terça-feira, 17 de junho de 2025

Portas em Luto


De luto estão as estradas
que rumam para Sião,
a suas festas, quem vem?…
Suas portas, que solidão!
Seus sacerdotes, suas jovens,
toda a cidade, aflição!

(Lamentos de Jeremias)

Desculpe por ficar emotivo e irracional demais em dias como esses. Droga. Me sinto um daqueles caras num relacionamento abusivo que pede perdão repetidas vezes pelos mesmos erros hediondos. Meu laudo de Bipolar não ajuda em nada, antes disso, testemunha contra mim. Em se tratando de você, e de estar longe de você, é difícil controlar o que sinto. Acho que meus sentimentos por você foram os últimos que restaram.

Desculpe. Desculpe. Desculpe por ser tão patético, e continuar agarrado aos seus pés.

Tinha terapia hoje, mas não vou. A quantidade de barulho hoje de manhã foi tão insuportável que decidi não sair da cama. Tomei uma dose extra de tarja preta e vou apenas escrever um pouco antes de sentir os primeiros efeitos. 

Admito que estou chateado. Mas não sua culpa, nem minha. As circunstâncias da vida tem dessas coisas... E não há muito que possamos fazer. 

Eu só queria alguém ao meu lado enquanto enfrentava feras maiores e muito mais fortes que eu querendo me devorar. 
E alguém ao meu lado quando tremia de medo. 
E alguém ao meu lado quando eu me deitei cansado, chorando aliviado. 
E alguém ao meu lado agora, na expectativa da libertação. 
Alguém ao meu lado.
Você ao meu lado.

Mas todos estavam ocupados. Sorrindo, bebendo, sendo amigos, enfim, vivendo.

X

O cara que disse “O homem comum vive uma vida de silencioso desespero” tinha um pouco de razão. Mas o trabalho também acalma os homens, dá a eles alguma coisa para fazer. E impede a maioria deles de pensar. 

Homens – e mulheres – não gostam de pensar. Para eles o trabalho é uma dádiva. Dizem a eles o que fazer e como fazer e quando fazer. 

Noventa e oito por cento dos americanos acima de 21 anos estão trabalhando, mortos-vivos. Meu corpo e minha mente me disseram que dentro de três meses eu seria um deles. Eu me opus.

(Charles Bukowski)

segunda-feira, 16 de junho de 2025

Sobre o que pouco se fala

"Domingo. Dormi, acordei. Dormi, acordei. Vida miserável." (Franz Kafka)

Pouco se fala sobre algumas das verdades mais inconvenientes desse estado. Talvez porque quem se encontra nele dificilmente consegue expressar, ou porque simplesmente não querem ver ou saber dessas coisas.

Poucos falam de como os lençóis ficam fedendo depois de alguns dias, mesmo os mais frios, em que não conseguimos nos levantar e que, mesmo que incomode ficar ali, como porcos no chiqueiro, não há nada que podemos fazer. É como se a depressão saísse pelos poros, como cheiro de carne podre. Poucos falam das feridas na cabeça pelos dias que não conseguimos tomar banho, ou de como a pele perde a vitalidade, parecendo que envelhecemos anos em poucos dias. Embora muitos percebam os olhos fundos, pouco se fala do terror que é cada noite, longas e solitárias, onde queríamos apenas alguém para abraçar e de como, ao mesmo tempo, elas são reconfortantes, porque não há ninguém a dizer "sai dessa, força!" Pouco se fala de como é quase impossível levantar cedo para receber ordens de uma velha burra, como se a vida fosse isso. 

Mas como já perdemos a definição de vida, em meio aos lençóis suados, noites insones e dias de deserto, seguimos vivendo, se é que podemos chamar de vida. Seguimos, simplesmente, como aqueles espíritos rumo ao mundo dos mortos, sem propósito, vazios, sem contorno, apenas sombras flutuantes, quase sem forma.

X

Começou a chover e, mesmo já há alguns anos aqui numa das cidades que mais chovem no país, ainda me encanto em olhar pela grande porta de madeira da sala e ver os pingos de chuva refletirem a luz dourada da rua. É uma bela visão que eu gostaria de compartilhar. 

Devo admitir, a distância já era ruim quando era apenas geográfica, mas ficar sem falar com você também agora se tornou ainda pior. Queria poder sentir sua presença, já que não posso sentir o toque dos meus dedos em sua pele, ou ouvir sua risada...

A chuva para e recomeça, de tempos em tempos, e eu me encanto ao vê-la brilhar refletindo a luz dourada da rua. Queria que você visse isso comigo. Acho que vou fazer um café, forte, e ficar aqui, olhando para a rua, e o céu coberto de manto negro, enquanto todos dormem.

"Despertei, mas como não havia ninguém na minha cama para me dizer que agia errado, dormi mais um pouco." (Charles Bukowski)

sexta-feira, 13 de junho de 2025

Na Prateleira


Vi duas canecas na prateleira daquela loja,
em tons de cinza e azul-escuro
ambas em fosca cerâmica

Pensei naquelas possibilidades
acordando de manhã
a luz do sol depois de uma noite de felicidades

Aquela conversa normal
de toda manhã
como passou a noite?

Essa conversa é nosso ritual
sabemos como foi a noite
abraçados de forma carinhosa e habitual

Mas são apenas e tão somente isso
como se eu estivesse sob efeito
de algum misterioso feitiço

Esses pensamentos, ou sonhos, 
devaneios enquanto olhava uma caneca
de pé naquela loja, com o rosto num pequeno riso

Eu lembrei da distância
dos quilômetros e 
de toda minha insignificância

Dei uma última olhada para as duas canecas
na prateleira daquela loja
em azul-escuro e cinza de fosca cerâmica

Fui-me embora
enquanto uma das canecas ficou
a outra apertei com um aperto no coração.

Acho que esses versos ficariam melhor em prosa. E a minha vida também.

quinta-feira, 12 de junho de 2025

Carcaça

Fecho os olhos em busca de uma resposta, mas só consigo ouvir alguns ruídos vindos lá de fora e minha respiração pesada, ofegante. Hoje é o dia cor de rosa, e muitos estão felizes, e esse ano eu não tenho aquela postura movida pela inveja puramente humana de achar esse dia um grande saco, não. 

Tomado eu, pois, de singular descrença no amor, apenas observo ao meu redor que fui privado dessa faculdade humana. Assim como não sei pilotar aviões ou consertar rádios analógicos. Tampouco é uma atitude condescendente e conformista, mas talvez seja tanto estoica quanto niilista ao ver que, bem, as coisas são assim, e não há como mudar. 

Não preciso aceitar passivamente, mas também não há revolta da carne ou do espírito, que possa, em exortação, me fazer traçar o caminho do meio, como que regando jardins de pedra, sem parar a caminhada rumo a sei lá o quê. 

O que eu sei é que agora estou a vagar, como um fantasma, natureza morta. Caminho entre túmulos que andam ao meu lado, mas não creio que estejam vivos, e há muito deixei de sequer tentar sobreviver. Mas, no entanto, nas noites frias, eu ainda espero, como aquela última fagulha de uma grande fogueira que se apagou, mas continua lutando para novamente se levantar em grandes labaredas, abrigo nos corações. 

Mas ninguém vê tamanha desgraça. 

Caminhando sozinho entre multidões, de tolos, enamorados, ambiciosos. 
Pensar nesses últimos me faz subir uma ânsia análoga à ânsia de um cardíaco.

Ninguém sequer nota essa de carne podre e cheia de ossos, carcaça. 

quarta-feira, 11 de junho de 2025

Desde Quando


Eu odeio ser produtivo por um dia 
e completamente inútil no resto deles. 
Realmente odeio. 
Fiz mais hoje do que em várias semanas, 
mas não quero sequer sair do meu quarto agora, 
e estou pensando em mil desculpas 
para não ver 
e nem falar 
com ninguém amanhã. 

Dia dos Namorados, 
todos felizes, 
mãos dadas, 
músicas românticas, 
fotos em restaurantes, 
cartas de amor ridículas,
sorrisos felizes.

E eu esqueci de tomar 
meu estabilizador de humor, 
de novo. 

Enchi a cara de energéticos 
e agora quero dormir. 

E sonhar com aqueles longínquos
trigais dinamarqueses.
Sentado na varanda com um livro
ao colo e uma caneca de café ao lado
sozinho ouvindo o sino da igreja.

Desde quando eu me importo
com a métrica ausente
se ausente também o conteúdo 
e o contorno?

Desde quando o amor
doce e tranquilo
transformou o peito dos homens
num buraco indeciso?

Desde quando esse enigma
decifrado quando a luz da lua
beija o corpo dos amados
deixou nesses mesmos corpos um estigma?

Desde quando aquele amor que eu sentia
passou a ser uma constante ansiedade
uma eterna busca por saciedade
de uma fome que eu nem sabia que existia?

Desde quando um único dia, 
pode tornar-se dolorido
incômodo, 
penoso, 
tenebroso

Ao olhar para o lado esticar o braço
e sentir nada mais 
que a frialdade do ar a cortar a carne 
como corta o aço?

Desde quando me importo 
com o tempo vindouro
com as humilhações
buscando no amor algum tesouro

que possa fazer-me esquecer
depois das tórridas oito horas
de torturas lancinantes
chegar a receber em abraços algum prazer?

segunda-feira, 9 de junho de 2025

Após Três Dias

Parece que a previsão mais cedo no jornal estava certa, choveria durante a tarde. Pelo tom ameaçador das nuvens, eu arrisco dizer que vai chover bastante. Ótimo, espero que meu sono seja bom acompanhado pelo barulho da chuva. 

Dormi ontem o dia todo, mas consegui ainda um pouco de energia para ir à Missa da noite, ouvir e cantar com alegria a sequência:

"Dai à Vossa igreja, que espera e deseja, Vossos sete dons. Dai em prêmio ao forte uma santa morte, alegria eterna. Amém!"

Gosto desses detalhes da liturgia, como um hino em louvor ao Espírito que conduz a Igreja de Deus, que nos envia do céu um raio de luz. Que nos guia na solidão do pecado e da morte. Que no dá como prêmio a vida eterna. É uma beleza que faz com que as outras belezas desse mundo não se possam comparar, pelo contrário, se unem a ela, pois é da beleza eterna e imutável que nasce a beleza que nos cerca. 

No sábado eu fui a uma festa, e embora fizesse parte da organização, de algum modo, fui a contragosto, mas acabei me animando, especialmente depois de ficar mais à vontade perto de algumas pessoas, de sorrir com amigos, conversar sobre S. Tomás e Tchaikovsky, sobre amores não correspondidos, e tantas outras coisas. Admito que me senti quase vivo, como que ressuscitado após três dias.

Mas também observei muito os outros que conversavam, via para onde iam seus olhares, o que observavam, o que os fazia se animar. Vários rapazes bonitos, meninas de beleza mediana e personalidade insossa, mas ainda assim, algo nela, e nem preciso dizer que é o cheiro e aquilo que elas têm no meio das pernas (sic!) fazem com que todos olhem para elas. E assim decorreu a noite, um pouco de álcool para tornar a convivência com o outro um pouco mais suportável e vários olhares, alegres, excitados, passando a todo momento, mas nenhum deles se virou para mim. Nenhum sorriso sequer. 

Naquele ínterim eu me vi então como um jovem, desejado do desejo alheio. Algo bobo, infantil, buscando nesse desejo aprovação e, na aprovação, um sentido. Ainda não dominei isso em mim. Ainda não sou um homem, apenas moleque com palavras de erudição filosófica que, sem isso, tornam-se palha.

"Dominei duas ou três coisas em mim. Mas como estou longe dessa superioridade de que tanto necessito." (Albert Camus)

quinta-feira, 5 de junho de 2025

Caminhada

Caminhei por algumas ruas que ainda não conhecia ou, pelo menos, não me recordava. Consegui diminuir um pouco da fúria que sentia e que me fazia tremer. Usei muitos dos recursos que aprendi nos últimos meses: respiração, prestar atenção plena no presente, isto é, no som da água negra se movendo lentamente, as gaivotas já preguiçosas e uma ou outra criança feliz por estar ali com os avós, enquanto eu estava sentado no concreto espinhoso do trapiche, braços apoiados no metal frio. Não havia brisa, mas, mesmo assim, meus pensamentos foram aos poucos levados.

Também tentei, de algum modo, analisar a situação sabiamente. Não se trata de algo que eu possa resolver. Aqueles que podem não querem. A minha parte eu fiz e continuo fazendo. Então essa é a realidade. O concreto embaixo de mim é real, o metal frio é real. Ainda que a situação também o seja, eu não posso mudá-la.

Num pequeno parque, já bem próximo da minha casa, eu caminhei sentindo a grama molhada pelo orvalho. Não choveu hoje, mas a umidade próxima do mar sempre deixa as folhas das plantas assim. Também fiquei ali, sem me concentrar em nada, além de duas pessoas brincando com um pequeno cachorro perto dali. Francamente, queria poder caminhar assim a noite toda. Não estava particularmente agradável, mas ainda era melhor do que voltar para casa. 

Aqui eu tento não ser dominado pelos pensamentos que me fazer querer jogar aquele monstro pela escada. Essa criatura tão espúria que eu me recuso a sequer chamá-la de gente. Quem dirá irmã. Gostaria de poder sair e não tornar a ver seu rosto senão tomado pela palidez da morte num caixão. 

Tinha um compromisso, mas minha cabeça não me permitia ficar lá, daí decidir andar um pouco. Me enfureci comigo mesmo ao saber que, naquele momento, não tinha sequer uma pessoa para quem pudesse ligar. 

Ninguém. 

Nem mesmo uma sequer.

Todos distantes, ocupados, incapazes de compreender.

Aquela que diz me amar passou os últimos dias inteiros se preocupando com aquele demônio. Amigos? Namorado? Um luxo distante para um homem como eu. Talvez devesse ter me sentado em algum ponto do caminho e contado o que sentia para as árvores do mangue.

Também tentei me isolar um pouco, infelizmente o hábito de sempre tornar a abrir as notificações precisa ser controlado. Me irritei ao ler algumas palavras. O que é isso? Um casal, em demonstração de felicidade por terem um ao outro. Um casal gay. Aberrações, foi o que devem ter pensado ao vê-los. Deveriam preferir morrer a se amarem assim, não é mesmo? Deveriam preferir morrer a amar como eu amo. 

Como uma aberração.

A fúria me enfraqueceu, meu sangue mais uma vez se transformou em veneno, pesado. Em algum lugar li que Viktor Frankl disse que "o homem se realiza a medida que se afasta de si mesmo." Não sei se era esse o sentido que ele quis dar, mas, admito, hoje me sentiria realizado se pudesse ser outro, ou nada. Mas o que posso fazer é apenas arrastar os pés sangrentos, e desejar que aquele anjo de pureza não sofra tanto naquelas mãos que sequer deveriam entre homens. E as quais me recuso chamar de irmã.

Começou a chover fraquinho lá fora, gosto desse som, talvez ele me faça companhia nesta que eu queria que fosse a derradeira noite.

~

Ao Acaso

Se na tua forma de reparares o mundo se der o acaso
de tropeçares na sombra do meu silêncio
lembra-te que foi sempre ali que esperei por ti.

(Carla Pais)

quarta-feira, 4 de junho de 2025

Doença de Amor

Depois de um dia todo rodeado de crianças, e sua aparente inesgotável energia, a minha se esgotou. Preciso ficar umas boas horas na cama, no escuro e em silêncio. Talvez mais tarde levante para assistir alguma coisa, aproveitando os últimos dias antes de voltar para aquele inferno, lembrando vagamente do que disse certa vez Nietzsche de que quem não tem pelo menos dois terços de seu dia para si, não importa quem seja, é um escravo.

Também venho tentando conter outra coisa que me escraviza: meus sentimentos desordenados. Minha carência, minha dependência emocional, quase me fazem mandar mensagens humilhantes, me fazendo mais uma vez buscar abrigos em portas já fechadas. É mais uma coisa que me faz voltar ao silêncio e à solidão do meu quarto escuro. 

Disse, não faz muito tempo, que a saudade é uma doença cruel. E é verdade. Principalmente quando parece que... Não, é melhor nem dizer, não mais vez. Quantas vezes eu já me lamentei por não ser amado? Deve haver um limite do ridículo do quanto um homem pode se lamentar não é? Eu sei que sou um homem ridículo, mas até para isso deve ter um limite também. 

Me sento na cama e olho pela janela, voltou a chover. Da sala, escuto comentários esportivos. Nunca entendi, em trinta anos de vida, essa fascinação por esportes. Mas imagino que também poucos entendam meu fascínio por atores tailandeses. Vou comer algo e deitar de novo, queria que a casa estivesse vazia. Penso em quantos dias ficaria deitado sem me levantar se estivesse sozinho. Parece um claro céu e, ao mesmo tempo, um turvo inferno. 

Não sei se ouvi isso realmente ou se é fruto da minha imaginação num devaneio espiritual, mas refletir sobre o mês do Sagrado Coração fez brotar no meu coração uma prece: que o Jesus possa curar o meu jeito de amar. 

Não, não me refiro a minha sexualidade. Me refiro ao modo como eu amo até a dor, como é sempre visceral, como meu amor nunca é tranquilo, nunca é um jardim florido num caloroso dia de primavera, mas é sempre uma tempestade, é sempre demais, sempre me sufoca, e sinto que não deve ser assim. 

Não queria me medir pelos outros, mas sempre que vejo duas pessoas juntas, as vejo felizes, claro que há brigas e términos, mas quando parece real, flui naturalmente. Mas comigo, é sempre uma longa caminhada até o calvário. Meu amor parece doente, respira por aparelhos, clama pela ortotanásia. 

"(...) Por vezes um momento de silêncio é o que existe de mais arrebatador." (Virginia Woolf)

segunda-feira, 2 de junho de 2025

Duas Canecas e Um Dia Vazio

Ao acordar eu coloquei duas canecas ao meu lado, na minha tinha chococino de avelã, a outra estava vazia. Mas eu sei que você iria preferir café preto, torrado, puro, sem açúcar, amargo e forte. Mas estava vazia. Tomei o meu observando a chuva cair lá fora, de um jeito preguiçoso, formando como que um véu de umidade em gotículas cinzas, sem sinais de que vai passar tão cedo.

Hoje é um dia que não existirá. Poderia até ser retirado das folhinhas de calendário das casas de todos, ou simplesmente saltar um número nas agendas online. Não importa. Talvez o dia exista, mas eu não vou existir. 

Serei apenas uma parte de uma paisagem escondida, um jardim secreto repleto de folhas secas. Serei apenas o final confuso de um romance absurdamente longo que ninguém nunca se dispôs a ler. E da prateleira de alguém que não sabe como ele foi parar lá, apenas existe, sem propósito. 

Assim serei eu hoje. 

Digo isso em verdade como espécie de marcação, afinal, já ha muito meus dias não existem. Ou sou eu que não existo mais. Passarei o dia na cama, no escuro, música baixa, ignorando tudo e todos, incluindo e principalmente, eu mesmo. Pelo menos faz frio, um frio como o das lâminas que cortam a carne de uma natureza morta. Ninguém verá a desgraça desse caixão que abriga apenas um fantasma e uma desfigurada carcaça.

Estou convencido de que a saudade é uma doença mais cruel que as do corpo. Mas também é do corpo. Dói a carne quando o coração já não quer doer sozinho. Mesmo que o amado esteja em espírito comigo, o abraço que queria, 

o beijo que queria, era o do corpo próximo.

Não sexual, ainda não, só queria sentir de novo sua pele, suas mãos, suas lágrimas. 

Quente, feliz, próximo, puro, belo, verdadeiro. 

Como o amor dos tempos de juventude. Mas acho que estou velho demais para isso. E gordo demais. Deprimido demais. E você distante demais, além de não compartilhar os mesmos sentimentos.

Terminando de vou dormir. É o único jeito de terminar o dia que eu preferia que nem tivesse começado.

sábado, 31 de maio de 2025

Vox Patris

O sol brilha forte, mas a temperatura continua baixa. O bebê sorri com toda sua fofura, e eu me derreto todo, é claro. Encontrei uma playlist de um cantor japonês que não conheço com uma excelente seleção de músicas indie. Comprei uma caneca fofa ontem. É isso, algumas alegrias pequenas, porém ainda são alegrias não é?

O grande Vox Patris se aproxima de sua casa, muitas cidades se encantam com o colossal tamanho do maior sino a ser colocado no Santuário Basílica do Divino Pai Eterno em Trindade - GO. Gosto da iniciativa para lá de ousada de colocar um sino gigante no centro de uma cidade. Num Brasil que adora perder as tradições e inventar modas toscas, a retomada dessa beleza é algo realmente notável. Independente de todas as contradições financeiras e legais, eu ainda apoiaria a causa. Vox Patrix soará retumbante anunciando as horas canônicas e a presença do Cristo na Eucaristia, e o povo de Deus, nação santa que caminha nas estradas do mundo rumo ao céu, ouvirão e entoarão louvores ao Senhor.  

O sino é sinal de convocação. Sempre chamou os fiéis para as celebrações ou outras reuniões públicas, anunciava falecimentos, vitórias, a chegada de visitantes ilustres e, claro, a alegria do Natal e da Páscoa, centro e ápice da fé cristã de onde viam todos os seus simbolismos. E então eu rogo a Deus, que esse sino a ser abençoado por gestos tão belos e simbólicos, ele é lavado ou aspergido, ungido várias vezes, recebe um nome, possa ser um sinal de convocação a cristandade para um retorno, retorno para o seio da Santa Mãe Igreja, obediente ao ensinamento de séculos, sem os achismos de nossa fraca natureza pecadora, mas fortalecidos pelo Espírito que sopra em nós a Verdade que é o próprio Cristo, e que os sinos convocam a ouvir com solicitude e firmeza. 

Assim como as águas do Batismo nos matam para o pecado e ressuscitam para uma vida nova, que seu som nos recorde essa realidade de tamanha gravidade e nos ajude a ter a firmeza, e a beleza, de seu som: que nosso, sim, seja firme e alegre. 

Assim como crismados recebemos a Confirmação do Batismo e o Espírito Santo nos desce de modo a nos tornar defensores da fé, que suas badaladas possam ser uma recordação da força de espírito que precisamos para enfrentar tantos inimigos, incluindo dentro da própria Igreja, que deram ouvidos ao inimigo, "pois não é contra homens de carne e sangue que temos de lutar, mas contra os principados e potestades, contra os príncipes deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais dos males espalhadas pelos ares." (Ef 6, 12).

Também assim como na hora da dor e da aflição recebemos da Santa Mãe Igreja o remédio salutar do corpo, mas principalmente da alma na Unção dos Enfermos, que o som da Voz do Pai nos dê força nessa, que a saúde, não apenas do corpo, se difunda sobre a terra.

Não é um símbolo de ostentação, é a reafirmação da maior coisa já criada: a Igreja prefigurada por Deus desde toda a Eternidade para salvação dos homens. Assim como vimos nas últimas semanas, com os sinos tocando fúnebres, o falecimento do Papa Francisco, mas dias depois cantando alegres a eleição de Leão XIV. Naqueles dias, o mundo todo se voltou para uma pequena chaminé, esperou ansioso por uma fumaça branca e o anúncio de um nome desconhecido por todos que, a partir daquele instante, se tornava pontífice entre o céu e a terra. Por isso toda grandiosidade em nome da Igreja ainda é pouca, pois querida por Cristo desde toda a eternidade e, sendo seu corpo visível, deve refletir ao máximo a glória divina para conquistar o coração duro de nós homens para que um dia a alcancemos lá no céu.

 "A Ele toda honra, glória e louvor pelos séculos dos séculos, amém!" 

sexta-feira, 30 de maio de 2025

Deserto Polar

Talvez tenha sido um dia cheio de informação demais. Crianças demais, lojas demais, conversas demais, TV num volume alto demais, sentimentos intensos demais. Em alguns momentos senti como se fosse atingido por flechas envenenadas: doeram na hora e fizeram com que continuasse doendo depois de um tempo. 

O veneno que elas continham eram sentimentos.

Sentimentos de abandono. Daqueles fins que vieram, ou foram, sem nunca dizer adeus. O pior tipo de fim, aquele que não encerramos porque ainda resta alguma esperança, ou algo assim. Esperança, volta e meia ela reaparece como um problema. 

Amigos em quem confiava, que eu amava, e que se afastaram sem explicação. Amores que, não correspondendo, se afastaram como se olhassem alguém com uma doença contagiosa. Quantas vezes vi indiferença e nojo no olhar daqueles que amei? 

A tudo isso culpo a esperança.

Esperança de que as amizades durariam para sempre. E agora se faço uma lista de grandes amigos, que eu mais via há dez anos, quantos eu já nem encontro mais? Esperança que me fez crer que se me dedicasse, que se entregasse carinho, atenção, eu seria correspondido no amor. 

Ela faz com que a gente tenha dificuldade em enxergar a realidade como ela é. Faz-nos romantizar tudo, enxergar coisas que não existem, amor onde não existe, amizade onde não existe.

E então passo a esperar, por um amor recíproco, por um sentimento que apenas na minha cabeça existe e que ele guarda para si, e não só ele, quando, na verdade, eu faço isso para evitar a difícil realidade: quem iria se interessar por mim?

Tenho evitado me olhar no espelho: cada dia mais gordo, o rosto cada dia mais feio. Tudo em mim causa repulsa. Por nenhuma razão esses meninos bonitos e populares olhariam para mim: também minha personalidade está quebrada. Sou um bipolar com grandes problemas de afetividade. 

E agora tenho esse grande problema para resolver: conseguir voltar, ou começar, a ver as coisas como elas são. A realidade como ela é. Preciso aprender que a grama é verde, que o céu é azul, que os pássaros cantam e que sim, eu vou ficar sozinho. 

Até o fim, e além. 

Meu inferno deve ser um deserto.

Uma massa de ar polar atingiu o país. Embora seja outono, as temperaturas parecem de inverno. Gosto de como as pessoas se vestem nessa época, mas a cidade parece ainda mais silenciosa com todos quietos em suas casas. E eu também me recolho, não apenas para o meu quarto, mas para o profundo do meu peito, para o meu deserto polar, onde ninguém jamais penetrou, embora não haja nenhum obstáculo. 

Talvez ninguém queira habitar um deserto. Tampouco eu quero, mas que escolha tenho?

"Onde você ainda se reconhece
Na foto passada ou no espelho de agora?" 
(Oswaldo Montenegro)

quinta-feira, 29 de maio de 2025

O Fim da Pureza

Ele era popular ou, ao menos, era isso que todos diziam sempre que viam, mas ele não ligava, e continuava quieto. Não era grosso ou arrogante, como também dizia, e aqueles que insistiam um pouco percebiam o quanto era fácil conviver, sorria fácil, pessoa agradável. 

Mas ele tinha aquele segredo, sempre observava seu melhor amigo, quieto, em todos os momentos e, sem que percebesse, permitiu que seu eixo gravitacional girasse apenas ao redor dele. Por isso os outros pensavam que ele era distante, mas, na verdade, ele só estava perdido, encantado em seu amor, ainda sem esse nome, apenas um sentimento puro, cristalino, desprovido de malícia.

E nisso consistia sua vida. Ainda que todas as meninas insistissem em falar com ele, era para seu amigo que seu olhar sempre se voltava, era para ele que seus olhos brilhavam secretamente. 

Pensei nessa pureza de sentimentos. Na beleza singular transmitida em cada olhar, em cada mão que tremia de medo. Não havia malícia ali, não a malícia a que estou habituado, aquela que se manifesta no desejo torpe, ao contrário, o sentimento real traduz-se em um desejo belo, também ele mesmo, pois se baseia, na verdade, do amor. E apenas isso. E essa pureza parece não existir mais, ou ter quase desaparecido completamente dos nossos corações. 

Onde foi parar a pureza do amor nesse mundo? Será que ainda há olhos cristalinos a contemplar o amado?

"Ó cristalina fonte, se nesses Teus semblantes prateados formasses de repente os olhos desejados que trago nas entranhas esboçados!" (Santa Catarina de Sena)

segunda-feira, 26 de maio de 2025

O Voo da Andorinha

A inspiração sempre vem por lampejos, e então se desvanece, como a fumaça de um cigarro ou de uma xícara fumegante de café. Usei essa imagem alguns dias atrás por esse motivo: a inspiração que me veio, interrompida rapidamente pelos que me rodeiam, sem essa pretensão, claro, me fazem recorrer sempre ao mesmo lugar-comum. 

É o que um meio banal faz com um homem de letras, tenta a todo custo reduzi-lo a um dos seus. Por não o compreender, tentam destruí-lo. "Para que tanto livro, se não é nem bacharel?", o questionamento da vizinha de Policarpo Quaresma na obra de Lima Barreto mostra um pouco disso, e complemento com a observação aguda de Goethe, de que "o talento molda-se na solidão, e o caráter na agitação do mundo. Sendo então, como bem ensina S. Tomás, como toda regra geral encontra na sua aplicação particular, o desafio moral correspondente a virtude que se deve buscar, e receber, já que toda virtude vem de Deus.

Em suma, é preciso equilibrar a agitação do mundo, que distrai, mas que molda o caráter pelo contato, como homens santos e pecadores, assim como a solidão, capaz de reter a inspiração ao menos por tempo suficiente para que minhas mãos registrem em palavras aquilo que passou rapidamente por meu coração, como uma andorinha voa rapidamente diante dos olhos, deixando, no entanto, a impressão daquele veloz, aquela linha rápida.

Fugazes também os momentos que perdemos, não dizendo ou não aceitando o que sentimos. Guardamos até quando geralmente se torna tarde demais. E assim, ignorando o que se encontra diante dos olhos, apenas por ser diferente da expectativa, prefere sofrer na indecisão. Esperando a amada perfeita, encontra no amigo a companhia ideal e o amor verdadeiro, mas não corresponde a imagem inicial, e então ambos sofrem. A andorinha voou, restou apenas breve linha de sua passagem, e nada mais no imenso céu nublado, cinza e triste por não aceitarem os sinais tão claros de seus desejos sendo atendidos. Perceberam, ao menos, e esconderam essa verdade num lugar tão profundo que ninguém é capaz de encontrar, que são, um para o outro, aquilo que sempre buscaram?

"Dizes que brevemente serás a metade de minha alma. A metade? Brevemente? Não: já agora és, não a metade, mas toda. Dou-te a minha alma inteira, deixe-me apenas uma pequena parte para que eu possa existir por algum tempo e adorar-te." (Graciliano Ramos)

domingo, 25 de maio de 2025

Morning Kiss

Duas canecas de café fumegando logo no início da manhã. Um sorriso seguido de um beijo de bom dia. Morning Kiss, como dizem nas séries. 

Uma imagem simples não é? Não é como se fosse um conto de fadas com castelos, inimigos políticos e perseguições, é apenas e tão somente um café da manhã e duas pessoas que se amam. 

No entanto, é ainda assim algo tão distante quanto um conto de fadas que, ao menos, existe na pura imaginação das crianças e de alguns que ainda ousam crer no amor.

Na realidade, há aversão, há distância, há uma impossibilidade intrínseca a essa realidade, há um não ser, e apenas isso.

É domingo, e se aproxima o fim do mundo.

Há tantas histórias que eu queria ver, 

e viver, 

mas só sinto uma vontade imensa de dormir, 

de não ver, 

não viver.

Toda noite tem sido o mesmo: grandes quantidades de energético e mesmo assim logo sinto vontade de dormir, porque não sinto vontade de mais nada.

Hoje mesmo, domingo, não saí da cama. Apenas me virei de um lado para o outro, até que meu corpo doesse, até que sentisse, lá pelas tantas da noite, que não havia sequer tomado um copo de água durante todo o dia.

Mas algo em mim ainda pensa naquelas duas canecas de café fumegando.

sábado, 24 de maio de 2025

Fumaça

Um bar num lugar pouco frequentado pela cidade. Um moço dedilha um violão e canta baixinho, como se estivesse engasgado. Não é uma apresentação, apenas alguém que bebeu e resolveu entoar alguns versos. Eu estou fingindo não ver, além de nós dois há somente mais um cliente, absorto numa grande caneca de chopp, mesmo não sendo nem mesmo meio-dia. Mas o que posso dizer? Estou tomando alguma coisa forte que nem lembro o que é. 

Acendi um cigarro, não é como um daqueles lugares que seguem regras idiotas, tampouco estão conscientes de sua oposição ao movimento globalista de engenharia social, apenas ignoram. Vez ou outra o rapaz aumenta a força nas cordas, sua voz sai mais limpa. O balconista esfrega um balcão de madeira brilhante. Com tão poucos clientes não imagino como poderia estar sujo. Entre uma tragada e outra observo a fumaça se embrenhar por entre os raios de sol que passam pela janela e as cortinas verdes ao meu lado, olho para fora, minhas forças são como essa fumaça, se desvanecendo tão logo começam a voar.

Também como aquela fumaça, que logo desaparece, deixando o cheiro de nicotina no ar, também algumas lembranças preciosas me vão desaparecendo. Aquele beijo e abraço de despedida, anos atrás, parecem cada vez mais distantes. Uma imagem deles sai de mim e parece se formar, desaparecendo, desvanecendo-se, logo em seguida. E então, num suspiro inaudível, torno a fechar os olhos e abrir novamente, escutando o homem cantar mais uma vez, algo sobre ter perdido sua amada. E eu o entendo. Aquele beijo parece cada vez mais distante.

Deveria ter abraçado mais apertado, por mais tempo...

Mas não é apenas isso que eu sinto que deveria ter aproveitado mais. Nos últimos dias eu tenho me incomodado em não conseguir aproveitar. Nada. Tenho dormido, e apenas isso. Estar acordado, por pouco tempo que seja, é uma tortura. Mas já faz três meses que estou em repouso, e me sinto bem em alguns aspectos, mas ainda sinto a presença quase intangível e invisível que espreita o meu eu desperto no interior dos meus sonhos mais sombrios. 

E nada mais tem graça, ou sabor, ou brilho. O que eu faço se é tudo assim tão frágil, vazio e sem contorno? Se tudo parece com a fumaça desse cigarro desaparecendo bem em frente aos meus olhos, deixando apenas um cheiro que logo vai sumir também? Assim como a impressão que deixo nos homens bonitos, que logo passam se esquecem da criatura horrenda que por eles passaram. 

"Quanto mais ando querendo pessoas, parece que entro mais no sozinho do vago." (João Guimarães Rosa)

quarta-feira, 21 de maio de 2025

Dia e Noite

Parece que acordei em meio ao ensaio de bateria de uma escola de samba, não conseguia ouvir nem mesmo meus pensamentos. Mas também não conseguia dizer se o que ouvia era meus pensamentos ou o barulho irritante ao redor, ou ambos, aglutinando-se de modo que minha mente ficou confusa demais para eu continuar acordado. Tentei encontrar algo para assistir, mas programas novos ou velhos, nada me chamou atenção, isso porque o problema não são os programas e sim minha vontade. 

E ultimamente minha vontade anda pífia. 

Talvez um abraço apertado ajudasse.

Me surgem pensamentos, de novo sobre o quanto amei, se foi ou não suficiente, mas sei que não passam de pensamentos intrusivos e idiotas, eu já sei que meu destino está selado, e serei eu a fechar o selo de uma vez por todas. Não há mais espaço, ou tempo, para amor. 

Ele nem sequer existe. 

Sinto saudades, mas já cansei de dizer isso. Cansei de muita coisa. Sinto que ainda o amor, mas já cansei de dizer isso também, pois parece que se tornaram palavras vazias, 

como todo o resto.

Começou a chover, é uma madrugada chuvosa com ventos frescos passando pelas frestas da porta grande da sala e pela janela aberta do meu quarto. Pensei em três programas para assistir, mas realmente não quero ver nenhum deles. Meus amigos foram dormir, e eu queria poder deitar no colo de alguém. Patético não é? Eu sei.

Parece que a cidade está chorando, mas eu mesmo não consigo chorar. Talvez um abraço apertado ajudasse.

Parei de tentar encontrar uma razão para a existência, queria ao menos encontrar um motivo para ficar acordado, mas nem isso. 

Droga. 

Se o dia me pareceu insuportavelmente longo, a noite parece que será igual. Talvez um abraço apertado ajudasse.

Droga. 

Amanheceu chorando de novo. Vou voltar a dormir enquanto minhas palavras se perdem no nada como as cinzas de papéis ao vento.

Companhia? Apenas a velha solidão, o ciclo de sinfonias do Mahler e um punhado de remédios pra dormir que engoli com vinho barato.

"Só desejo dormir e guardar silêncio. Estou farto da humanidade." (Albert Camus)

segunda-feira, 19 de maio de 2025

A Negação da Beleza

Season of Love in Shimane

Não me sinto sujo. Gosto dessas imagens, e já disse várias vezes. Acho belas essa combinação de corpos e luzes, olhares e toques, algo de mágico paira nessas coisas. Talvez seja aquele ritmo de respiração do qual já falei antes, simbolo e parte da própria forma do cosmos. O todo em seu funcionamento incompreensível que se manifesta de modo compreensível. O universo inteiro compartilhado na troca entre duas pessoas, dois corações, duas forças que se combinam e explodem. 

Mas poucos entendem, ou entendem apenas essa parte mais imediata, mais baixa. Não são diferentes daqueles que, não entendendo, também só enxergam o imediato, mas não o símbolo que há ali. Me refiro as minhas imagens aqui, mas o mesmo vale para tantas outras coisas e, para usar um exemplo que faria tremer essas alminhas temerárias, também não entendem a profundidade dos símbolos religiosos. 

O homem perdeu isso há muito tempo, consigo perceber essa sentença universal em incontáveis seres individuais ao meu redor. O homem parece não ser mais capaz do símbolo, do belo, ou apenas concebe uma única categoria de beleza, esta ou aquela, sem ser capaz de reconhecer outra que se apresenta diante de si, ou até mesmo em si, e que é tão bela quanto a que eles admiram, mas não percebem que inclusive trata-se da mesma beleza. 

Os corpos dos santos que se entregam a Deus no martírio, ou nos altares, que confessam. Os animais e as plantam que cantam a glória da criação. A música que expressa os mais diversos aspectos da alma, a alegria angélica da 9° de Beethoven ou a 4° de Mahler, a dor da existência na 6° de Tchaikovsky, a transcendência do Juízo Final em Mozart e Verdi. A poesia de um perturbado, os lamentos de um exilado, ou a que canta as glórias da união do amor divino

Mas também o amor que muda uma vida. O toque que, ao provocar na pele a eletricidade do amor, diz mais que todas as letras de um poeta como eu. O olhar que diz mais que todos os filmes medíocres já feitos, mas captado por aquelas grandes obras, muitas delas sem nem mesmo palavras, como a última cena de Solaris de Tarkovsky, reproduzindo a passagem do retorno do Filho Pródigo tal como retratada por Rembrandt. 

Mas então excluem essa beleza. Escondem, em verdade, essa confusão que fazem entre o belo do corpo e do amor e a podridão de uma cultura que mudou o significado de virtude, atingindo inclusive aqueles que querem continuar a buscá-la. Essas alminhas então se ofendem facilmente com o que, em condições normais, seria uma beleza normal. Demonizam o amor e suas demonstrações, jogam ao fundo de suas consciências seus próprios desejos e dividem-sem, tornando-se personalidades fragmentadas, em constante luta contra si mesmas, e não contra o pecado. Enxergam pecado onde justamente poderiam encontrar a cura para as impurezas de seus olhos. E o médico olha o paciente moribundo, e o remédio intocado ao lado da cama, porque lhe despreza a embalagem que ele não sabe como abrir sozinho. 

E então eu me afasto. Me afasto porque vejo que a beleza que enxergo, eles abominam, e eu abomino esse simulacro vazio onde só há beleza numa parcela ínfima escolhida por eles porque não os lembra dos próprios pecados ou porque oferece uma visão bela, sem querer confrontar-se com a sua própria verdade, mas então, como diz o pecador arrependido, "e eu pobre, que farei, que patrono invocarei, quando só o justo estará seguro?" diante da Verdade Eterna?

Eu, no entanto, torno a afirmar que vejo beleza aqui, e creio que essa beleza, é uma das poucas coisas, senão a única, que ainda me permite ter uma centelha de esperança, por causa do calor daqueles olhares e da delicadeza daqueles toques, por causa da verdade daqueles sentimentos verdadeiros e conflituosos, símbolos dos nossos próprios conflitos, mas ali estampados, como tela a ser contemplada, e não lançada ao abismo onde, alimentando-se de nossos medos, torna-se criatura ainda pior a nos devorar.

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

(Álvaro de Campos)

domingo, 18 de maio de 2025

Brilho nos olhos

Tape Worrachai

O barulho foi demais, eu perdi toda sombra de inspiração que tinha, e olha que era apenas uma centelha. E já nem me lembro do que ao certo iria falar. Apenas estou sentado aqui, a cortina aberta pela metade, deixado apenas uma pequena faixa de luz amarela entrar ao lado do tecido verde brilhante, esse ar esverdeado dá ao ambiente uma aparência meio doente, como se algo estivesse errado. 

Durante a madrugada eu tive alguns relances de inspiração, mas foram como os raios de luz que já se perdem no meio das nuvens de uma cidade triste, que parece chorar na maior parte de seus dias, o que, não posso discordar, combinar comigo. 

Me perguntava então, antes de ceder ao sono, ou ao desinteresse completo pelo ser incrustado nas minhas fibras, que talvez todos esses anos eu tenha demonstrado afeto demais. O velho Buck disse que o amor de um solitário é o amor verdadeiro, porque ele ama sem querer nada em troca, já que sua solidão lhe basta. O solitário verdadeiro é, na visão dele, alguém que prefere sua companhia ao invés da sociedade que lhe cerca. Quando ama, ele abre mão disso em função de oferecer sua solidão ao outro, ao objeto amado. 

Não sou um solitário no mesmo sentido que ele. Eu sou um pária esquecido. Alguém obrigado a viver na solidão, não que a ame, mas que vai precisar amar, porque essa é a única saída. 

As nuvens continuam passando, embora pareça um dia preguiçoso, as pessoas ao meu redor estão agitadas, e isso me irrita muito. A luz do sol entra e logo desaparece. O barulho cessa por alguns instantes e retorna. Vou dormir, engoli um monte de remédio, prefiro ficar acordado durante a madrugada, quando é mais quieto. Hoje não quero ver ou ouvir mais ninguém. 

E continuo achando que amei errado, e demonstrei errado. O que será que diz a tradução dessa música que estou ouvindo? Lembro que se chama Natsu no Omoide e já conheci na voz de duas cantoras, e me lembra a melancolia de uma manhã de outono, solitária e, não raras vezes, fria. Será que você não percebe o quão encantado eu estou? Ou estive? E ainda assim optou por ignorar, ou fingiu porque não queria me machucar? 

Ou realmente não foi suficiente? 
Ou realmente não fui suficiente?

Por se foi isso, parece que você e todo o universo estão de acordo. Me sinto insuficiente para absolutamente tudo que já tentei e propus a fazer.

Foi afeto demais? Ou afetação demais? Continuo assustando por ser demais? E agora que me restaram apenas olhos opacos? 

Admiro quem por muito tempo lutou e sobreviveu e ainda conserva a esperança, o brilho no olhar. Pensei nisso enquanto via Tape Worrachai, um ator tailandês ao qual nunca dei muita importância por fazer apenas um papel bobo numa série mediana, mas que agora tem me surpreendido e muito em The Bangkok Boy, aparecendo com esse mesmo brilho no olhar depois de ter perdido o amor, o pai, ter sido preso e lutado muito lá dentro. Depois de tudo isso, ele ainda tem energia para salvar um desconhecido e, com o brilho de seus olhos, conquistar seu afeto. 

Eu ando a arrastar os pés sangrentos, e sinto, como o poeta, sangue, cânticos e espuma nos lábios... Vejo que, enquanto eu demonstrava afeto demais, e enquanto muitos também o fazem, não raramente, para a pessoa errada, a que menos se importa ou corresponde. A vida tem dessas coisas, gosta de jogar na cara, nas madrugadas, o quanto somos burros.

Não me considero uma inteligência elevada, mas concordo com o grande escritor russo:

"(...) O sofrimento acompanha sempre uma inteligência elevada e um coração profundo. Os homens verdadeiramente grandes devem, parece-me, experimentar uma grande tristeza." (Fiódor Dostoiévski)

quinta-feira, 15 de maio de 2025

Silêncio e Discurso

"O inconsciente é estruturado como uma linguagem". (Lacan)

É uma madrugada particularmente silenciosa. E então o silêncio se tornou algo a dizer dentro de mim. Mesmo com os últimos episódios dessa maratona de Until We Meet Again, contemplei-os como quem fita um quadro, silenciosamente, deixando-se penetrar e, de algum modo, fecundar pela imagem. 

Gosto de certos silêncios, e daquela expressão de intimidade que é sentir-se confortável no silêncio com alguém, e eu sou assim. Passei muito tempo sem dizer nada ao lado de que amava e, justamente porque amava, nada precisava ser dito. Isso porque o silêncio em si pode ser bastante expressivo, tanto quanto a palavra. Na música também as pausas são tão importantes quanto as notas. Quem há de discordar do efeito dramático das pausas das sinfonias de N° 6 de Tchaikovsky (no primeiro e no último movimento) e na da Mahler (especialmente antes daquela coda do movimento finale). Assim também entre amigos e amantes. Mesmo no silêncio há um discurso ali, algo que é dito, e isso pode ser bom.

Venho de dois dias particularmente cansativos, e não para mim, mas meu cansaço é apenas expressão de um silêncio emprestado. Eu apenas fiquei ali, porque queria dizer que minha presença era sinal de disponibilidade, para ouvir, para apoiar, secar lágrimas, necessário ou não. E em silêncio ficamos, caminhamos, sorrimos, cumprimentamos conhecidos e desconhecidos. No silêncio contemplamos aquele que velávamos, e algo ele também dizia: nos lembrava com sua finitude a finitude da vida, mas também recordava as alegrias, as mãos calejadas lembravam as lutas, enfim, aquele era seu último discurso, finalmente acabado. De agora em diante nada mais dirá nem lhe será perguntado. A o ouvimos, cada um dentre aquele grupo ao seu modo. E no silêncio assentimos.

Assim como no silêncio assenti uma vez mais as lágrimas do Fluke Natouch e a constante expressão apaixonada do Ohm Thitiwat combinada com sua costumeira seriedade (do personagem, claro). 

Mas é claro é nem todos os silêncios são assim, preenchidos de um significado carinhoso, de uma música ou de imagens apaixonadas. Às vezes o silêncio, principalmente quando constantemente usado para esconder uma resposta, pode machucar. Então, para não terminar esse texto de forma otimista demais, fecho com essa citação:

"A vida é uma tragédia em três atos: desejo, decepção e tédio. E o único final feliz é o silêncio do túmulo." (Schopenhauer)

segunda-feira, 12 de maio de 2025

Andante Moderato

Não me surpreende, não mesmo. Eu sempre soube que era assim. Que a minha importância nunca passou de uma conveniência. E logo depois eu posso ser descartado. Como se nada, e nada realmente é. A vida é emprestado estado, e parece que o amor e a amizade também são. Será que ao dizer que "tudo passa" Heráclito se referia a isso também? É um engano, tenho certeza que o filósofo não tinha em mente os problemas banais aos quais eu me refiro, muito embora, se a transitoriedade do ser tenha em si uma carga de importância vital para ele, a transitoriedade das relações humanas tem para mim, o que acredito ser mais um reflexo da minha imaturidade. 

Queria ter virado a noite assistindo, tinha me preparado para isso até. Mas acabei ficando chateado com uma besteira e preferi ir dormir. É sempre assim não é? Dormir é mais fácil. Mas nem era uma surpresa, antes disso, eu já sabia bem qual era a verdade, mas vê-la diante de mim ainda foi, não um choque, mas um incômodo. 

Estou ouvindo a Sinfonia N° 2 de Mahler, nesse momento o 2° movimento, um Andante Moderato, e me identifico com esse andamento, talvez essa seja a velocidade do meu pensamento nesse momento. 

Mas, de volta a Heráclito, talvez o que ele observou no cosmos, eu observo nas relações, e aí sim afirmo que, entre as pessoas, tudo passa. De repente, por exemplo, numa madrugada fresca de vento seco a soprar, eu escuto Tim Bernardes, música de outros tempos para mim, lembranças de risos, colos, afagos. Tempos que passaram. Olhares que ignoro, risos que ficaram na memória, colos e afagos que não voltam mais. Mas o cantor mesmo disse: "A dor do fim vem para purificar, recomeçar..."

Já faz alguns anos, mas ainda me encanto, e continuo repetindo as mesmas palavras, com a delicadeza de Until We Meet Again. Agora, revendo pela quarta ou quinta vez, eu percebo com mais atenção os olhares, aqueles olhares que tanto esperaram para se reencontrar. Os toques delicados, os dedos que se aproximam, depois se entrelaçam, depois se colocam ao redor do pescoço e do torso na aproximação de um beijo delicado. O tempo também tem uma importância crucial aqui, pois a história que vemos é a continuação daquela interrompida de modo abrupto trinta anos atrás. Eles se reencontram, e sentem que já se conhecem, mas sem entender, só sabendo que não podem mais viver um sem o outro, e de repente o tempo toma outro significado: nenhum tempo pode passar sem que fiquem juntos, porque antes morreram e não viveram seu amor, e agora esse amor precisa viver, precisa ter, finalmente seu tempo. 

Uma vez ele passou, de um jeito triste, mas agora precisa passar, mas passar de mãos dadas.

Tudo passa, mas isso não significa que passar seja algo ruim. Mesmo não tendo vivido isso ainda, acho que algo em mim quer continuar acreditando nisso.

quarta-feira, 7 de maio de 2025

O Mundo Espera em Ti

Uma vez mais ela, aquela que construiu a civilização ocidental, se encontra no centro dos olhares de todo o mundo. A começar por uma intriga cinematográfica, semanas de tensão por um papa hospitalizado e sua morte "repentina" depois da alta até o início do Conclave. Câmeras do mundo inteiro apontadas para a Basílica de São Pedro. Jornalistas levantam hipóteses, traçam perfis, pesquisam, dizem besteiras. Enquanto isso, os católicos rezam. Os cardeais escutam uns aos outros para saber que Igreja o próximo pontíficie vai conduzir, tentando sondar aqueles desígnios divinos dos quais temos apenas relances. Estamos diante da Revelação Divina em sua prístina pureza e, no entanto, nossos corações só podem vislumbrar o que há la no céu, o mesmo céu ao qual imploramos a intercessão na Ladainha de Todos os Santos, enquanto os purpurados caminhavam até a Capela Sistina onde, depois de invocar o Espírito Santo com o Veni Creator Spiritus, observam Jesus Cristo Rei do Universo, com a mão sobre o Evangelho, jurando mais uma vez fidelidade à Igreja e ao povo santo de Deus a eles confiado. E então, vendo aqueles homens carregarem tamanho peso, em busca de um que carregará fardo ainda mais pesado, eu vejo o quanto aquele filme parece pálido, opaco, sem vida. Por mais que digam o contrário, e por mais que muitas vezes até mesmo os católicos vivam o contrário, a Igreja vive, e ela vive porque Cristo vive. Então nada mais propício que um Conclave acontecer durante o Tempo Pascal, é o Cristo cabeça da Igreja que vive em cada um de seus membros, a elegerem um novo sumo pontífice e guiar a Barca de Pedro. 

"E as portas do inferno não prevalecerão contra ela." (Mt 16, 18)

sexta-feira, 2 de maio de 2025

Tempo e Compreensão

"(...) Na solidão o solitário devora a si mesmo, na multidão o devoram muitos. Agora escolha." (Friedrich W. Nietzsche)

Me desculpei por sair rápido de lá, ou melhor, não tão rápido assim, depois de contar essa história para a mãe de um belo rapaz que, aparentemente, sentiu algo em relação a sua vocação. Ela foi contada por um dos bispos de Maputo, Moçambique, o qual infelizmente eu não sei precisar o nome, numa das catequeses promovidas durante a Jornada Mundial da Juventude.

Um jovem vivia numa tribo, pagã, e era filho do chefe e sacerdote. Em algumas ocasiões em que seu pai tinha contato com o mundo exterior, ele recebia algumas coisas escritas, pedidos de pessoas, comunicações de outras tribos... Isso despertou no jovem o interesse pelas letras. Ao dizer isso ao pai, este lhe respondeu dizendo não ser necessário aprender, bastando-lhe conservar os ritos e costumes de seu povo. Mas ele persistiu e descobriu que, ali perto, havia um grupo de cristãos que promovia a alfabetização. 

Tratavam-se de missionário salesianos, que o receberam. Durante um tempo então ele estudou com eles e, sem pressão por parte dos religiosos, ele foi se aproximando daquela mística sublime que eles viviam. Como eles participavam da tal Missa com tanta devoção, a alegria que eles recebiam aqueles que pediam pelo batismo e que se juntavam a eles... Não demorou até que ele mesmo quisesse se converter. Ao expressar ao pai o desejo de ser batizado, ele recebeu a dura resposta "se for batizado, eu não o considerarei mais meu filho". Mas ele foi mesmo assim. Foi catequizado, passou pelo catecumenato e, aos vinte e um anos, recebeu o Santo Batismo. Sem família para retornar, continuou morando com os missionários.

Não demorou até que ele mesmo sentisse o chamado ao sacerdócio. O responsável pela missão, após discernimento com o jovem, o enviou para o seminário em Roma. Anos se passaram, ele formou-se, mas, quando chegou o tempo da ordenação, o bispo adiou a sua e ordenou todos os seus colegas, sem maiores explicações. Alguns meses se passaram e ele, apreensivo, não entendia, mas permaneceu firme até que recebeu do bispo a ligação marcando a data da ordenação.

No dia tão aguardado, após a consagração das mãos do sacerdote com o Óleo Santo o bispo segurou as mãos dele, de costas para o povo e lhe disse: "eis o motivo de ter adiado sua ordenação, você já tem sua primeira missão como sacerdote, vire-se e veja sua família que hoje, depois de mais de uma década longe de você, vem te pedir que sejam todos batizados!" E sua primeira ação sacerdotal foi batizar o pai que um dia lhe expulsara de casa por querer ser cristão.

É uma bela história, verdadeira, tratava-se da história do próprio bispo (pelo que me recordo), e é claro que chorei quando ouvi isso, a força transformadora que uma vida cristã tem, ainda que distante. É a força do Evangelho, o Espírito Santo que sopra sem que dependa do nosso tempo ou da nossa compreensão e nos atrai a Cristo.

Mas o que isso tem a ver com o fato de eu ter saído rápido após o fim da Missa do Sagrado Coração? Bem, eu estava lá para servir, e fiz o que me propus, mas aquela escuridão apareceu novamente, e me fechou os olhos e o meu coração. Eu contei para a mãe de um menino que achei bonito, mas nada além disso, não é como se quisesse me aproximar dela ou dele, pelo contrário. Ao ir embora eu sentia que, além de doente, eu preciso me abrir sempre mais para a graça, sem esperar as mãos humanas, sem querer que seja ao meu tempo ou sem querer compreender sozinho. Fiquei muitas semanas sem tocar no livro dos documentos de Leão XIII, mas eu não conseguiria entender mesmo, então precisei esperar e, essa semana, eu consegui ler vários deles de uma vez. Tempo…  

Algo disso tem a ver com meu coração, com a necessidade sim de sair do quarto, de rezar para o Sagrado Coração, mas também de me recolher, de dormir, de ficar em silêncio ou ouvir música, de ver meu sobrinho sorrir, de chorar quietinho mais uma vez ao perceber a verdade contida nas mensagens que deixam claro que ele não gosta de mim. Essas coisas estão todas interligadas, e elas seguem um tempo que não é meu, uma compreensão que não é minha. É de Deus. 

quinta-feira, 1 de maio de 2025

Um Sonho

Isso é um sonho? Algum tipo de pesadelo? Ou o efeito colateral bizarro de uma anestesia mal aplicada? 

Sinto como se estivesse nu numa estrada deserta, faz frio, o vento corta minha carne, e eu arrasto os pés sangrentos, mas não sei onde vou chegar. É algo tanto quanto psicodélico, os pensamentos vêm e vão, imagens, algo meio etéreo. É quase como se eu fosse dali levado a outro lugar, sentisse toques em minha pele e tocasse outras peles, cheiros de perfumes se misturando, sorrisos, e então voltasse a essa estrada vazia. 

E então fosse de novo, como que arrebatado, levado ao mar, sentindo a brisa fresca no rosto e nos cabelos, ouvindo as ondas quebrando nas grandes pedras, calma absoluta. E então de volta a estrada.

Me vejo entrando numa enorme igreja, repleta de afrescos no teto e grandes e belíssimas imagens, reconheço alguns dos santos ali, e percebo que muitos usam vestes como as minhas, mas não consigo ver o rosto de ninguém. De volta a estrada. 

Não sei como vim parar aqui, não sei o que vim fazer aqui, não sei por onde andei até aqui e não sei por onde voltar, mas voltar pra onde? Tenho um lugar para onde voltar? Na juventude minha mãe sempre dizia que eu devia voltar logo pra casa. Aquele mestre tarado disse que lar é um lugar onde tem alguém esperando por nós. A música diz algo parecido, uma cadeira não é uma casa e uma casa não é um lar se não tem ninguém para amar lá. Ou algo assim. 

Parece haver algo também ao meu redor. Eu sinto seu olhar a espreita, sinto seus tentáculos gelados tentando penetrar a minha mente. Mas eu olho e não consigo encontrar nada, giro em meus calcanhares, sinto as pequenas pedras se misturarem as minhas feridas, meus cabelos nos olhos, mas não vejo nada.

E então sou levado de novo.

Diante do espelho quebrado, 

quebrado, 

destroços, 

desaparecendo 

lentamente

.

quarta-feira, 30 de abril de 2025

Aforismos

"Arrancamos tanto de nós mesmos para nos curarmos mais rapidamente, que estamos esgotados aos 30 anos, e temos menos a oferecer sempre que começamos com alguém novo. Mas se obrigar a ser insensível só para não sentir nada? Que desperdício!" (Call Me By Your Name)

A cada vez que algo dava errado com alguém, uma parte de mim se ia, uma parte grande. Sempre me referia a isso como um derramamento, como Ganimedes derramando o néctar dos deuses, mas ao chão, num pires, e não nas taças divinas onde ele deveria ser depositado. Algumas pessoas levaram tanto de mim, e largaram na próxima esquina. E não consegui recuperar. E parece que agora não sobrou muito para oferecer a mais ninguém. Mas me forçar a ser insensível para não me machucar de novo parece desperdício, eu sei disso, mas ainda acho que é o certo a se fazer, ou melhor, que é a única coisa que eu posso fazer. Sei bem que derramei o meu amor, o meu néctar, no concreto frio.

Um desperdício. Concordo. Mas não farei nada. Sem mensagens, sem sorrisos, sem investimentos. Afinal, esgotado aos trinta, eu não tenho nada a oferecer, e constato isso com uma mente perturbada e um corpo em total desequilíbrio.

X

O dinheiro tem estado ainda mais escasso nos últimos dias, o que é um eufemismo para dizer que estamos contando trocados para comprar leite e fraldas. Sendo sincero isso nem me preocupa tanto, eu só não quero ficar sem meus remédios, mas até eles começaram a faltar, e estou adaptando para conseguir dormir, um pouco que seja.

Não sei como consegui assistir a essa série, pois fala das pessoas que, graças ao que tenho hoje, são as que mais desprezo: pessoas que colocam o lucro e o status social acima de qualquer outra coisa, incluindo o valor inalienável da vida do outro. São as pessoas mais baixas e vis, e talvez as que mais precisem da misericórdia divina, já que não a reconhecem. 

Me lembra aquela CEO de ThamePo, que também em si representa tudo eu mais desprezo: em nome dos lucros ela separou os amigos, fez o Thame ser odiado, sacrificou o Pepper porque o Thame era mais lucrativo, separou o grupo quando eles tinham finalmente voltado e, por fim, quando viu que não tinha mais saída, descartou até o nome. Pelo lucro tudo é válido. Nojo.

Posição. Por alguma razão é algo levado em demasiada importância. Observo aqui não resquícios, mas uma consequência direta do puritanismo protestante e da moral kantiana. Todos temos que encarnar uma nova mulher de César, porque parecer imoral é pior do que ser imoral. Antes ser imoral e parecer perfeitamente conforme as regras da sociedade do que ser abertamente aquilo que se é. Ser real. O homem fragmentou-se de tal que já nem ele mesmo se reconhece.

X

Durante a Quaresma o Frei Gilson, sacerdote do Instituto Hesed (que tanto admiro pela profunda espiritualidade de suas fundadoras), foi criticado por certo exagero penitencial ao propor uma jornada de quarenta dias rezando o Santo Rosário de madrugada, como, pasmem, sempre fizeram não apenas os santos, mas todos os fiéis razoavelmente devotos se preparando para a Páscoa. Ele apenas fez o que deveria ser absolutamente normal, mas o normal hoje é extremismo e o extremismo da lógica do absurdo é o normal. Mas se esse homem conseguiu colocar o Pe. Júlio Lancellotti (sic!) num hábito religioso e dizer algumas palavras sem conter aqueles jargões estúpidos de justiça social, fraternidade ecológica e tutti quanti, ele já tem meu apoio incondicional e, mais importante, minhas parcas orações. 

X

Dois amigos conversam. O primeiro, visitando a casa da família do outro. Rico, só fala com a mãe por telefone e tudo que ela tem a oferecer como amor são os funcionários que o servem. O outro, o recebe com os pais sorridentes. A mãe prepara uma sopa de algas, prato simples. Serve sorridente enquanto o pai faz piadas sobre o filho no colégio. Ao levar a primeira colherada a boca ele sente algo diferente. Em sua casa tem à sua disposição cozinheiros que já trabalharam nos mais renomados restaurantes do mundo, mas aquela simples sopa é melhor do que qualquer uma que ele já provara. 

- É uma simples sopa de algas, mas por que o sabor é tão bom?

- Como assim? Tem a sua disposição os melhores chefs do mundo, tem algo que eles não consigam fazer?

- Tem, algo como isso. Como posso dizer... Tem um sabor quentinho. 

- Então é só vir aqui em casa mais vezes. 

Realmente, era um sabor quentinho, que ele nunca experimentara antes. 

(Hierarchy)

X

“Depois de tudo, no vazio
da manhã inabitável,
ajuda-me a negar
este remorso:
eu só queria uma canção
que não morresse
e a hipótese de um poema
que não fosse
o lugar onde me encontro
uma vez mais,
sem desculpa, sem remédio,
diante de mim mesmo.”

(Rui Pires Cabral)

segunda-feira, 28 de abril de 2025

O Despertar de Sísifo

Seus olhos e o calor de suas mãos eram tão puros. Acho que um dia, tanto tempo atrás que já nem sei dizer quando, eu era assim, e conheci alguém que também era. O abraço era apertado, como devem ser todos os abraços, envolvendo e fazendo tocar os corações. O calor era transmitido de um a outro, uma ligação. Olhavam-se próximos, mas entendiam o significado na profundidade oceânica daquelas pupilas? Entendiam o que significavam cada um daqueles toques? Mas isso foi há muito tempo, na plenitude de uma antiga sociedade que já não existe mais. Quando o sol poente refletia-se no mar, criando uma miríade de cores, do laranja intenso, o amarelo doce, e um azul-claro que aos poucos ia tornando-se escuro a medida que ia adentrando a noite. A brisa que soprava trazia consigo poesias, o farfalhar das árvores cantava. Mas do que estou falando? Foram apenas devaneios de uma dopada candura. Na verdade, cada olhar foi apenas um olhar, ninguém viu o que estava por baixo da superfície daquela fonte cristalina, cada toque foi apenas toque, ninguém seguiu aquela energia até o coração do outro. No fundo, nunca se encontraram de verdade, embora estivessem sempre próximos. Nunca existiu tal coisa. A única verdade é que sim, seus olhos e o calor de suas mãos eram tão puros, e acho que um dia eu também já fui assim.

Tento reproduzir essa dopada, sei que não vou conseguir a não ser que aumente e muito a dose, o que talvez eu faça. Hoje tem uma série que quero muito assistir por ser do tipo confort, o que me faz muito bem. Talvez eu devesse fazer pipoca. É, acho que é uma boa ideia, dormir boa parte do dia e depois assistir. Gosto disso. O Chokun é um ator lindo de fofo, com um corpo enorme, é o tipo de coisa que me anima. Vou terminar essa caneca de chá de gengibre, mel e cúrcuma e ir pra cama.

Eu tentei, a todo custo, não me dopar mais um dia. Tentei mesmo. Pela manhã, a forte alergia me fez dormir por conta dos remédios, mas eu melhorei, e vislumbrei um dia inteiro pela frente. Um dia lindo, fresco, meio nublado, mas não escuro demais. Perfeito. Mas eu precisaria ficar acordado o dia todo pra vê-lo, para vivê-lo. E eu não quero isso. A perspectiva de ficar um dia inteiro acordado me apavora. O abismo que me encara de volta é o grande céu que se abre acima da minha cabeça, e quando olho pela janela, vendo pássaros voando e arvores se mexendo, e penso que eles farão isso o dia todo, e amanhã de novo, e de novo, e de novo. E isso é horrível. É impossível imaginar Sísifo feliz.

quinta-feira, 24 de abril de 2025

O que foi dito, e o que foi visto

Eis um exercício psicológico: como reagir a uma situação de dessabor. As palavras, graves e diretas, atacam como setas inflamadas. Une-se esta impressão aquela de muito tempo de alguma desavença entre ambos, ainda que nunca tenham trocado mais do que meia duzia de palavras. 

O real: uma interpolação direta a uma afirmação cômica. 

Aquilo criado por uma mente emocional de extrema afetação: um ataque frontal, algo como uma declaração de guerra velada. Mas ainda passível de mais profundas investigações: a posição corporal e sua expressão facial não diziam isso.

Mas quem sou eu para investigar isso e dizer o que significa sua expressão facial ou corporal? Eu tenho apenas aquilo que me foi dito, nada mais. 

Tenho a especulação de uma conversa que ouvi, a qual em nada me diz respeito, excepto pelo fato de que, sendo verdade, talvez seu humor estivesse alterado e, com isso, ele que sempre ignorou minha presença acabou escapando daquela aparência abatida e, por um instante, resolveu atacar um alvo aparente e obviamente mais fraco. 

Mas, repetindo, eu tenho apenas o que me foi dito, e o mais que a minha distorcida cria não vale nada. É apenas um reflexo de uma personalidade carente que idealiza: o homem mais bonito sendo o mais próximo de mim. Uma doce mentira.

O ASCÉTICO

Eu aceitei que sou solitário,
E tá tudo bem, irmão.
Aceitei que sou solteiro,
Por escolha, não por azar

Aceitei que meu amor não me ama,
E isso dói, mas tá tudo bem.
Aceitei que meu não existe,
Ou se existe, eu não vi,
Eu não quis, eu desmereci.

Aceitei que sou um garço da vida,
Vendo casais felizes,
E eu com um drinque na mão.

(Autor Desconhecido)

Ele não me chamou atenção de imediato. Ou chamou e eu não quero aceitar essa verdade boba, porém humilhante? Não, a verdade é que ele não é particularmente lindo. Bonito sim. Quando conversamos, vi que tem algo de bem-humorado, combinando a um semblante entre o sério e o descontraído, germânico diria, mas sem aquela altivez arrogante, foi como se nós, ele, eu e os outros, pudéssemos ficar um bom tempo ali falando qualquer coisa. Mas, como dizia o poema logo acima de autor desconhecido

Eu aceitei
que um homem alto e loiro 
jamais olharia para mim

Assim como a métrica da poesia pode determinar sua força
E eu reconheço que metrifico melhor em prosa que em verso

O que talvez signifique
que eu seja melhor amigo que namorado
melhor ajudante que conhecido
Eu aceitei que eu sempre sou ignorado

E então, ainda que da celeste legião
de todos ele tenha se destacado
fazendo-me de do conteúdo de sua alva túnica 
enamorado

Surgiu do alpendre da capela
da solene procissão a guiar, 
altivo, forte, sereno a caminhar

E quando falou comigo, 
senti meu rosto corado
mas sei que esse instante aflorado
é apenas último sopro de um peito deteriorado

Não um homem como eu
despudorado
que se deixa levar pela novidade do corpo 
inexplorado

Cujo toque acalorado reflita 
um coração queimado
O sentimento novo que parece
deixar o peito ancorado

Na verdade, me deixa apenas no ar a flutuar
A sonhar, imaginar, conjecturar
cenas de carinho que talvez o fariam se envergonhar