segunda-feira, 31 de março de 2025

Não Pergunte


E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,

(Carlos Drummond de Andrade)

Foram vários sorrisos, encantadores eu diria, alguns abraços apertados e até um beijo, meio atrapalhado. Por alguns brevíssimos instantes, enquanto isso acontecia, era como se aquela barreira, aquele Campo de Terror Absoluto, fosse desfeito, e então, eu pudesse tocar, ainda que de modo superficial, nesse grandioso e quase infinito, imensurável oceano da consciência do outro. 

Mas era apenas ilusão, um engano de percepção, a rápida euforia me deu essa impressão, movida pela carência, pela sensação do nada, do vazio (não, eu não li o Seminário Crítico XIX de Lacan, onde ele introduz a noção de vazio distinguindo-a da "falta" e do "nada"). Essa carência sempre faz isso, sempre. Faz ver afeto e proximidade onde não há. 

Depois, cada um foi para sua casa, eu não saí para beber como planejara, e as despedidas, pelo menos as minhas, foram rápidas, como se eu não passasse de um conhecido que, por acaso, estava ali, e era exatamente isso. 

É sempre isso. 

E então eu passei o dia seguinte inteiro na cama, não conseguia me mover. 

O dia inteiro

de nada

nada

nada

do mais absoluto 

e completo vazio.

Eu queria assistir, queria sair e tomar uma cerveja com algum amigo, queria ouvir música, em alguns momentos sentia essa vontade, mas eu não conseguia fazer nada disso, ela era engolida novamente pela escuridão, eu sentia como alguém tentando nadar contra a força invencível do oceano. Era apenas um corpo inerte, pesado, e uma mente vagando num deserto de sal, 

frio, sem ninguém, 

no coração de um mundo desabitado.

Quando já era noite eu precisei tomar energético para conseguir ter alguma disposição, por mais artificial que seja. Só então consegui, depois de muito esperando algum resquício de energia, fazer alguma coisa.

Sinto-me num pêndulo, como quem vive e morre várias vezes ao mesmo dia, eterno retorno, um inferno fechado em si, como o ourobouros que trago marcado ao peito. Naquela época eu não imaginava que ele seria tão emblemático.

Se retorno então à experiência daquele dia, e evoco aqueles momentos, felizes, é verdade, porém fugazes e talvez vazios, mais uma vez eu me dou conta daquela verdade. Aquela, de todas as experiências, me parece a mais brutal, a mais presente, ainda que poucos se deem conta. Ou talvez porque realmente eu seja o único condenado. Não por ser especial, pelo contrário, mas por ser diferente, um abortivo. Daí meu retorno a Instrumentalidade, a minha vontade de, por temer a carência, acabar desejando me tornar um com todos. Não pergunte por que, não existe outra maneira de existir. Mas é algo impossível, embora fosse da mais absoluta necessidade. A única realidade possível, ou que se realizou, é essa de que me dei conta mais uma vez:

"Sim. Existe um vazio bem no âmago de nossas almas. Uma imperfeição fundamental que tem assombrado todos os seres desde o primeiro pensamento. Em um nível primitivo, o homem sempre esteve ciente da escuridão que mora no núcleo de sua mente. Temos procurado escapar desse vazio e do temor que ele provoca, e o homem procura preencher esse vazio." (Neon Genesis Evangelion)

sábado, 29 de março de 2025

Isso

"Red Haired Man on a Chair", Lucian Freud

Sem analogias climáticas hoje, apenas uma grande estafa social, uma enorme vontade de ficar em casa fazendo absolutamente nada, mas, principalmente, sem ver ninguém. Isso justamente no fim de semana em que eu mais vou precisar ver gente. Todo mundo deveria ter o direito de desaparecer por alguns dias sem se explicar de modo algum, 

eu faria isso hoje, 

e amanhã. 

Agora, sim, me veio vontade de assistir, mas não posso virar essa noite, vai ficar para depois, e espero que depois eu ainda tenha disposição, o que é uma parte que falta em mim. 

Diante de um grupo, que nem mesmo é um grande grupo, nem próximo de uma multidão, eu só consigo estar consciente da minha própria individualidade. Como um idiota que só presta atenção no próprio umbigo. Irreparável e estupidamente solitário. 

E é isso. 

Não consigo sorrir como eles, me entrosar como eles, brincar como eles. Parece que não estamos na mesma página, ou no mesmo planeta. Até posso ficar alegre ou sorrir, mas não é mesma coisa. Eles estão sempre lá.

Eu sempre aqui.

Ele me chamou a atenção de novo, e não foi bela beleza do seu rosto e nem do seu corpo, como fez de manhã quando levantou a camiseta, não, foi pelo imenso carinho com que ele olhava o crucifixo, como quem olha para alguém que ama muito. Não tenho como julgar isso, mas, se não é algo próximo de uma experiência mística, é, ao menos, uma importante tomada de consciência, uma daquelas viradas das mais importantes na vida de um homem: a descoberta da cruz.

Não me importei com aqueles duzentos olhares que poderiam nos ver, não somos importantes assim, mesmo que estivéssemos bem na frente. Ele chorava copiosamente, rosto vermelho lavado em lágrimas, então o puxei para mim, o envolvi em meus braços e senti sua respiração arfada, e ele chorou ainda mais. Apoiei minhas mãos em suas costas, e queria dizer com aquele toque que, sempre que precisar, meus ombros estão à disposição se ele precisar chorar.

Espero não acordar ninguém, mas tem uma leve brisa entrando pela porta ao meu lado. São quase três da manhã e estou ouvindo 10cm e Kim Sung Kyu, mas não consigo definir exatamente o clima da noite. Acho que fiz isso tudo porque queria ficar ao lado dele, ou só ao lado de alguém, isso me parece mais correto. Talvez o clima seja o do vazio de perceber que de nada adiantou, no fim, ele foi atrás de outra, como todos os outros. É, talvez seja isso.

Solidão, 

e nada.

"Enquanto uma chora, outra ri; é a lei do mundo, meu rico senhor; é a perfeição universal. Tudo chorando seria monótono, tudo rindo cansativo; mas uma boa distribuição de lágrimas e polcas, soluços e sarabandas, acaba por trazer à alma do mundo a variedade necessária, e faz-se o equilíbrio da vida." (Machado de Assis)

quinta-feira, 27 de março de 2025

Essa coisa de distância

Penso se quem inventou essa coisa de distância tinha por objetivo esse aperto no peito. 

Uma mãe sentada na varada, a casa vazia e silenciosa, ela ouve o sino da igreja, já deve ser meio-dia, e os trabalhadores param para tomar seu almoço, mas seus filhos se foram, não há razão para fazer comida como antes, quando todos se sentavam ao redor da mesa contando como fora o dia. Os mais novos contavam das lições da escola, ou das brincadeiras com as crianças da vizinhança. O mais velho falava da beleza da jovem que se mudara para algumas ruas ali perto, o marido ouvia e sorria, até pigarrear e todos se silenciarem para a oração, antes de recomeçarem o falatório. 

Agora ela está ali, sozinha, e nem consegue mais dizer para onde foram todos eles. Segura um livro ao colo, Proust talvez, já nem lembra mais, pois parou de prestar atenção há muito tempo, e o deixa se fechar, adormecendo lentamente no que será mais uma tarde solitária, seguida de uma noite solitária e mais e mais dias solitários, até que, minguando suas forças, encontre um fim solitário, descansando solitária na terra, sem saber se algum deles vai voltar. 

Em outro lugar, debaixo de um sol ardente, um velho senta-se à sombra de uma bananeira, apoia-se num tronco seco para comer uma marmita que preparara de manhã cedo, antes que o dia clareasse. A enxada apoiada na árvore e as mãos, grossas e cheias de calos, tremendo, pela idade e pelo esforço. Não tem espelho, mas, se tivesse, veria cada ano debaixo do sol vincado nos sulcos profundos de sua pele maltratada. Foram muitos anos, já nem os conta mais. Apenas observa aquela terra que constantemente precisa ser cuidada, se estender num tapete marrom quase infinito. Ele seca algumas gotas grossas de suor do rosto antes de começar a comer. 

A saudade não tem uma forma, mas se personifica em episódios assim. Eu me vejo assim, de algum modo solitário com um livro ao colo numa casa sozinha, ou sentado a olhar apenas o trabalho infindável na minha frente. 

A minha saudade tem nome e sobrenome, se manifesta num aperto triste no coração que dura o dia todo e se intensifica à noite, quando, sozinho, preciso dormir. É vazio, e dói ainda mais quando me lembro que ele não deve sentir o mesmo, que não deve querer me abraçar e ficar ao meu lado. É como se deixasse cair o livro, ouvindo o sino da catedral, uma procissão passa ao fim da rua, e eu não consigo me levantar porque não há braço em que me apoie. Talvez seja melhor apenas fechar os olhos e apenas adormecer. 

Penso se quem inventou essa coisa de distância tinha por objetivo esse aperto no peito chamado saudade.

Estou só e sonho saudade.
E como é branca de graça
A paisagem que não sei,
Vista de trás da vidraça
Do lar que nunca terei!

(Fernando Pessoa)

quarta-feira, 26 de março de 2025

O mundo, os gênios, e eu

Percebi, muitas semanas atrás, que venho preferindo iniciar meus textos com uma breve descrição do clima, numa tentativa de encontrar certa relação entre o tempo, o céu, a temperatura, e o meu estado mental. Não é naquele erro comum, como se o mundo refletisse meu interior, não, não é assim. Olhando o mundo, e como ele se expressa das mais diversas formas, eu busco formas de explicar o meu interior. 

Finalmente as estações mudaram. Os dias quentes, abafados e úmidos agora dão lugar a uma brisa fresca que sopra no início de cada manhã. O sol pode ainda brilhar com força em alguns dias, e queimar com violência, com a ausência das nuvens, mas com a diminuição da umidade não se torna tão desagradável assim, tornando possível passeios e momentos de tranquilidade, como sentar-se a calçada e ver as pessoas passarem, algo que há muito já não se faz, como diz na música do Pe. Zezinho onde "na varanda, meus compadres e comadres tiram prosas repartindo as esperanças."

Me recordo então das variações presentes nas sinfonias de Mahler e, mais recentemente familiarizado, Shostakovich. Expressões de alegria, de resiliência que se contrastam com atmosferas de intranquilidade, explosões de fúria e patriotismo, verdadeiras guerras, políticas ou apenas dos sentimentos conflitantes da alma humana. A esperança pela redenção que perpassa o caminho de Dante e Fausto nas Sinfonias da Ressurreição e Dos Mil de Mahler, ou aquela complexa rede relacional entre cada homem e o regime soviético na Sinfonia Stalingrado de Shosta. 

Penso ainda nas intrincadas relações de cada um desses homens, ainda que tivessem visões que hoje nos parecem equivocadas. Beethoven e sua sinfonia Eróica com seus ideais revolucionários em apoio a Revolução Francesa que, hoje sabemos, teve consequências desastrosas em todos os aspectos da vida humana. Mas esses homens tinham ciclos relacionais imensos, alguns frequentavam cortes, bailes, conheciam os principais intelectuais da época, nas mais diversas áreas, para além da música, como a literatura, a filosofia...

E então eu percebo o meu círculo diminuto, e me pergunto se isso se reflete na minha obra, ainda em gérmen, e em como ela gira apenas em torno desses pequenos problemas, imaturos, que nada se parecem com a luta de um homem. Qualquer um com maturidade deveria ser capaz de resolver tudo em poucos minutos, e essas coisas ocupam espaços enormes na minha mente, e no coração.

Fiquei feliz, brevemente, que um jovem rapaz veio falar comigo ontem no CAPS. Me assustei quando o vi sorrindo na minha frente, e me tocando com a mão pequena e fria, embora seja maior que eu. 

Algo simples, pequeno, mas algo. 
Numa vida vazia, 
numa existência sem nenhum propósito, 

qualquer coisa pode ser algo.

Achoo que hoje deve permanecer fresco e nublado o dia todo.

"O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis carro, navio, terra.
Mas tens um cão."

(Carlos Drummond de Andrade)

terça-feira, 25 de março de 2025

Universo Possível


Eu sigo o meu caminho incompreendido
Sem crença e sem amor, como um perdido
Na certeza cruel que nada importa.

(Vinícius de Moraes)

De novo aquele cansaço extenuante, dores abdominais que, em mim, são sinais de ansiedade grave. A cabeça dói e pesa de sono. Os últimos dias foram de muita tensão, como uma guerra sendo travada e várias outras em prenúncio. Mas já não consigo lidar com todas, no fim, só quero encostar a cabeça um pouco, queria também abraçar aquele corpo branco, nu, também a me abraçar e beijar e apertar aquele bumbum redondinho e gozar e enfim adormecer. Porém, esse corpo na realidade se encontra distante, fugidio, inalcançável. 

Talvez nem mesmo exista.
Talvez eu também não exista.

Por isso acho que talvez nem eu mesmo exista. Aos poucos vou sentindo os limites da minha mente se dissiparem, como se eu me expandisse, mas não abarcando tudo, e sim desaparecendo, como uma lufada de fumaça que se dispersa até que não se veja mais nem mesmo os fios mais finos.

Só poderei dormir, numa cama que mais se parece com agrestes escarpados de tão vazia, ou melhor, sem a presença dele. Sem a presença de ninguém. Essa sensação, essa ausência, esse nada, cada dia mais familiar, mais marcada em mim do que essas tatuagens que trago ao peito, parece que também suga por algum buraco negro, toda força e toda vontade, deixando apenas menos do que metade, na frialdade de lágrimas melancólicas de soledade.

Em algum universo possível, bem distante daqui, passo lentamente os dedos pelo seu corpo nu, a luz do sol filtrada pela cortina branca ilumina todo o lugar, um santuário, ele, que minha mão toca preciosamente, meu grande tesouro. Mas só num universo muito longe daqui. Não no meu universo real, aqui.

Às vezes vem cantando um passarinho
Mas passa. E eu vou seguindo o meu caminho
Na tristeza sem fim de uma alma morta.

(Vinícius de Moraes)

sábado, 22 de março de 2025

Canções de Morte

Iniciando a manhã do modo mais dramático possível, ouvindo as canções de morte da Sinfonia N° 14 de Shostakovich, tomando chá de oito ervas, aproveitando o início fresco do outono, antes da tarde mais quente. Hoje admito que vou dormir sem nenhuma razão. Eu sabia que isso acontecer. Já há muito sou um dependente desses remédios, e então isso acontece, eu só não quero. Torço para esquecerem do ensaio, torço para esquecerem até de mim, que eu aproveite essa leve brisa e o sol brilhante, em contraste com o azul-claro opaco do meu coração, e o mais que faço não vale nada!

I

Perdi o rumo completamente
como se acertado por um golpe forte
seco, no alto da cabeça
me derrubando a rolar em pedras

Dei-me conte do corpo cheio de dores
escoriações, sangue quente a escorrer de minha cabeça
e meu inimigo do alto do monte a encarar silenciosamente
e a minha visão turva, ouvindo o rio próximo gritar

O mesmo rio que tantas vezes me alegrou
com sua cor e seu correr alegre
agora me agitava o sangue ameaçadoramente
como se apenas o seu grito fosse me devorar

II

Choro de criança
dolorido
tão inocente quanto seu riso
mas carregado

E o homem
o que tem ainda dentro de si
algum coração a sangrar
chora junto sem cessar

Apieda-se
comove-se
inquieta-se
adquire ânsias de herói

A querer salvar 
a frágil criança
e consolá-la em seus braços
acalmar de seus pesadelos

Mas ao homem
que tem ainda dentro de si 
um coração a sangrar
o choro do inocente é esse sim, o pesadelo

sexta-feira, 21 de março de 2025

Olhar de Ligação e Olhar Nenhum

"Aqui, olhe para mim. Qual o seu nome? 

Respire. 
Devagar.
 Você está respirando errado. 

Devagar. 
Aqui..."

(Top Form The Series)

Controlar as emoções não é uma tarefa fácil, nunca foi. Controlar emoções que não são suas, imagino que deva ser ainda pior. 

Ou não. 

O fato é que aquele veterano conseguiu, por meio do olhar e da respiração, controlar as emoções do mais jovem, sem perceber ele mesmo, que ao fazer aquilo, ao sincronizarem suas respirações, tocava profundamente seu coração, criando entre eles um vínculo que só mais tarde ele perceberia. Ali estava traçado seus destinos, ligados por algo tão forte que não pode ser chamado de emoção.

Os olhos de ambos carregados de lágrimas, pesadas, que desceram marcando uma linha fina, dourada, que brilhava com o sol que já se aproximava do poente. Essa linha, ao descer, apontava para o coração de cada um, indicando de que natureza era aquele sentimento de ouro. Depois daquilo nada mais seria igual. 

Um homem que há anos vivia sem viver, interpretando, sorrindo, fotografando, mas sem permitir que ninguém visse que ele era de verdade. Ninguém via ele fazendo skincare, pois os primeiros sinais da idade já começavam a surgir, ou ele comendo pudim de chocolate como se fosse a principal refeição do dia. E outro que tinha um ar e um olhar apático, para ele tudo sempre estava bem, qualquer coisa servia, qualquer trabalho, e fora parar ali assim, porque o mundo o levou, não buscara a atenção da mídia. Apenas chegou ali. 

Mas agora, olhando fixamente aquele homem, finalmente seus olhos se acenderam, uma chama surgiu, tão brilhante quanto aquele sol poente que lhes beijava a face, deixando aquele que estava à sua frente, como se fosse um deus, envolto num halo de luz, enquanto as lágrimas pesadas caíam. 

Essa visão de tantas emoções, dessa ligação tão forte me fez numa série de coisas que venho descobrindo nesse período de pausa também. Por exemplo, a quantidade de problemas que fui acumulando, eu passei a funcionar pela mera aglutinação deles, sem conseguir mais separar uma coisa da outra.

O cansaço, generalizado do burnout, por exemplo, eu já não conseguia distinguir um dia cansativo porque tinha feito muita coisa e um dia que tinha saído com amigos e me divertido e, por isso, estava cansado. Cansaços diferentes, mas é como se tudo fosse o mesmo, eu só estava simplesmente cansado. 

Quantas e quantas vezes eu deixava a barba crescer por preguiça, cansaço extremo, e parava de me cuidar, ou perdia o interesse em coisas que amava. Com que tristeza eu percebi que já tinha entrado no automatismo ao ver séries, algo que eu amo, que é meu momento de conexão com outro mundo, em que posso esquecer, mas que se tornou apenas uma obrigação. Eu fiz disso uma obrigação como os contatos que precisava fazer diariamente, como as satisfações que precisava dar aos idiotas. 

Tenho prestado atenção no meu corpo, no quanto o machuquei tomando café e chá-verde para ficar acordado e ter bom rendimento e, ao chegar em casa, desabava em cansaço. Prioridades invertidas. E eu continuava gastando, em remédios naturais, em cápsulas de café, óleos essenciais e livros, achando que isso ia me fazer sentir melhor, mas não fazia. E as outras pessoas, que trabalhavam tanto ou mais do que eu, continuavam conseguindo viajar aos fins de semana, ir ao cinema, cafés, e chegavam bem. Então por qual razão só eu estava assim, tão exausto sempre?

E ainda tentaram colocar a culpa em mim, sempre. "Você não faz exercícios o suficiente, você não come direito". Raça de víboras! Como se eu tivesse tempo fazendo sozinho o que três deveriam fazer, resolvendo problemas que não eram meus, ou melhor, resolvendo não-problemas inventados pelas mentes mais burras que já conheci e que diziam, com um sorriso amarelo, que queriam que eu fizesse isso para sempre. Era, na verdade, um sorriso de quem desejava ver minhas forças consumidas em nome de seus excessos. 

E agora, afastado por incapacidade, nem mesmo um olhar de desprezo. A utilidade se foi não é? Nesse tempo tento seguir o conselho do poeta e dormir, já que perdi os amigos, não tentei nenhuma viagem e nem tenho terra, carro ou navio.

"Teu mais ligeiro olhar facilmente me descerra
embora eu tenha me fechado como dedos, nalgum lugar
me abres sempre pétala por pétala como a primavera abre
(tocando sutilmente, misteriosamente) a sua primeira rosa
[...] não sei dizer o que há em ti que fecha
e abre; só uma parte de mim compreende que a
voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas"

(E. E. Cummings)

quinta-feira, 20 de março de 2025

Poeira

Não é preciso olhar de perto para notar que a poeira se acumula ao meu redor. Não gosto que entrem no meu quarto, sempre arrumei tudo, mas agora, bem, a poeira tem tomado de conta.

Na filosofia de Aristóteles, potência é a possibilidade de transformação ou de um ser vir a ser, fazer ou produzir. O conceito de potência, nesse contexto, geralmente se refere a qualquer "possibilidade" que uma coisa possa ter. 

Tenho pensado nisso, em como as pessoas ao meu redor encontram possibilidades. Elas encontram tempo, dinheiro e disposição para irem a bares e cafés, todas as sextas e, às vezes, em dias de semana. Vão ao cinema, conhecem novas marcas de perfume, e velas aromáticas, fazem amigos a marcam encontros com eles. 

Enquanto isso, a poeira se acumula ao meu redor.

Tempo, dinheiro e disposição.

Estou de licença médica, o exagero e o assédio me renderam um colapso nervoso, eu não poderia mais ficar lá. Mas isso também significa que meu dinheiro, que já era pouco, diminuiu ainda mais, e a depressão, agravada pelo colapso, me tirou o restante de disposição que me restara. Já não vou mais à ópera ou... Ou... Bem, eu nem sei o que mais eu fazia, acho que nada.

Me recuso agora a aceitar a potencialidade do meu ser. Como sei que aquilo que entra no ser, por um instante infinitesimal que seja, não pode retornar ao nada. Mesmo sendo essa a minha única vontade: retornar ao nada. Portanto, meu ser deseja a inércia. Não podendo não-ser, serei sem ser de verdade, o que já sou: um ser que não é. 

Eu observo uma miragem distante. Nela não há bares e cafés, as cidades estão destruídas, reduzidas a ruínas, já não há cinemas e nem amigos para conhecer, não há sobreviventes. Mas, o que seria o fim do mundo para todos, para mim, já é a realidade, pura e simples. 

Ruínas e solidão, e a poeira que se acumula ao meu redor.

Quando olho ao meu redor, tudo que vejo são pessoas derrotadas, absolutamente vencidas, maceradas pela realidade. Até mesmo aqueles anjos, imagens dos deuses entre nós, volta e meia aparecem deprimidos, isto é, no mesmo estado de colapso que eu, mesmo que tenham peles perfeitas, cabelos impecáveis e talento e amigos que os rodeiam. Ainda sentem o vazio como eu, e desejam voltar ao nada.

Todos os outros estão lutando uma batalha que não podem vencer. Chegam em casa todos os dias chateados e cansados, e vivem apena algumas horas por semana, nas outras são escravos, humilhados e assediados. Não constroem nada de valor. Até mesmo os bilionários, com suas mansões que serão vendidas para o próximo bilionário e o seu dinheiro, os números no algoritmo de algum banco, serão divididos, multiplicados, retidos, distribuídos de forma tão confusa quanto seu corpo será devorado pelos vermes debaixo da terra.

Por isso desisti, comentei com um amigo, dois amigos, na verdade, nos últimos dias. 

Desisti de novos amigos, 
desisti de namorar, 
desisti de cuidar da aparência,
desistir de melhorar
desisti dos sonhos que tinha, 
hoje tão distantes que já nem lembro que sonhava, 
desisti de guardar segredos e fazer planos.

Os dias devem ficar mais amenos a partir de agora, isso vai facilitar muita coisa. 

Desisti de novos amigos, pois parece que não há mais pessoas que buscam conhecimento e que se contentem com a realidade sem se apegar a um sentimentalismo religioso barato, proporcionalmente inverso a religiosidade verdadeira por cultuar o próprio homem e o que sente.

Desisti de namorar, pois as suscetivas tentativas fracassadas tão miseravelmente me fizeram que essa realidade não é para mim. Que algumas pessoas podem encontrar outras que as amem e que se esforcem por elas, mas não eu. 

Desisti de cuidar da aparência, pois é uma luta perdida. Alguns até podem se dar bem com cosméticos e procedimentos, mas também já percebi que há um limite para isso.

Desistir de melhorar, não vale a pena querer prolongar essa vida.

Desisti dos sonhos que tinha, hoje tão distantes que já nem lembro que sonhava, pois esmagado pelo dos meus pecados, descobri que o mundo é um moinho, e vai triturar cada um de nossos sonhos.

Desisti de guardar segredos e fazer planos, pois o mundo vai reduzi-los a pó.

Sei bem que muitos podem até questionar: tá, mas qual a importância de tudo isso? De um sentido, de amigos que compartilhem seus ideais, de companhia para a vida? 

Não sei, só sei que ao pensar em todas essas coisas eu sinto algo faltante, como se algo que fizesse parte de mim, já não estivesse mais. E assim eu sigo, sentindo apenas o vazio da parte que falta em mim, e a poeira ao meu redor que se acumula cada vez mais. 

Uma criança inocente segura o meu dedo, mais uma vida nessa existência miserável, pobre condenado.

Depois assistir ao fim de todos os homens, tomados de ódio e ganância, e sento numa pedra, ou no escombro do que já foi um prédio qualquer, ou na minha cadeira de plástico na minha sacada de frente para o mangue. De todo modo só vejo destruição. A poeira se acumulou tanto que toma todo o chão. Acho que isso é tudo que restou. 

quarta-feira, 19 de março de 2025

Rigor

"Teu mais ligeiro olhar facilmente me descerra
embora eu tenha me fechado como dedos, nalgum lugar
me abres sempre pétala por pétala como a primavera abre
(tocando sutilmente, misteriosamente) a sua primeira rosa
[...] não sei dizer o que há em ti que fecha
e abre; só uma parte de mim compreende que a
voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas"

(E. E. Cummings)

Foi um dia quente, não tanto quanto nas últimas semanas, mas felizmente o vento mais fresco do outono que se aproxima torna as coisas um pouco mais suportáveis. Ao menos no plano da temperatura, claro. 

Passei a maior parte do dia deitado, e as poucas atividades que fiz, como programar as postagens nas redes sociais da paróquia e ouvir músicas para sugerir para a semana santa, fiz com grande esforço e o mais rápido possível, para voltar para a cama, mesmo meu corpo já dando sinais de desconforto. 

Venho tentando exercitar algumas habilidades, especialmente a atenção, para conseguir manter o foco nos extremos da depressão e da mania. Comecei a ver uma série, uma das mais dramáticas e emblemáticas para mim, 180 Degrees Longitude Between Us, mas perdi o interesse antes do fim do segundo episódio, ou parece que o energético não fez efeito, talvez porque tenha tomado demais nos últimos dias. Pensei em ver algo da lista de melancólicas séries japonesas ou das belas coreanas, mas acho que já é tarde demais. 

No momento escuto uma partita desacompanhada do Bach, é linda, e não sei por qual razão não a escuto sempre, especialmente na interpretação do Daniel Lozakovich (usando um terno largo demais para ele).

Em dado momento do dia adormeci um tanto quanto revoltado quanto o protagonista de  180 Degrees Longitude Between Us com relação às pessoas que vivem apenas cedendo, sem nunca irem buscar seus sonhos, sendo ele alguém que vai atrás e enfrenta, se revoltando com o conformismo de uma sociedade acostumada com a desigualdade. Mas, noutro plano, como estamos presos aos nossos ideais e não enxergamos as possibilidades que se abrem diante de nós. Como alguém que sonha com a menina perfeita, mas não enxerga que todas as qualidades que projeta nela, se encontram no amigo para quem ele conta seus devaneios. Isso me revolta mais do que o conformismo ou a hipocrisia.

Talvez a única coisa bela agora, já que tirei a série, sejam os lábios levemente rosados, a pele perfeita e o cabelo bagunçado do violinista sueco. Será que ele é idiota assim?

De todo modo, minha revolta também se encontra envolta em conformismo: num pessimismo latente que jamais cessa senão nos momentos de sonhos, delírios infantis, não raras vezes induzidos pelas drogas. 

De fato, o sol amanheceu brilhando com toda sua força e glória, algo que considero simbólico no dia do grandioso São José. Mas como José o tempo está fresco, traz aquela segurança, aquela simplicidade séria. Apenas uma impressão, não mereço ser um devoto dele. 

Já que falei das drogas antes, acabei misturando os remédios diários com mais alguns para dormir. Não comi nada, nada me apetece. Pensei em esperar começarem a fazer efeito para escrever, talvez ouvindo a Trágica de Mahler, mas acabei impressionado por uma das sinfonias da Shostakovich, nome que tem aparecido bastante nas minhas sugestões já que tenho ouvido o primeiro movimento de sua sétima sinfonia quase todos os dias, prestando atenção especial num percussionista lindíssimo se esforçando na pauta da música que exige bastante potência desse naipe.

Não sei dizer se esse longo excurso é apenas uma pausa dramática ou reflexo do meu constante vazio existencial que busca se preencher com qualquer coisa que lhe apareça, mesmo que nenhuma delas seja realmente importante. 

Tudo que posso, e tenho a dizer, é que uma vez mais estou tomado da mais profunda desilusão, e por isso torno a não querer sair do quarto. A mim basta vez o vento farfalhar as cortinas verdes e ouvir músicas de terras distantes. As pessoas lá fora, os homens especialmente, já não me encantam, me causam preguiça ou horror. Sua beleza apenas me recorda que, ou é algo inalcançável a todos os homens e, portanto, não há porque eu continuar a tentar e por isso olho para alguém de aparência perfeita, como Top Piyawat e o comparo com meu reflexo, a barba grande e desleixada, o cabelo oleoso e a pele macilenta, é hora de parar de tentar, ou isso ou essas visões são uma lembrança da finitude, já que todo rosto, por mais lindo que seja, é facilmente desfigurado num acidente ou até mesmo pela putrefação natural da morte. E por falar nela, talvez o que sinto já um tipo de rigor mortis antecipado, já que mais de uma vez me identifiquei como cadáver adiado.

Carrego a mesma vontade de um cadáver: nenhuma. Convites e sorrisos me são tediosos, quero apenas a docilidade dura e fria da minha cama vazia, já nem sequer desejo um ombro a encostar. Tal coisa é demais para mim. Já não ouso desejar mais nada. Até a cerveja na geladeira eu desisti de tomar. Do que ainda não desisti? O que há ainda nessa vida, nessa maldita existência, para desistir?

Perder amigos, amores que passam, não ter terra, carro ou navio, já me parecem até mesmo sonhos de grandes homens, reis, deuses até. Cavaleiros traídos em batalhas, Messias vendidos por moedas de pratas, reis deixados por suas rainhas e que causam guerras e dor em centenas de guerreiros. Não, não sou cavaleiro, nem rei e muito menos deus. Porque é tudo mentira, é tudo uma ilusão. É tudo fruto do desespero de homens como eu que, ao se verem diante da grande muralha da realidade, se frustraram, se apavoraram com a verdade e então criam esses mundos, esses príncipes, essas histórias só são histórias de amor se você não acredita nelas, do contrário se tornam histórias de horror. 

Minha existência pouco a pouco desvanece, como quem olha um reflexo na água que se torna turva. Logo não é mais do que um amontoado de cores sem sentido. Sentimentos sem sentido. Ser sem sentido.

"Amo os grandes rios, pois são profundos como a alma do homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranquilos e escuros como os sofrimentos dos homens. Amo ainda mais uma coisa de nossos grandes rios: sua eternidade. Sim, rio é uma palavra mágica para conjugar eternidade." (João Guimarães Rosa)

terça-feira, 18 de março de 2025

Seguir em frente

Já fazia algum tempo que não chovia.

Algumas pessoas nos fazem bem, simplesmente pela presença delas junto a nós. Não precisam fazer muito. São pessoas de ouro.

Outras nos fazem desejar por sua presença, mas, não raramente, a sua presença causa apenas desilusão, dor. São presenças sem sentidos que desejamos porque acreditamos que serão boas para nós. Mas não são. São apenas um simulacro de bem, uma forma vazia, se olhamos de perto, vemos que em nada nos fazem bem como aqueles que o fazem sem esforço.

Gosto do som dos trovões e das luzes dos relâmpagos. Aqui, de vez em quando, vemos um raio acertar algum lugar. Sorrio imaginando se ganharia poderes se um deles me acertasse. Mas acho que seria apenas fulminado.

Relações são sempre complexas. Me senti chateado com o que acontecera, e todos ao meu redor notaram: eu já não queria mais estar ali. Apenas queria ir embora. Não consegui mais sair de casa depois disso. Queria dar um abraço de desculpa a uma pessoa dourada, mas não foi possível, tinha outra presença inconveniente.

Mas não se engane, leitor, não estou me iludindo de novo. Esse homem já não existe, e até a última desilusão já era mais do que esperada, era desejada, para que pudesse logo seguir em frente. 

Seguir em frente, contra minha vontade, mas seguir, para a próxima desilusão, esperada e desejada. Para que não possa mais sair da cama, para que apague em remédios, para que estrague meu tratamento, para que prove na minha carne, em cada marca e cicatriz profunda, que o amor é apenas uma espada de aço frio a nos cortar.

Tem um rapaz novo no lugar onde tenho feito tratamento, é muito bonito, e também o psiquiatra que me atendeu. Também um paciente, é a segunda vez que o vejo, está no espectro autista, é bem observador, mas não ouvi sua voz, nem tentarei. Assim como não tenho mais vontade de tentar nada. Notei a beleza deles, mas isso é tudo.

Meu corpo todo dói, precisei ir na consulta, e já havia três dias que não saia da cama. 

Já fazia algum tempo que não chovia, agora, pelo som dos trovões, acho que hoje deve chover.

"O adulto é triste e solitário." (Clarice Lispector)

segunda-feira, 17 de março de 2025

Ofuscados

Uma vez mais grande volume de sentimentos surgem no meu peito, 

contradições, 

dúvidas, 

anseios

e uma mente a girar, perdida, por entre imagens. Imagens que muitas vezes eu tentei reproduzir em palavras, imagens que me encantaram, que me desprezaram e que hoje, eu tento ignorar, que me fazem rir ou que simplesmente me são indiferentes. 

Um presente que não foi entregue, nunca viu o sorriso tímido de agradecimento porque nunca existiu, nunca sequer foi comprado. O outro foi entregue, e houve um abraço e lágrimas, mas eu não esperava nada além disso. 

Agora eu sei meu lugar, sei que eu não devo sonhar, nem mesmo ousar imaginar. A criatividade amorosa é para aqueles que estão no mundo. Eu não sou do mundo, sou uma criatura estranha que apareceu aqui, que assiste Yunchan Lim tocar um Concerto de Rachmaninoff às duas da madrugada. Pessoas assim estão fadadas à solidão, e devem se acostumar com isso.

Há dois dias que não saio da cama, e o fiz hoje para contar, pela décima vez para o décimo psiquiatra, a minha história. Não abri os remédios que me deram, não acho que vão funcionar. Assim como os que tomo para dormir já não funcionam. 

Não desisti de comprar o presente, não consegui sair da cama para fazê-lo. Mas talvez fosse apenas o presente para um amigo. Não sei se vou sair da cama amanhã, quando poderia ver algum outro sorriso, mas também, ver um sorriso que nunca poderei beijar me parece um masoquismo que meu corpo, meu coração e minha alma, já não suportam mais.

Sei que deveria amar, amar, amar independente de retribuição. Amar como Cristo amou até mesmo aqueles que o desprezaram. 

"Salvou a tantos e não pode salvar a si mesmo!" (Mt 27, 42)

Mas não, estou muito distante disso e, batendo no peito e gemendo sob o peso dessa constatação, eu não consigo mais amar assim depois do desprezo, do silêncio, da humilhação. 

Mas o sorriso ainda me encanta, e é por isso que eu fujo dele, ao mesmo tempo que quero presenteá-lo, e torná-lo consciente da minha presença, ao mesmo tempo que não quero sair de casa, ou melhor: não consigo, não consigo nem mesmo sair da cama.

Não, não consigo mais amar, não como antes, quando derramava grossas lágrimas por cada um deles, por cada vez que me apaixonava e por cada vez que recebia em troca esse mesmo desprezo, silêncio e humilhação. A palavra amor, tão doce e suave, se tornou amarga para mim, dela eu fujo, tenho horror. 

Um presente que não foi entregue. E nem deveria, porque não sendo presente não deveria me fazer sê-lo. Ganhei um presente: mais uma desilusão.

"O amor e o ódio não são cegos, mas ofuscados pelo fogo que trazem consigo." (Friedrich W. Nietzsche)

sexta-feira, 14 de março de 2025

Enfim

Quero me entupir 

de energético e bolo e assistir anime até amanhecer, 

Quero ignorar 

que amanhã preciso estudar algumas músicas para a próxima apresentação, e que eu sempre preciso fazer algum solo, mesmo sem estar seguro disso. 

Quero dormir e não me preocupar com nada disso. 

Quero ficar longe do celular e não responder nenhuma mensagem. 

Quero ir naquele ensaio e ver aqueles meninos bonitos de novo.

Quero fazer amigos.

Quero não ter amigo nenhum.

Quero parar de tomar remédios para dormir. 

Quero tomar todos os remédios e acabar com tudo. 

Quero terminar as atividades que venho adiando, há dias, semanas, meses.

Quero reorganizar o roupeiro. 

Quero me deitar sem preocupar em cima da pilha de roupas limpas.

Quero ficar deitado até o fim.

Quero acordar, enfim. 

terça-feira, 11 de março de 2025

Nostalgia

"Na sua vida, o pêndulo vai ininterruptamente de lá para cá, entre a exuberância e a melancolia." (Thomas Mann)

Nostalgia. Uma memória afetiva desperta por uma música. Anos que retornam em imagens, manhãs de um sol forte e ar seco, muros altos e dias intermináveis em que minha única alegria eram as séries de toda noite, dentre essas numerosas me lembro a alegria que foi ver o cover de Just Being Friendly, do Tilly Birds com a MILLI, feito pelos meninos de My School President, especial Fourth Nattawat e Ford Alan, e como essa música sempre esteve presente nas minhas playlists desde então. 

Eram tempos complicados, eu estava mergulhado numa melancolia profunda, então muitas vezes eu a ouvi sob efeito de remédios para dormir, nos piores dias que já vivi, em que não queria nem mesmo sair da cama ou abrir os olhos, mas ainda gostava da música.

Recuando ainda mais no tempo, tenho revisto Twelve Kingdoms, sempre durante a noite. Me lembro, a cada fim de episódio, quando toca a música de encerramento, daqueles inícios de manhã, quando ainda estava no ensino médio e acordava cedinho, terminava de ver o episódio e começava Nodame Cantabile, ou Getbackers, no finado Animax, que penso ter sido uma das maiores perdas para a cultura nipo brasileira dos últimos anos. A música tem me dado essa nostalgia nos últimos dias, e acredito que termino a temporada hoje em algum momento da madrugada.

Nostalgia. Momentos tão diferentes, um de depressão profunda e outro em que eu nem sabia direito o que era isso, mas que, em retrospecto, vejo alguns sinais que já estavam lá. Contrariedades também na própria nostalgia. Embora o momento evocado pela música do Tilly Birds seja ruim, a música, o cover, a série e os atores ainda são meus favoritos e contam entre os momentos mais felizes em meio aquela escuridão. E assim eu vou percebendo essas coisas, uma música tocando despertando tantos sentimentos, como a lembrança da depressão mesclada com a mais genuína alegria, simples, de jovens cantando sobre o amor...

Essa é uma das coisas sobre a vida, momentos felizes e tristes. O problema está quando o equilíbrio se perde, e tudo que conhecemos é a tristeza, ou ela começa a turvar os momentos felizes, a torná-los cada vez mais raros. Ou quando as alegrias tornam as pessoas toscas o bastante para não perceberem nada mais do que esses momentos, esvaziando-se completamente.

E então querem que nos curvemos diante deles. Quando nos curvamos o nosso orgulho é ferido, e somos subjugados. Depois de um tempo nos acostumamos com isso e, tão logo isso aconteça sem que nem nos demos conta, nos tornamos seus escravos. 

Mas não nascemos para sermos escravos. Quando admiramos alguém, verdadeiramente, reverenciamos naturalmente, independente do cargo que essa pessoa ocupe. Muitas vezes ocorre de essas pessoas ocuparem altos cargos, como, por exemplo, Bento XVI, a quem eu me sentiria honrado de beijar os pés, indigno de lhe beijar o anel de pescador, e a quem um dia quero honrar, tornando-me conhecedor profundo de sua obra. Mas também podemos admirar aqueles que, no dia a dia suam para alimentar os filhos, como reverencio minha mãe e seu esforço para cuidar do meu sobrinho, donde vejo, ao pensar em Bento XVI, a pequenez de meu pensamento, e ao olhar para minha mãe, a minha debilidade em ajudar o outro, mesmo que o outro seja da minha família. 

Escravos, da cobiça, da ganância, do orgulho que nos faz reverenciar. Das alegrias desmedidas, daquelas coisas tão passageiras e efêmeras que nem podemos dizer que existem de verdade, ao redor das quais muitos fazem todo o sentido de sua vida e que nos escravizam em nome delas.

Tudo isso enquanto ouvia essas músicas.

segunda-feira, 10 de março de 2025

Aqueles olhos

Aqueles olhos contemplam o mundo 
como se tudo fosse a primeira vez, 
com curiosidade imensa. 

Eles brilham, vibram, estão vivos
descobrindo tudo,
os livros nas estantes, os vasos nas sacadas

Olham o céu sem entender as cores
olham as mãos com cuidado e os arredores
as panelas e a vó fazendo um bolo

Outros olhos aqueles vislumbram o mesmo mundo
turvado por um olhar que já teve amores
mas que agora entope-se de comprimidos

Cansado das infâmias nossas de cada dia
turvado por um coração infecundo
que há de dormir panteísticamente dissolvido

O não ser encanta aquele ancestral
que escreveu com sangue sua tragédia
e com lágrimas fecundou o jardim de sua sepultura.

10 de março de 2025

domingo, 9 de março de 2025

Vivo


Eu disse que morreria
caso você fosse embora
pois não haveria 
nada pior que isso

mas houve

eu fiquei
vivo.

(Joab Brandão)

Não consigo imaginar melancolia maior do que sinto agora. Todo meu mundo tem se tornado como um rio de águas calmas e turvas. Essa citação encontrou algo dentro de mim, muito embora eu perceba certa dose de contradição em seu final: 


eu fiquei
vivo.


Fiquei, realmente, mas justamente o fato de ter ficado prova que não foi vivo. Isso porque todos eles, cada um dos que se foram, levaram consigo e jogaram ao vento uma parte de mim. Amigos, paixões, amores verdadeiros. E então eu fiquei, mas não vivo, pois isso não se pode chamar vida. 

É verdade que aproveito uma madrugada fresca, no fim do verão, depois de dias de um calor insuportável, e comentar sobre o clima em si já é um sinal da pequenez de espírito deste pequeno filósofo: projeto no tempo o que sinto. É claro que o mundo ao é parte do simbolismo universal, então pelo menos tenho consciência de que uso o tempo como simbolo e não acho que o clima reflita meu interior, tanto que o calor em nada reflete a melancolia que sentia, encontrando-se muito mais representada nessa madrugada fresca, com os insetos barulhando no mangue ao lado da quadra e as roupas tremulando no varal.

Pois bem, meio que ao modo de Proust, e não de Tolkien, a minha relação com a descrição da natureza, além da claríssima e óbvia debilidade em comparação com esses dois gigantes, é que eu apenas consigo ir até aqui, dois ou três parágrafos. 

Falei seriamente com um rapaz essa semana, elogiando-o por sua postura numa ação que fizemos juntos, porque eu acredito que as precisam ser ditas, e eu acredito, podendo muito bem estar enganado, já que sou péssimo juiz de caráter. Mas acredito que ele agiu daquela forma por estar cheio de sentimentos, e vejo muito isso nele também em outros momentos, já que sua beleza me faz observá-lo com frequência. Ele poderia estar tomado de compaixão, ou de fervor apostólico, caridade, muitas virtudes caberiam aqui. Mas e quanto a mim?

As pessoas ainda me pedem muitas coisas. Talvez elas enxerguem algo em mim. Fazem perguntas sobre liturgia e tantas outras coisas, me pedem para dizer isso ou aquilo porque sentem vergonha. Mas o que eles enxergam em mim? Porque se me vejo ao lado desse rapaz, só enxergo meu completo e absoluto vazio.

Mas ele mudou sensivelmente comigo. Falou comigo numa noite mais do que nos últimos dois anos. Sorriu na minha direção duas vezes e não parece desconfortável. Eu não o acho mais tão ameaçador, e notei que ele emagreceu, será que outros perceberam? A barba rala, por fazer, dando um ar mais velho. Talvez pelo sorriso eu não o ache ameaçador, ou porque ver um homem grande sendo carinhoso com uma senhorinha frágil e sorridente mude a perspectiva sobre a pessoa. 

Identifico também um elemento psicológico aqui de alguém que deseja ser cuidado. Acho que encarnei a pessoa que cuida e toma para si as responsabilidades por muito tempo, mas agora vejo que nada e nem ninguém precisa realmente de mim. Poderia simplesmente desaparecer nessa madrugada fresca, uma ou duas pessoas chorariam, mas logo ia passar, na verdade, eu poderia desaparecer e provavelmente seria até melhor assim. 

Vazio não falta. 

Amor não correspondido não faz falta.

Ainda que pareça vivo.

eu sei que você já se
esgotou
mas, no fundo você ainda 
não desistiu daquela
pessoa
porque uma vez ou outra
ela te fez feliz

uma vez ou outra, vale a pena?

(César Augusto)

Força

Acho que a forma que fazemos isso está errada. Vejo que frequentemente escolhemos alguém e, por algum motivo como a aparência ou a atenção que nos dão, então passamos a projetar nessa pessoa aquilo que esperamos de um ideal: uma parceria, uma amizade profunda, lealdade, intimidade, quando seria mais inteligente da nossa parte encontrar primeiramente a amizade e daí desenvolver a intimidade, mas., se colocamos essa parte em pauta, a ideia é prontamente rejeitada. 

O amor que vem da amizade, construído, que é como uma escada em que dois sobem até alcançar seu cimo, ele torna os dias comuns felizes, ele faz o trabalho ordinário feliz, porque tem um fim feliz: encontrar essa pessoa, que passou do ordinário ao extraordinário, que era mais uma dentre tantas, a única, a pessoa especial. Essa convivência, essa construção, ela se torna uma espécie de força, onde o homem consegue compreender o que realmente importa, o que, em virtude da eternidade, vale realmente a pena. 

Isso faz parte do amadurecimento, essa espécie de aquisição de força, quando o homem vai lapidando-se e deixando permanecer apenas o que realmente importa, passando por cima de todo o resto, toda a banalidade do ambiente ao redor o deixa de atingir. 

Olhando para minha própria biografia, eu vejo o quanto essa banalidade me destruiu, o quanto deixei que ela me afetasse e me deixasse assim, doente, depressivo. Eu me concentrei na aquisição da cultura filosófica, e não na força para seguir a vida advinda da cultura filosófica. Eu não entendi que mais vale ler apenas Platão por vários anos do que saber o nome de dezenas de filósofos. Eu devia me focar em ter ficado mais forte. Agora, fraco e doente, isso é tudo que eu posso fazer. 

Por isso tenho me concentrado nos escritos dos papas, na força dos grandes filósofos, para então, quem sabe, me reerguer e, quem o sabe também, caminhar com alguém. 

Meus planos incluíam beber e virar a noite assistindo, porém, conforme se aproximava a noite eu fui tomado pelo desânimo. Mesmo indo dormir tarde, só pude observar a noite, ainda mais quieta e silenciosa que de costume. Ou talvez o silêncio fosse porque essa constatação me deixou em estado de afetação, estupefato, em silêncio de quem não precisa dizer mais porque seria mais da mesma infantilidade, imprópria ao homem de estudos. Silêncio de quem contempla o horizonte e sabe que precisa ficar mais forte. 

Tudo em contraponto ao homem que sofre por garotos dez anos mais novos que ele, que ainda acredita em besteiras como o amor. Tudo isso é sombra de um homem que se sentou próximo à algumas árvores para sentir a brisa fresca e o perfume das frutas, mas que já não é mais visto ali, já não pode ser encontrado, já não existe mais.

quinta-feira, 6 de março de 2025

Deserto

Não sei bem se compensa vivar a noite para ficar chapado de sono no dia seguinte, mas goto do conjunto: atores bonitos nas séries em roteiros algumas vezes questionáveis, a brisa fresca do verão que começa a dar os primeiros sinais tímidos de querer ir embora, a escuridão entremeada pela luz amarelada dos postes, o movimento das folhas nos jardins da vizinhança, ocasionalmente uma moto passando ou um cachorro latindo, ou correndo na rua. 

Alguém com tantos pensamentos quanto eu, precisa desses momentos, focando nas interações de personagens, nesses detalhes da noite solitária.

Assim como outros momentos, em silêncio ao lado de um amigo no jardim da paróquia contemplando a imagem de São Francisco de Assis em meio a natureza. E isso aconteceu poucos dias antes do início da Quaresma, na Quarta-Feira de Cinzas, o que foi significativo do silêncio e da contemplação desse tempo, muito querido pelo santo de Assis, que pode nos ensinar como viver bem esse tempo de penitência e oração.

Isso me leva a pensar em como as pessoas tem vivido as quaresmas nos últimos tempos. O padre na homilia destacou a importância que os mais velhos davam a essa época, que hoje passa quase despercebida. Ao mesmo tempo, podemos observar o crescimento de novos movimentos eclesiais, novos nomes que prometem uma aproximação da fé. Embora eu acredite que a intenção desses seja boa, válida e necessária, ela é infelizmente diluída numa multidão de católicos sem formação. Então se a pessoa se levanta às quatro da manhã para rezar o rosário, o que é louvável em todos os sentidos, mas ainda discute se deve haver "animação" antes de uma missa preparada especificamente para ser cheia de abusos e exageros litúrgicos sentimentais, isso me preocupa, pois embora o rosário seja uma oração poderosa, a deturpação da Santa Missa pode ser assustadoramente destrutivo e maléfico. Ainda acho que o povo carece de formação. Mas quem quer estudar não é mesmo?

Por isso eu pego meus livros, fico quieto lendo durante o dia, a cada página conhecendo mais da história da cristandade, da minha história, de tantos homens e mulheres que trabalharam pela fé e que hoje são apenas volume acumulando poeira em bibliotecas fechadas. Volto pra casa, e viro a noite vendo série, com o que aprendi no coração. 

Nessa solidão eu inicio o meu caminho o deserto. 

quarta-feira, 5 de março de 2025

Para Sempre

É algo de que tenho fugido ultimamente, ou melhor, pensado em fugir, até porque já não funcionam como antes. Os remédios para dormir.

Mas, ao mesmo tempo, não consigo fugir do fato de que essa vida é insuportável quando sóbria, ainda mais desperta. O sono é a única fuga realmente eficaz dessa existência miserável. Não há outra forma de viver, pelo menos não sem enlouquecer, e sinto que ainda assim eu enlouqueci, enlouqueci completamente.

Por isso me parece melhor simplesmente dormir, como para alguns parece melhor apenas beber ou se drogar. 

É porque olhamos ao redor e tudo que vemos nos entendia. Porque os planos são sempre frustrados, e as pessoas parecem não entender que eu só quero dormir, mesmo sabendo que não é o melhor pra mim e mesmo não querendo isso mesmo. Mas deixem-me com minhas contradições. 

É como olhar aquele jovem, que mais parece ter saído de um filme de príncipes, e saber que jamais poderá tocá-lo, ou sequer aproximar-se dele.

E agora que já me desviaram de meu compromisso, de dormir, já não consigo escrever o que queria, pois as ideias se foram todas. Maldição! Só queria que tivessem me deixado dormir. Será que nem isso eu mereço?

É algo de que tenho fugido, mas, ao mesmo tempo, é tudo que eu quero, sono profundo e silencioso, onde nem mesmo os sonhos me perturbem, me deixando na absoluta solidão onde eu, fera, posso gritar Eu no coração do mundo. Em contrapartida, tomei energético para ficar acordado e me arrependi antes do último gole. Não quero ficar acordado, quero dormir para sempre. 

Foi a primeira vez que realmente nos falamos, e eu o desconcertei, mas talvez tenha sido a primeira vez que ele notou minha presença e, quem sabe, de um jeito positivo. Bom, eu espero. 

Também espero conseguir dormir, não quero assistir mais. As coisas que antes me enchiam de alegria, hoje não enchem mais. Pelo menos não por esses dias. Não quero assistir, nada me chama atenção, cansei da leitura, não consigo dormir como queria, nem tampouco quero comer. Também não quero me humilhar pelo carinho ou atenção de rapazes dez anos mais novos que eu. Queria dormir para sempre.

Ficar acordado durante um dia inteiro soa como uma punição, um inferno horrendo sendo perseguido por inúmeros demônios. É a hipótese que mais rejeito, acima de todas as outras. E ainda assim parece ser isso o mínimo que o mundo deseja. Mas de mim? Não tenho isso a oferecer... Eu só queria dormir para sempre.

"Ficar bêbado era bom. Decidi que eu queria ficar me embebedando sempre. Isso deixava o mundo menos óbvio, e se você conseguisse ficar por tempo suficiente afastado da obviedade do mundo, talvez você mesmo deixasse de ser tão óbvio." (Charles Bukowski)

segunda-feira, 3 de março de 2025

Cuidado

Mas é claro que haveria decepção, mesmo que as expectativas não fossem altas assim, mesmo que eu não tivesse nenhum plano realmente plausível para fazer a respeito disso. 

Foi apenas uma impressão rápida, um clarão que logo se apagou. Um sorriso fugaz, aparentemente tímido, de olhos fechados, que se desfez como miragem no deserto, como sonho de uma noite de verão ao acordar num sobressalto. Shakespeare já dissera, com muito mais propriedade lírica que eu, que essas alegrias têm fins violentos, falecendo no triunfo. Isto é, quando chegam ao seu auge, é que encontram seu fim, como rei que morre subitamente depois de construir o maior e mais próspero dos reinos, deixa servos felizes, povo bem cuidado, mas parte sozinho, violentamente tirado de todos.

É assim, esses amores, se é que podemos chamar assim, passam como os pássaros, não sabemos de onde vieram e nem para onde vão, em que paragens ou agrestes escarpados vão sobrevoar, em que arvores de doces frutos eles hão de pousar. Sabemos apenas que não mais os veremos, voarão rumo ao horizonte, e ficaremos aqui, terra seca, a sonhar com algum jardim fecundo de cristalinas fontes, que nunca veremos. 

Já começo a escrever sob efeito de remédios, tenho ensaio a noite, mas não quero ver o dia que se antecederá até lá. Estou sozinho e dopado, completamente desinteressado com o mundo ao meu redor, embora o céu demonstrasse sinais de que pudesse chover mais tarde, mas agora o sol já brilha forte. Sou invadido de pensamentos, e acho que não entenderam quando falei a respeito do meu encantamento no dia anterior. Me preocupa não conseguir mais passar dias sem os remédios, eles se tornaram minha fuga permanente da realidade, e como a realidade está sempre aqui, eu sempre quero fugir, fugir, para o mais longe possível, para um lugar tão profundo dentro de mim que ninguém mais poderá ver. 

Primeiramente senti uma guarda baixa com relação a mim, ele que sempre fora tão hostil, sorriu e me cumprimentou, não por educação, pois já estivemos em diversas ocasiões semelhantes e ele apenas me ignorou, embora admita que algo disso vem de minha insegurança e daquela tosca vontade dos espíritos mesquinhos de querer ser aprovado. Sendo ele um primor de beleza, eu sinto que não sou digno de sua amizade. Mas dessa vez foi diferente.

Fiquei profundamente tocado também com a forma como ele agiu em relação aqueles que precisavam de cuidado. Naquele momento eu não vi um rapaz, uma criança praticamente, mas vi a potencialidade de uma vocação: o cuidado. São poucos os que a têm, é verdade, mas essas pessoas, de coração inflamado de caridade, amam ao outro independente de suas mazelas, e se compadecem delas. É algo realmente belo, sinal de santidade, cada vez mais raro e, por isso mesmo, prorrompe em tantas lágrimas. Pela primeira vez eu vi naquele rapaz mais do que sua beleza exterior.

sábado, 1 de março de 2025

Inspiração e Desespero

Esperei pela inspiração para escrever. 

Tomei cerveja, 
enchi a cara de remédios, 
vi episódios de séries que me emocionaram 
e me tiraram lágrimas, 
mas a inspiração que eu queria não vinha. 

Coloquei uma música, 
chorei porque minhas fotos não eram em nada 
como as dos modelos perfeitos da internet. 
Me vejo cada vez mais gordo, 
menos saudável, 
cansado, 
estressado, 
deprimido e, 
quando clico uma foto, 
tudo isso parece ficar estampado ali. 
Eu estou destruído. 

Existem esses príncipes? 
Deuses entre nós
O que fazem? 
Como podemos alcançá-los?
Por que parece que somos apenas poeira diante deles?

Nossa pele não fica lisa como a deles,
nosso cabelo não fica perfeito como o deles
nossos lábios não ficam rosados ou vermelhos como os deles

Há apenas uma brutal realidade, 
de peles maltratadas,
de maquiagens que parecem não funcionar nas pessoas certas
mesmo como as técnicas certas
de olhares que soam toscos senão em rostos perfeitos
Pensei sobre tudo isso.

E mesmo assim, 
a inspiração que eu queria não vinha. 

Não queria recorrer aos remédios
Mas também não queria aguentar a realidade

E lá vamos nós outra vez
e outra, e outra, e outra
e outra

o amor não foi correspondido
o amigo se esqueceu
o sagrado se perdeu
a saúde desfaleceu

a inspiração que eu queria não vinha

Não há uma musa a que possa recorrer
findou-se, esperança e teogonia
caí apenas na entrada daquele grande precipício,
donde se lê:

"Deixai toda esperança, vós que aqui entrais." (Dante Alighieri)