quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Alguns dias aqui


Os olhos dele não eram apenas frios, é difícil explicar, não eram vazio mas também não pareciam ver nada dali. Talvez estivessem vendo coisas de lugares distantes, outras pessoas, não sei. Talvez estivesse vendo coisas de outro mundo. É, essa é a melhor forma de descrever: não são olhos vazios ou tristes, são olhos distantes. Que contemplam o imensurável cosmos ou os oceanos abissais. Longe demais para dar atenção as pequenas bobagens de aqui.

Já fazem alguns dias, que não consigo me levantar senão por alguns instantes, e logo tornar à cama. Não que seja o melhor lugar ou o mais confortável, mas acho que é o único lugar onde posso ficar sem fazer nada. Cabelo e camisa amassados, o rosto inchado, a pele macilenta e oleosa. Quando alguém parte a porta eu respondo com a única voz que me sobrou, um murmurio baixo e grave, sem energia. 

Três livros a minha direita, tentei ler algumas paginas mas as letras fugiram de mim. Não consegui reter sequer uma vírgula. A música toca repetidamente e eu já nem sei mais o que estou ouvindo. Algum dueto indiano bem animado ou desesperado. 

Eu deveria me levantar, fazer alguma coisa. Preciso fazer um portfólio de maquiagem que sequer comecei. Menos de meia hora eu fui ao shopping e voltei, gastando com paletas e iluminadores, na esperança de que me alegrassem um pouco, nada. Sequer tenho vontade de usá-las. 

Não tenho forças para levantar e me olhar no espelho, e sei que se olhar não verei mais do que um homem feio de olhar distante. Mas o que vejo? Vejo um imenso abismo, um vazio sem tamanho. Vejo escuridão e vejo mentiras onde os outros vêem amor. 

"Nunca amou" alguns dizem e eu respondo "amou demais" mas nunca foi amado. E por acaso a culpa é minha? Nasci sob o signo da solidão, marcado pelo destino de nada ter e nada conquistar. 

As meninas que sorriam para mim na verdade queriam meus amigos. E que me importa isso? Por acaso dei a gostar de mulheres agora? Não é isto, é que saber não ser agradável aos olhos dos outros é uma constatação dolorida por demais.

Por isso acho que meu corpo desligou-se. Não há razão para sair, não há razão para vestir-se, não há razão para pintar-se. O mundo ao meu redor continuará cinza, ainda que todos os outros enxerguem as cores, ou se iludam com elas. 

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