quarta-feira, 17 de junho de 2020

Aleatoriedade

Queria me levantar daqui, disposto a fazer as receitas que salvei, quem sabe trocar a playlist por algo mais animado e menos melancólico. Consegui me sentar e olhar no espelho que fica de frente para a cama: rosto inchado de tanto dormir, olhos fundos, a barba que já devia ter sido aparada há dias agora cresce sem controle e já chega até o alto das minhas bochechas, unindo-se com a linha de pelos finos que vêm das minhas sobrancelhas. 

Tentei tirar algumas fotos, fiz algumas poses, mas nenhuma delas me agradou. Pensei em fazer uma maquiagem e, quem sabe, tentar ir lá fora para fazer isso, mas só de olhar para a maleta de maquiagem eu desanimei. Ao meu lado estão dois livros que comecei a ler quatro meses atrás, e quem nem sei quando vou terminar. Até meus óculos estão sujos há dias, e eu vejo um borrão enorme ao escrever essas palavras.

Não vou a igreja essa semana, não consigo, preciso descansar, e mesmo assim não tenho conseguido muito bem. Parece que não existe, para mim, aquele ócio absoluto. Eu sempre preciso estar fazendo algo, me preocupando em resolver algo. Na verdade, tudo o que eu queria era conseguir, por um dia que fosse, não pensar e não me preocupar com absolutamente nada e nem ninguém. Eu sempre tento apagar com algum remédio, mas nem isso adianta pois, logo depois, alguém me aparece e eu preciso fazer algo. 

Mas eu não culpo o outro por não me deixar só, de maneira alguma. Mesmo sozinho eu não consigo fazer isso, sempre algo me preocupa, de um modo ou de outro. 

Não tenho conseguido estudar como gostaria, acho que meu rendimento caiu para menos da metade do que era meses atrás. Será um efeito dessa depressão ansiosa coletiva que a pandemia vem causando nas pessoas? 

Um fato interessante: venho observado como muitos reagem a esse ambiente completamente estranho e assustador a muitos de nós. Alguns tentam se manter informados o tempo todo, outros distam tanto quanto podem das notícias, e outros ainda continuam fazendo festas e saindo como se nada estivesse acontecendo, afora o fato de que agora devemos usar máscaras em locais públicos, não porque é uma exigência sanitária mas sim por ser uma exigência social. O que eu notei é que todos lidam com o medo de uma forma diferente. 

Meu pai assiste ao jornal com o celular aberto em outra página de notícias, e ainda assim acredita em todos os áudios e mensagens do WhatsApp que dizem que fazer gargarejo ou chá de alguma coisa vai tornar o seu organismo imune ao tal vírus. Minha irmã sai dia sim e outro também para festas que todos temos até medo de perguntar onde acontecem. Algumas coisas é melhor não saber, de qualquer forma ela acorda todas as madrugadas com uma baita crise de pânico, e não quer nem ouvir falar em coronavírus. Todos fugimos e nos escondemos de alguma maneira. 

Eu fico no meu quarto, tento me concentrar nas aulas de filosofia, mas não consigo fazê-lo por mais de uma hora. Tenho algumas crises de ansiedade, o estômago dói, a boca fica com um gosto amargo e eu cada vez odeio mais o meu próprio reflexo no espelho. Alguns dias eu uso uma média de dez produtos diferentes no corpo e no rosto e em outros dias eu nem sequer tomo banho. Respondo algumas pessoas com paciência e diligência em ajudar, outras eu só respondo e outras eu nem sequer olho na cara. Me empolguei em pedir para comprarem coisas para algumas receitas no início da semana, hoje já não consigo fazer nenhuma delas. Tenho vivido em certa dose de descontrole. 

Tenho mantido algumas conversas, sobre assuntos aleatórios com um, política com outro... Com outro eu tenho evitado falar, e assim as coisas vão indo. Mas mesmo assim, quando dou uma volta rápida pelo jardim ou olho para o céu, eu ainda me sinto como aquelas nuvens ou como aquelas folhinhas caídas, que se desprenderam e agora vagam sem rumo, sem propósito e, mais importante ainda, sem pertencer a nenhum lugar. 

Sequer consigo terminar de forma decente esse texto, mas isso também pode ser bom, eu também não tenho estado numa forma final e bem elaborada, a aleatoriedade das palavras apenas reflete um pouco da aleatoriedade do meu próprio pensamento. 

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