sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Quarto de século

Um peso se abateu sobre meu corpo, como se a existência de repente voltasse a ser um fardo pesado. Minhas pernas se movem com lentidão, meu raciocínio demora a responder enquanto meus olhos vagam sem rumo, pelas janelas e paredes. É como se não reconhecesse nada quanto me rodeia, é como se fosse um estranho em meu próprio corpo. No espelho apenas o retrato da loucura.

Não quero tornar a falar do vazio que sinto toda vez que isso me acontece. Mesmo sabendo que, no entanto, a boca fala daquilo que há no coração, muito já foi dito sobre o vazio, com muito mais profundidade e muito mais eficiência do que as minhas parcas e fracas palavras. Mas é sempre assim, do que eu falarei então? De que outras experiências posso me valer como escritor se não experimento outra coisa senão esta eterna dualidade, entre a morosidade lânguida da depressão e a flâmula luxuriante de uma mania quase psicótica?

Vivo assim, portanto, entre o vazio e o fogo que consome. Entre o abismo frio e escuro que me observa e as chamas que destroem os longos e belos campos de flores vivas do meu coração. É uma dicotomia estranha pois, se eu já sentia que não havia mais nada em mim como o fogo há de achar o que consumir? Pois parece que ainda há, ao mesmo tempo em que não parece haver mais do que um grande buraco bem no centro do meu peito.

Não sei o que é isto. Se é puro efeito da bipolaridade ou dos remédios que tomo para tratá-la ou se ainda é fruto de um despertar para a verdade de uma existência cíclica entre o vazio e a dor, e a dor do vazio.

É risível, além de patético, um escritor não ter sobre o que escrever pois não lhe foram dadas outras experiências além de um profundo cinza sem graça e de uma absoluta falta de interesse e brilho em qualquer coisa que seja desta vida. Tudo me parece dispendioso, tudo me parece uma grande armadilha do destino para despertar em mim esperança, para depois me lançar novamente no lamaçal da decepção. Vou vivendo então, obrigado, um dia de cada vez, sem ânimo, sem vontade alguma, como alguém que nunca rompeu o ventre de sua mãe, senão que o rasgaram, existindo a contragosto do próprio ser. Fizeram-lhe as cortes e os cortes, mas não as suturas, essas eu mesmo as faço, enrolando sobre meus braços e pés as faixas ensanguentadas pelos caminhos por onde andei.

E isso por quanto tempo? Vinte e cinco anos, que dor admitir! Um quarto de século rodopiando sem sentido por aí, um quarto de século em busca de um sentido que nem sei se existe. A única coisa que sei com certeza existir é esse ciclo interminável, essa samsara, que tento a todo custo romper, superar, mas que continua a me lançar continuamente em suas existências violentas e pueris.

Infelizmente, meus amigos, não há o que comemorar. Envelhecer sem saber das respostas, sentir-se preso, observar a volúpia vazia e sem sentido dos divertimentos do mundo. Os bloquinhos, o álcool, tantas fugas da realidade cruel e desesperadora. Um medo compartilhado por todos mas admitido por poucos, aqueles poucos que conseguiram ao menos despertar-se para perceber que, na verdade, não há o que se comemorar. Se bem entendêssemos o mínimo que se passa ao nosso redor viveríamos eternamente de luto. E, do que vejo ao meu redor, com as raras exceções de alguns poucos cristais de pureza e singeleza aos quais sou grato por trazerem um pouco de luz a essa escuridão, não vivo de outra maneira senão que de luto, por todos esses anos sem rumo. Culpa de minha inépcia disfarçada de inteligência? Muito provavelmente.

Minha única esperança de romper com esse ciclo ainda é meu primeiro plano. Adquirir alta cultura, me adentrar nos caminhos da alta filosofia, compreender o que a maioria ignora e, de algum modo, mesmo que a custa da sanidade e do sossego, conseguir quebrar essa roda da fortuna, lançando sobre ela a espada do conhecimento, a única coisa que parece valer o esforço nessa existência. Quem sabe assim supere o samsara, e adentre os mundos superiores daqueles polímatas que, um dia, traçaram o mesmo caminho. Quem sabe me junte, ao fim deste século, numa longa conversa com meus mestres, Platão, Aristóteles, Agostinho e Tomás, ao redor de uma mesa, onde finalmente terei alcançado o hiperurânio, no sobrecéu das ideias perfeitas e eternas. Eis, ao cabo de meus vinte e cinco anos, a minha conclusão: contradições, medos, inseguranças e um uma ponta de esperança. E que esperança? Ser contado em meio a assembléia dos sábios, ainda que no lugar mais humilde, ao alcance de vozes tão poderosas que quebraram as barreiras do tempo para me seduzirem com seu conhecimento, tantos séculos depois e, quem sabe, inspirar outros a seguirem pelo mesmo caminho.

É, acho que estaria mentindo se dissesse não ter nenhum rumo. E o tenho comigo, o tempo todo, embora distraído pela fumaça do modernismo do mundo que há todo momento tenta fazer com que esqueça do que é importante realmente: a eternidade, usar as coisas que passam para abraçar as que não passam, o conhecimento que não se perde na morte, mas que se integra nesta mesma eternidade. E o mais que faço, não vale nada! 

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