terça-feira, 27 de setembro de 2022

Mais do que palavras

Ontem pouco antes de dormir eu assisti a um episódio de uma série japonesa que foi lançada recentemente e que, por vários motivos, me chamou a atenção, mas eu gostaria de falar de um aspecto em específico que achei de uma beleza poética muito valiosa. Em resumo, porque isso não é uma resenha, a série conta a história de uma garota que, traumatizada com os homens por causa do pai que a abandonou e o namorado violento, se vê consolada por um colega de classe muito popular. E então ela assiste ao romance que surge entre ele e o colega de trabalho de ambos, um homem um pouco mais velho que se descobriu gay há pouco tempo. 

Em vários momentos, mas especialmente no fim de cada episódio e durante a apresentação dos créditos, os personagens são mostrados em situações cotidianas, sem diálogo, por alguns minutos. O espectador desatento pode pensar que foram cenas gravadas apenas pra apresentação dos créditos mas, depois de ter contato com outras obras japonesas, embora o recurso seja também usado em todo cinema e televisão mesmo que nem sempre com a mesma profundidade, eu percebi que trata-se de algo bem simbólico.

Um outro artista que faz uso desse elemento em suas obras é o diretor Hayao Miayazaki, muitas vezes em seus filmes do famoso Studio Ghibli os personagens dão uma pausa na ação do roteiro e fazem algo aparentemente desconexo com a história que estava sendo contada. Temos personagens sentados num vagão de trem, ou à beira de um  lago olhando um jardim, esperando um ônibus ou pássaros voando e as nuvens passando. Em uma entrevista o diretor explicou que isso é um conceito que em japonês chama-se Ma (não vou colocar os caracteres aqui mas em japonês é uma junção dos caracteres de Portão/Porta e Sol, e juntos significam Vazio). Ma então é esse período vazio, não necessariamente sem ação mas que apenas é um contraponto daquela ação que a linha principal da história passa. 

E ai, voltando pra série, entra a beleza desse recurso: o vazio em questão faz referência justamente as palavras que o compõem. Uma porta aberta é, por definição, um espaço vazio, mas é por esse espaço vazio que passa a luz do sol. Ainda que definida pelo tangível, o material que compõe a porta, é o intangível que lhe dá significado. 

Claro que os diálogos, os olhares e toques discretos dos personagens são importantes, são eles que compõem o núcleo da história, mas se eles refletem os momentos de intensidade de cada são os momentos em silêncio, correndo pelas ruas da vizinhança ou brincando com os amigos no parque, que fazem esses momentos intensos serem depurados pela alma de cada um. Num dos episódios, após um diálogo bem difícil, os dois rapazes, Eiji e Makio (interpretados respectivamente pelo belíssimo Nakagawa Daisuke e o fofo Aoki Yuzu) se deitam, conversam mais um pouco e dormem, mas a cena dura uns bons minutos. 

Novamente, para um espectador acostumado com séries e filmes onde tem ação a cada segundo, coisa também presente em desenhos animados, onde os criadores têm medo que as pessoas fiquem entediadas e mudem de canal ou acelerem a cena, isso pode passar despercebido ou soar excessivamente chato, até pedante talvez. Mas esse recurso, bem utilizado como vem sendo, pode dar todo o toque de sensibilidade que da o tom para a obra. 

Assim como numa música as pausas são tão necessárias quanto as notas, como por exemplo na abertura do Prelúdio de Tristão e Isolda onde há o uso da fermata que traz ainda mais dramaticidade ao conjunto da obra, esses momentos servem para que os personagens, e nós, consigamos compreender o que foi dito e feito nos outros momentos. É um parar pra respirar, como na música cantada, mas que tem um significado profundo: é desse respirar que puxamos o fôlego pra frase seguinte. 

Eiji disse o que sentia a Makio, que ainda está confuso. O mais novo disse que não se interessava em sair com as meninas do colégio mas que se saísse com ele poderia se interessar. E então eles dormiram, um deles acordando mais tarde, pensativo. E esse silêncio foi de novo profundamente significativo. Embora nenhuma palavra tenha sido dita ele revelou a insegurança do mais velho, a confusão do mais novo, a profusão de pensamentos de ambos imaginando o que poderia acontecer, o passado em perspectiva, o futuro incerto... Tudo isso numa cena de um menino com a cara no travesseiro e o outro sentado apreensivo ao seu lado, depois ambos deitados. Muito foi dito sem nenhuma palavra. 

Gosto muito de como essa linguagem pode ser usada, especialmente em tempos em que tantas coisas dizem e mostram tanta informação que, na realidade, contém pouco ou nada de significado. Apenas uns poucos gestos, um olhar, um toque, já diz muito nos dá toda uma constelação de significados, e observar isso atentamente é um grande enriquecimento pra forma como vemos, nos expressamos e interpretamos. Elas vão, como ensina o professor Olavo de Carvalho, "se incorporando para sempre à intimidade da sua paisagem interior." 

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