de energético, café e chá-preto que fiz para ficar acordado a noite toda assistindo série e por ficar ansioso, a resposta do meu corpo foi de despejar aqui, porque geralmente consigo identificar o que me desencadeia um episódio ansioso, mas agora, sendo sincero, só consigo pensar na tristeza que será o Cerco de Jericó na minha paróquia, uma espécie de invencionice protestante com o Santíssimo Sacramento no meio de uma algazarra histérica, sentimentalista ao extremo, recheada de pregações bobas, para não dizer heréticas, e momentos nada menos do que sacrílegos.

Não que eu queira dar razão a eles, mas em momentos assim consigo entender a fúria de movimentos como FSSPX e tutti quanti. Realmente é algo insuportável para quem conhece a ama, ver o que se tornou a Igreja de Cristo.

Bem, mas já desabafei sobre isso no meu último texto, e é bem certo que isso, permanecendo no meu peito, deve me levar a uma confissão e comunhão reparadoras. Não porque me considere digno, já que bem sei dos meus pecados, muitos dos quais escrevi aqui, mas porque minha consciência assim me exige, e não permite que eu permaneça apenas vendo esse espetáculo de ultrajes ao Senhor na Eucaristia. 

Acho que quero dormir, bem, depois de uma noite de notívago, é o mínimo que posso fazer. Queria que cancelassem a reunião mais tarde, prefiro passar o fim de semana enfiado no quarto escuro, debaixo das cobertas. Mas fui eu mesmo que marquei, então talvez ir seja o mínimo que possa fazer. Infelizmente é difícil explicar para as pessoas que meu humor mudou e eu simplesmente não quero ver ninguém.

E isso por causa daquelas pessoas, tristes almas, que já não enxergam o milagre, fecharam seus olhos para o belo e se renderam a cultura do novo. Todos os dias precisam inovar, inovar, inovar. E não é como se eu defendesse uma liturgia absolutamente estática, mas é que as invenções são sempre bobas, com único fundamento num sentimentalismo imediato, como se refletem nas músicas, uma letra de quatro linhas e repetições com sobreposição de vozes por sete minutos. Tristes almas. Como perdemos tudo que nos indicava o sagrado? O canto gregoriano, a arquitetura sacra, os ofícios, os paramentos. Primeiro veio a simplificação que tirou tudo de belo da Missa, depois, quando se deram conta do vazio que ficou, começaram a inventar uma porção de coisas para suprir esse vazio.

Vazio esse que se reflete também na alma do próprio homem. Sinto isso em cada reunião, cada vez que as pessoas clamam por novidade, mas o fazem sem conhecer o antigo, jogam fora séculos de história e agem como se estivessem entediadas de um passado que desconhecem. É uma tendência, a princípio, do jovem, mas muitos adultos a encarnaram, e como é feio, como é tosco, um adulto que age como jovem quando o único propósito do jovem é justamente amadurecer. 

Onde eu queria parar? Não sei. Choveu um pouco durante a noite, lá pelo sexto ou sétimo episódio, mas eu não vi por conta das cortinas fechadas. O frio diminuiu um pouco, mas espero não ver o sol tão cedo, gosto de dias assim, embora quisesse estar mais desperto, disposto.

Mas então, no pouco tempo que me atrevo a sair do quarto eu vejo a bagunça da casa, e é como se a mente de todo mundo estivesse num completo caos, e talvez esteja mesmo, e isso se reflete no caos quer vejo o tempo todo. E todos parecem ter se acostumado com isso.

Meu pai trabalhou a vida inteira com o objetivo de comprar uma casa e ter a estabilidade de comprar comida sem precisar se regrar. Será que ele olha para trás e vê um fracasso nessa bagunça em que estamos? E minha mãe que passa os dias arrumando uma casa, limpando, lavando coisas que estão sempre desarrumadas e sujas?

Começo a sentir um pouco de fome, e lembro que não jantei. Agora prefiro esperar que acordem para não fazer barulho demais logo cedo. Não que tenham essa consideração por mim, mas continuo sendo uma criatura de hábitos. A defesa civil acaba de emitir mais um alerta de vendaval, além das ondas de frio. Já me acostumei com esses alertas desde que vim morar perto do litoral. Queria um alerta que apitasse sempre que pudesse acabar me apaixonando, ou que me dissesse para falar 'não' a uma situação constrangedora. Bem, não há muito que se possa fazer. Vai continuar frio e chovendo, e os ventos fortes continuarão causando estragos, e eu continuarei me apaixonado pelas pessoas erradas. Droga, eu realmente queria cancelar aquela reunião. Se acaso encontrar algum sentido nessas palavras, me escreva explicando. Mas se me encontrar quiseres, não busque aqui ou ali, mas mim, buscar-me-á em…  

Em algum lugar da imensidão de informações soltas da internet eu encontrei o que vinha tentando dizer, pelas palavras de uma psiquiatra que passa o mesmo que eu, com a diferença de estar estabilizada. É aquela euforia disfarçada de um dia alegre, de uma conversa animada, de um contentamento por um dinheiro que caiu na conta. Mas as consequências chegam antes de acabar o dia: as palavras causam arrependimento, a animação se transmuta em descontrole financeiro e quando vejo eu gastei mil, dois mil, três mil em livros, sopas dietéticas, suplementos, sabonetes e sei lá quantas outras bugigangas. 

Depois, a culpa, o peso, a insônia. Não iguais as da depressão, ainda vem acompanhada de um frenesi desgovernado. De repente a noite se torna como uma corrida silenciosa. Tudo ao meu redor se cala, estão todos dormindo, enquanto o mundo gira num vendaval na minha cabeça. Já falei disso várias vezes, mas é assim. Mas tem que ser assim? Porque eu nem mesmo vi acontecer, ou melhor, via, mas, ao mesmo tempo, não tinha nenhum controle do que fazia. Realmente como se estivesse em um carro desgovernado: não conseguia frear ou mudar a rota, apenas assistir a decida duma vez só, e o que era uma ladeira tornou-se um abismo, aquele de que também sempre falo: o abismo que cavei com meus próprios pés.

Por isso, quando me perguntam "como vai?" eu sempre sorrio de um jeito falso, digo "tudo bem" ou evito mesmo responder a verdade, e dizer, como bem me mostrou uma querida amiga, que "estou cada vez me suicidando mais", ou algo do tipo.