terça-feira, 23 de junho de 2020

Abrigo


Existem percepções fugazes, que vem e vão num piscar de olhos ou menos. A duração dessas, no entanto, não dita a profundidade com que elas se marcam em nosso peito. 

Era só mais uma reunião comum, brincadeiras, sorrisos, abraços. Eu usava meu pijama cinza, fazia bastante frio lá fora, e por vezes uma lufada de ar gelado entrava pela pequena abertura da janela e nos fazia arrepiar. 

Embora aquele fosse um momento como tanto outros, eu não me sentia ali. Estava preocupado com outras coisas. O que fazer com aquele amigo que há muito não me responde? Como melhorar para cantar na missa do fim de semana? Como lidar com os sentimentos confusos que habitam dentro de mim? 

Eu levanto o meu olhar e vejo alguém cujo coração eu desejo conquistar, mas ao mesmo tempo o olhar dele passa por sobre mim e pousa noutra pessoa. E então eu olho ao meu redor, e constato o peso da minha presença, naquele meio, nessa casa. 

Neste instante me vem a mente a frase do Príncipe Desconhecido, da ópera Turandot "Não há exílio para nós nesse mundo." E é com a mesma tristeza na voz que ele o diz que eu o constato, e essa constatação mais uma vez me corta como aço frio. Me sinto não só frágil e incapaz de mudar essa situação como absolutamente dispensável, como se minha presença fosse tão ou menos importante que a das formigas que carregam as gotinhas de caldo de feijão que deixamos cair no chão, na avidez de nos aquecer na noite fria. 

Não há lugar no mundo para mim. Não me encaixo em nenhum lugar e nunca encontrarei ninguém com quem me sinta tão à vontade a ponto de crer que vivemos no mesmo mundo. Não, o mundo em que habito é apenas meu, e é distante demais de todas as estrelas, de todas as galáxias. Aqui só o há o eco infinito de meus próprios gemidos. 

E eu digo que amanhã tudo será melhor, que depois de dormir tudo vai passar. Mas eu não só não consigo dormir como nada melhora na manhã seguinte. Sempre olho a luz do sol entrando pelo vão das cortinas e penso que é um novo dia, o início de um novo dia terrível. Todo dia é terrível. Todo dia eu sinto como se não me encaixasse nem mesmo entre os lençóis de minha cama, todo dia eu sinto como se vagasse sem destino, por um imenso deserto, sem ter onde me abrigar. 

Não há lugar no mundo para mim, pois só há lugar para aqueles que tem um propósito na vida, para aqueles cuja existência faz algum sentido. O que não é meu caso. 

Só enxergo o caos. Sem sentido, sem razão. Sem abrigo. Apenas a esperar um não sei quê que possa me mudar, que possa me dar aquilo que busco mesmo sem saber o que é, sem saber se ao menos existe abrigo para mim, em alguém ou alguém lugar profundamente enterrado pelo oceano de areia desse deserto que tornou-se meu coração. 

"Que não seja preciso mais do que uma simples alegria
pra me fazer aquietar o espírito
e que o seu silêncio me fale cada vez mais
pois metade de mim é abrigo
a outra metade é cansaço."

(Oswaldo Montenegro)

Nenhum comentário:

Postar um comentário