segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Mais uma experiência memorável

Mais um domingo terminando de forma melancólica e, hoje além do clima nublado que já percebi ser quase permanente aqui em Joinville também se deve ao fato de ter passado o dia assistindo uma série que contava sucessivas histórias tristes, embora com os olhos cansados da exposição as telas o dia inteiro eu me sinto pelo menos um pouquinho mais rico com as coisas que vi. Das muitas coisas que vi hoje, mais uma vez me marcou a profundidade do roteiro de 180 Degree Longitude Passes Through Us, que eu inclusive já comentei há alguns dias mas que me obriga a retomar. 

Esse quinto episódio foi construído de forma magnífica e a força das cenas principais me deixaram completamente extasiado com a potência sugestiva de suas palavras. Inn continuou contando a Wang sobre seu passado com seu pai e o início do relacionamento deles com sua mãe, sobre como eles ficaram amigos, como ela se apaixonou por Siam e como ele resolveu se afastar deles. A fala dele carregava tanto sentimento, tanta dor pelo afastamento e pela morte do Siam que era quase tangível, tanto pro Wang que o fitava vidrado quanto pra mim que assistia. Quando ele se entregou as lágrimas e disse que não amava simplesmente o outro, mas que o adorava, admirando-o em todos os aspectos, foi como se ele revivesse ali tudo o que acontecera no passado, e eu imagino como deve ter sido para ele dizer aquelas coisas com Wang ali na sua frente (na série Wang e seu pai são interpretados pelo mesmo ator, Pond Ponlawit).

Mais tarde, com eles na cama, a série conseguiu chegar a um outro patamar. Inn disse que sentia como se Siam estivesse ali com ele, e mais uma vez a expressão corporal e o peso das palavras dele deram a cena um tom poderoso. Wang, por sua vez, disse que não via seu pai no outro, nem sentia que ele estivesse lá fora, mas que ele estava ali com ele mesmo, e então veio algo que deixou claro como ambos se sentiam ali numa cena de simbolismo belíssimo: Wang estende o braço, deixando-o livre para segurar a mão de Inn, que por sua vez toca o coração apertado como se a dor estivesse se manifestando fisicamente. Mais uma vez o símbolo da ponte, onde um deles estende a mão para o outro. No fim, quando ambos adormeceram, as suas mãos estavam finalmente mais próximas, praticamente conectadas, como Wang disse que se sentiu antes de adormecer. 

No dia seguinte Wang conta a Inn uma história de quando estava no internato, e de como ele se aproximou de um garoto lá. Essa foi outra cena forte pra mim porque a forma como ele conta essa história, a raiva em suas palavras e seu olhar ao descrever como era a violência que ele sofria e como seu amigo sofreu depois foi um verdadeiro espetáculo, e depois como ele chorou ao contar como foi doloroso ver o outro sendo machucado, e de como ele o ajudou e isso os aproximou, terminando com o amigo declarando seu amor a ele, e agora Wang já menos exasperado contando essa parte... A cena foi construída de jeito a mostrar uma subida, com Wang aprendendo a se defender, vendo o outro mais fraco sofrer e indo atrás de ajudá-lo e então novamente descendo quando eles se afastaram e cada um seguiu por um caminho distinto. 

Descrevi brevemente essas cenas e esse nem era meu objetivo, mas a minha deficiência expressiva continua e eu não conseguiria falar sobre elas de outro modo. O ponto em questão é como eles conseguem mostram, com tamanha intensidade, os sentimentos que há dentro de cada um. Seja um olhar profundamente triste, misterioso, uma lágrima pesada ou a forma como a mão treme antes de tocar o outro, tudo é construído de forma a montar uma cena que, como disse no início, arrebata quem assiste de um jeito que nos colocamos no lugar dos personagens e aquelas experiências, doloridas e que pouco a pouco vão compondo o quadro da história, vai se compondo também dentro de nós.

Mais uma vez torno a falar do poder que essa arte tem sobre nós, nos fazendo ver o mundo de outro ângulo, aqui trazendo um drama possível, quem nunca passou por medos? Dúvidas profundas que sequer conseguimos expressar em palavras? Quantas vezes nos afastamos porque achamos que seria melhor assim? Quantas dores escondemos e que só revelamos depois de tantos anos porque nem mesmo entendíamos quanto o porquê doíam?

E então vem esse embevecimento, essa estupefação diante da obra, nada diferente do fim da execução de uma grande sinfonia ou de quando terminamos de passar por uma exposição de arte, aquele silêncio de quem espera que todos aqueles estímulos, que todas aquelas imagens se condensem, se decantem na nossa alma antes de conseguirmos voltar a falar. Tenho uma gravação do Claudio Abbado regendo magistralmente a 6° Sinfonia de Mahler, "Trágica", no Lucerne Festival em que ele mesmo fica alguns minutos em absoluto silêncio após o fim da execução da peça e, só então aí, quando ele abre os olhos emocionado e acena para os músicos é que irrompem os aplausos que prosseguem por vários e vários minutos. É desse estupefação, não simples afetação, mas sinal de uma alma que foi transformada pela obra contemplada, é disso que eu estou falando. 

Muito disso também vem do fato de que estamos pouco habituados a experiências de beleza genuína, a apeirokalia de que falavam os gregos, e por isso acabamos assim, tão encantados com esse tipo de coisa, mas é bom, é bom que isso tenha chegado a olhos que normalmente continuariam perdidos e que isso possa despertar um sentido de buscar sempre coisas melhores e que nos elevem cada vez mais. 

Assim também tem sido essa experiência para Wang e Inn, juntos e sozinhos naquela casa no interior, sendo transformados pela experiência de falar e de se deixarem levar por tudo que guardaram por tanto tempo que nem sabiam que ainda estava lá. E então eles compartilham também momentos de silêncio, onde tudo isso reverbera, e mais uma vez os transforma de dentro pra fora, ambos sendo transformados pela experiência de estarem juntos. É belíssimo, simplesmente. 



2 comentários:

  1. Essa série tem uma carga emocional muito grande que mostra o que acontece com mutas pessoas na vida real, eu fico impactada com a atuação dos atores em passar suas estórias, compartilhando sentimentos e emoçoes, cada ep meu coração quase para, preciso de um tempo para respirar e pensar, pois me emociona e muito.

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    1. Somos dois, eu fico parado um tempo, tomo um gole ou dois de vinho, pensando no que acabou de acontecer.

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