sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Arte, entretenimento e formação do imaginário

Não é incomum que a gente se sinta engolido pela enorme onda de conteúdos inúteis que a internet nos oferece, que parecem, e muitas vezes são, feitos para que a gente não consiga entender mais nada. E é aqui que a diferença entre arte e entretenimento se faz ainda mais forte. É preciso que o homem de estudos, a pessoa seriamente comprometida com sua educação, se afaste do mero entretenimento e se comprometa com a arte que é capaz de moldar o seu imaginário. 

É através da transformação do imaginário que conseguiremos encontrar aquelas referências espalhadas pelo mundo que possam nos ajudar a interpretar a própria realidade. Tendo uma vida apenas podemos viver pela arte centenas de experiências que jamais viveríamos e assim ir adquirindo a experiência que teríamos se as tivéssemos na nossa própria vida. Uma história de grandes valores, uma música ou uma bela peça acrescenta ao nosso imaginário o que nos falta nas situações cotidianas, e vamos absorvendo isso e nos tornando maiores e melhores. É conhecendo os grandes exemplos de bondade, de arrependimento, de misericórdia e sacrifício que nos aproximamos do bem e que aprendemos a reconhecê-lo quando ele se apresenta a nós no vizinho ou naquela senhorinha que conhecemos na fila do mercado. Da mesma forma ao conhecer a mentira, a maldade, aprendemos a reconhecer e fugir desses elementos quando, em nós mesmos, a falsidade se apresenta como mais satisfatória que a verdade. No fim, voltamos as imagens da Divina Comédia que cristalizam o destino final dessas perspectivas tão díspares e, fazendo o caminho contrário, usando os parâmetros de Dante, vamos avaliando melhor o que vale a pena. 

Por vezes também nos sentimos paralisados quando vemos alguém que sabe mais do que a gente, ou que pelos menos sabe como mostrar saber mais, e isso nos choca e não nos impele a ir adiante. A verdade, quando se apresenta na forma humilde do sábio que reconhece os limites da sua consciência mas que sabe que é justamente reconhecer esses limites que o faz sábio, nos faz querer imitá-lo, é a virtude que se apresenta a nós e nos conquista por, sendo ela um reflexo do que é bom, é desejável em si mesma. Isso quer dizer que quando nos deparamos com alguém que sabe mais do que nós devemos nos encantar com isso e ter a humildade de começar o esforço necessário para também aprender, não para demonstrar saber, mas porque o contato com a Verdade é o que transforma e dá sentido a vida. Isso é crescer. 

Insisto sempre na tecla da boa arte, da alta cultura, de ouvir boas músicas, bons filmes, bons livros, não que os produtos do entretenimento devam ser excluídos de todo de nossa vida, pelo contrário, sem eles não teríamos como comparar o tamanho das grandes obras, mas dessas forma, vendo a ambos temos um panorama completo da coisa, melhoramos nosso esquema de percepção da realidade, nosso senso das proporções. Uma série BL pode me tocar, fazer chorar e até refletir sobre alguns aspectos da minha vida. Pode até me dar uma reflexão maior sobre coisas objetivamente boas, como a bondade de Tofu em The Miracle of Teddy Bear, e isso é arte, mas não o é no mesmo sentido e potência que a toda a concepção cosmológica cristã transposta nas páginas de Tolkien, ao mesmo tempo que não se pode dizer o mesmo da riqueza imagética de Harry Potter mas com uma mensagem pobre e confusa de quem não sabia o que estava dizendo. Uma música do Jeff Satur pode me emocionar e eu canto com frequência, mas não é o mesmo que uma sinfonia de Tchaikovsky que me faz escrever páginas e páginas sobre como aquilo tem impacto na minha experiência humana e como enriquece os meus símbolos. Uma música litúrgica moderna que canto na missa pode me ajudar a rezar mas não tanto quanto um canto gregoriano ou um hino que através de séculos conduziu reflexões e mais reflexões. Mas tudo é válido desde que se dê a devida proporção. Posso cantar um salmo no arranjo da CNBB enquanto limpo a casa e posso cantar gregoriano na missa ou ouvir enquanto rezo. 

O entretenimento pode servir em alguns momentos, mas apenas como isso, entretenimento. A verdadeira arte pode ser entretenimento, e isso eu vejo naqueles que enchem a boca pra dizer que ouvem Beethoven e Vivaldi pra estudar, não confundam as coisas. O beletrista pode usar a arte como mero entretenimento sem aproveitar nada do que ela oferece, apenas como um pano de fundo para as suas reais preocupações. A arte quando apreciada de verdade nos oferece novas possibilidade de linguagem e nos permitem e ler e dizer o mundo de diversas formas. Aquela experiência da Sinfonia Trágica de Mahler jamais poderia ser colocada em palavras, e eu escrevi páginas e páginas sobre ela pra perceber isso, mas ela me oferece a possibilidade de dizer, em palavras (por ser o recurso artístico que uso) outras coisas que se aproximam dela, a minha própria experiência real.

Claro, até mesmo ao diletante a arte de verdade traz benefícios mesmo pra quem a consome apenas como entretenimento. A paciência por exemplo é um aspecto que eu percebo ser melhorado com a música clássica. As pessoas hoje não têm mais paciência pra ouvir uma música de três minutos, mesmo que não esteja atento a todas as nuances da peça alguém habituado a ouvir Wagner ou Bach consegue superar essa dificuldade inicial, ainda que ignore todo o oceano simbólico que há por trás daquilo. 

Mas o que eu quero dizer é: comece, e comece logo! Por uma página, uma música, um filme... E a arte sendo reflexo da verdade vai fazer o resto do trabalho de te conduzir pela mão até a luz. Assim como Deus pede apenas nossa adesão de coração a Verdade (que é o próprio Deus) pede apenas nossa abertura também dos sentidos para que Ele possa entrar e operar a purificação que mais tarde se dará na purificação do espírito. Depois disso, e não muito tempo depois, teremos uma visão diferente do mundo ao nosso redor. O mar se torna um símbolo do infinito, daquela pequena porção de luz boiando no oceano desconhecido, o àpeiron

Se é difícil entender essas coisas de primeira, é complicado começar ouvindo a Paixão segundo S. Mateus do Bach, em quase três horas de execução em alemão, mas podemos começar com um filme mais famoso, onde um professor fez dele uma boa análise dos seus problemas e pontos altos, do simbolismo envolto nas suas cenas. O Prof. Guilherme Freire tem boas análises de filmes como Star Wars, Interestellar, o Princesa Mononoke do Studhio Ghibli, filmes acessíveis onde ele mostra como podemos extrair deles coisas boas que geram reflexões válidas. A plataforma da Brasil Paralelo igualmente no trabalho de trazer bons conteúdos. Mas o importante é começar, não se deixar engolir pela massa que vem sendo lançada diante de nós e enxergar isso apenas como um sintoma da falta de contato com o belo verdadeiro. Um modelo é belo, e eu me encanto com isso, mas não é belo no mesmo sentido que a Capela Sistina ou a Catedral da Sagrada Família. O primeiro me faz pensar no homem belo, no homem que é bom, mas o segundo me faz pensar no homem que é capaz de tocar o transcendente. Não há como questionar a diferença de proporções. 

Por isso faz-se urgente o resgate da alta cultura, mas ao mesmo tempo com o conselho de Goethe "é urgente ter paciência" porque essa formação do imaginário leva tempo, mas precisa começar em algum ponto e, após ter lido muitos livros e entendido um único livro, estamos prontos pra começar a encher nosso imaginário com o melhor que já se produziu. 

Todo esse trabalho de formação do imaginário culmina numa coisa: na condensação das ideias mais importantes, as ideias dos náufragos de Ortega y Gasset, e com elas é que vamos nos apresentar diante de Deus e o que apresentaremos a ele? Que nos comprometemos com a sua Verdade nas mais diversas formas ou que nos perdemos com a mentira e a falsidade disseminada diante de nós?

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Aluno: É normal nos nossos estudos sentirmos ansiedade e até certo pânico quando começamos a perceber a farsa que é o mundo?

Olavo: Perceber isso é parte fundamental da sua educação, porque como dizia Platão: "Filosofar é aprender a morrer". Tudo que estamos fazendo na vida é aprender o que devemos fazer na hora da morte, e ter uma idéia do que se passa conosco na hora da morte. E a primeira coisa é o confronto com a falsidade do mundo. Você está pulando da falsidade para a realidade, porque neste mundo tudo é absolutamente parcial e transitório.

Você conhece tudo só por partes, e essas partes estão continuamente passando e sendo trocadas por outras. Todo nosso conhecimento é deficiente porque o mundo que conhecemos é deficiente. Um conhecimento perfeito só é possível num mundo perfeito, estável, onde as coisas não o enganam, onde elas são o que são de modo permanente. Isso seria o paraíso, e o inferno também. É para isso que estamos nos preparando. Se não é para isso, para o que é então? Para arrumar um empreguinho?

(Olavo de Carvalho, COF, Aula 517)

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Há também o perigo de cairmos no moralismo como consequência de uma falta de conhecimento da verdadeira religiosidade. Acontece que a moral é apenas uma parte que dita melhores formas de viver nesse mundo de modo a evitar consequências que podem nos atrapalhar de algum modo caso as ignoremos a passemos a agir de qualquer jeito. A religião nos liga com um outro mundo maior e mais elevado do que este, portanto mais real do que este porque o contém e o abarca na esfera da eternidade o que vivemos aqui numa temporalidade e numa transitoriedade ínfima se comparada com a eternidade. 

Kant acabou por colocar a moral na base da religião, invertendo completamente a ordem das coisas, e isso foi comprado pelos protestantes e se espalhou por todo mundo ocidental, entrando também na Igreja Católica e reduzindo-a a mera conferente da moral alheia (ou pelo menos é assim que as pessoas a vêm, sendo que isso em nada maculou o verdadeiro papel da Igreja de corpo místico de Cristo). Mas isso fez com que as pessoas, esquecendo ou nem mesmo conhecendo as bases da religião se fiassem somente no aspecto moral da coisa, daí a atenção enorme que se dá aos pecados sexuais como se esses fossem o mais alto grau de imperfeição que um homem pode alcançar. Graças a Kant e outros nomes as pessoas passaram a pensar nesse mundo terrestre antes do outro e, pior ainda, a pensar que só este mundo existe. 

A verdade é que os pecados sexuais, sendo imediatamente perceptíveis mascaram defeitos mais profundos que só a perspectiva com a realidade pode revelar. Se comparado com o código moral os pecados sexuais saltam aos olhos, mas escondem uma multidão de pecados infinitamente maiores que possuem efeitos devastadores na alma. Também isso é algo que se corrige com a formação de um imaginário capaz de reconhecer a proporção das nossas ações. 

Um garoto que entra no banheiro pra bater uma punheta comete o mesmo pecado que alguém que vive como se sua alma não fosse eterna e como se Deus não existisse? Alguém que não enxerga nada de transcendente ao seu redor e que por isso se condena por não conter um impulso qualquer quando, na verdade, em toda sua vida, seus impulsos estão desregrados porque ele não imagina que sua alma possui potencias mais elevadas? 

Veja bem, eu não estou relativizando o pecado e dizendo que não tem problema nenhum nele, mas estou dizendo é que esse tipo de pecado não é, em si mesmo, a causa da miséria humana, mas é um sintoma dessa miséria. Não adianta querer fugir deles especificamente e continuar num universo onde apenas a miséria impera, mas, conseguindo recorrer a reinos superiores, compreender a miséria e fugir dela colocando esses pecados em seu devido lugar a superando-os facilmente, ao ordenar a mente e a alma, que os rejeitará de pronto ao ver que eles em nada acrescentam a busca pela Verdade.

Daí a necessidade de refugiar a mente num imaginário que nos ajude a colocar as coisas em suas devidas proporções e, a partir daí, ler a realidade de um ponto de vista mais abrangente e não de uma perspectiva fechada em si mesma que coloca um pecado sexual qualquer, que pode ser apenas um desvio da vontade sendo antes um sintoma do que uma causa desse desvio, como sendo pior do que o de ignorar a existência do próprio Deus e a nossa alma imortal. O imaginário forma a lente e o foco com que enxergamos a realidade, quanto menor menos enxergamos e mais cegos ficamos aos verdadeiros perigos que se se disfarçam e são, como nos alerta São Paulo, forças espirituais do mal espalhadas pelos ares. 

Formemos o imaginário deixando-nos levar pela Verdade contida na Arte verdadeira, que ela nos puxe pela mão e nos mostre a Beleza ali contida. Sem pressa ou desespero, mas na paz que ela é capaz de proporcionar ao nos revelar a imensidão que há na eternidade e que nos espera. 

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