quarta-feira, 19 de março de 2025

Rigor

"Teu mais ligeiro olhar facilmente me descerra
embora eu tenha me fechado como dedos, nalgum lugar
me abres sempre pétala por pétala como a primavera abre
(tocando sutilmente, misteriosamente) a sua primeira rosa
[...] não sei dizer o que há em ti que fecha
e abre; só uma parte de mim compreende que a
voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas"

(E. E. Cummings)

Foi um dia quente, não tanto quanto nas últimas semanas, mas felizmente o vento mais fresco do outono que se aproxima torna as coisas um pouco mais suportáveis. Ao menos no plano da temperatura, claro. 

Passei a maior parte do dia deitado, e as poucas atividades que fiz, como programar as postagens nas redes sociais da paróquia e ouvir músicas para sugerir para a semana santa, fiz com grande esforço e o mais rápido possível, para voltar para a cama, mesmo meu corpo já dando sinais de desconforto. 

Venho tentando exercitar algumas habilidades, especialmente a atenção, para conseguir manter o foco nos extremos da depressão e da mania. Comecei a ver uma série, uma das mais dramáticas e emblemáticas para mim, 180 Degrees Longitude Between Us, mas perdi o interesse antes do fim do segundo episódio, ou parece que o energético não fez efeito, talvez porque tenha tomado demais nos últimos dias. Pensei em ver algo da lista de melancólicas séries japonesas ou das belas coreanas, mas acho que já é tarde demais. 

No momento escuto uma partita desacompanhada do Bach, é linda, e não sei por qual razão não a escuto sempre, especialmente na interpretação do Daniel Lozakovich (usando um terno largo demais para ele).

Em dado momento do dia adormeci um tanto quanto revoltado quanto o protagonista de  180 Degrees Longitude Between Us com relação às pessoas que vivem apenas cedendo, sem nunca irem buscar seus sonhos, sendo ele alguém que vai atrás e enfrenta, se revoltando com o conformismo de uma sociedade acostumada com a desigualdade. Mas, noutro plano, como estamos presos aos nossos ideais e não enxergamos as possibilidades que se abrem diante de nós. Como alguém que sonha com a menina perfeita, mas não enxerga que todas as qualidades que projeta nela, se encontram no amigo para quem ele conta seus devaneios. Isso me revolta mais do que o conformismo ou a hipocrisia.

Talvez a única coisa bela agora, já que tirei a série, sejam os lábios levemente rosados, a pele perfeita e o cabelo bagunçado do violinista sueco. Será que ele é idiota assim?

De todo modo, minha revolta também se encontra envolta em conformismo: num pessimismo latente que jamais cessa senão nos momentos de sonhos, delírios infantis, não raras vezes induzidos pelas drogas. 

De fato, o sol amanheceu brilhando com toda sua força e glória, algo que considero simbólico no dia do grandioso São José. Mas como José o tempo está fresco, traz aquela segurança, aquela simplicidade séria. Apenas uma impressão, não mereço ser um devoto dele. 

Já que falei das drogas antes, acabei misturando os remédios diários com mais alguns para dormir. Não comi nada, nada me apetece. Pensei em esperar começarem a fazer efeito para escrever, talvez ouvindo a Trágica de Mahler, mas acabei impressionado por uma das sinfonias da Shostakovich, nome que tem aparecido bastante nas minhas sugestões já que tenho ouvido o primeiro movimento de sua sétima sinfonia quase todos os dias, prestando atenção especial num percussionista lindíssimo se esforçando na pauta da música que exige bastante potência desse naipe.

Não sei dizer se esse longo excurso é apenas uma pausa dramática ou reflexo do meu constante vazio existencial que busca se preencher com qualquer coisa que lhe apareça, mesmo que nenhuma delas seja realmente importante. 

Tudo que posso, e tenho a dizer, é que uma vez mais estou tomado da mais profunda desilusão, e por isso torno a não querer sair do quarto. A mim basta vez o vento farfalhar as cortinas verdes e ouvir músicas de terras distantes. As pessoas lá fora, os homens especialmente, já não me encantam, me causam preguiça ou horror. Sua beleza apenas me recorda que, ou é algo inalcançável a todos os homens e, portanto, não há porque eu continuar a tentar e por isso olho para alguém de aparência perfeita, como Top Piyawat e o comparo com meu reflexo, a barba grande e desleixada, o cabelo oleoso e a pele macilenta, é hora de parar de tentar, ou isso ou essas visões são uma lembrança da finitude, já que todo rosto, por mais lindo que seja, é facilmente desfigurado num acidente ou até mesmo pela putrefação natural da morte. E por falar nela, talvez o que sinto já um tipo de rigor mortis antecipado, já que mais de uma vez me identifiquei como cadáver adiado.

Carrego a mesma vontade de um cadáver: nenhuma. Convites e sorrisos me são tediosos, quero apenas a docilidade dura e fria da minha cama vazia, já nem sequer desejo um ombro a encostar. Tal coisa é demais para mim. Já não ouso desejar mais nada. Até a cerveja na geladeira eu desisti de tomar. Do que ainda não desisti? O que há ainda nessa vida, nessa maldita existência, para desistir?

Perder amigos, amores que passam, não ter terra, carro ou navio, já me parecem até mesmo sonhos de grandes homens, reis, deuses até. Cavaleiros traídos em batalhas, Messias vendidos por moedas de pratas, reis deixados por suas rainhas e que causam guerras e dor em centenas de guerreiros. Não, não sou cavaleiro, nem rei e muito menos deus. Porque é tudo mentira, é tudo uma ilusão. É tudo fruto do desespero de homens como eu que, ao se verem diante da grande muralha da realidade, se frustraram, se apavoraram com a verdade e então criam esses mundos, esses príncipes, essas histórias só são histórias de amor se você não acredita nelas, do contrário se tornam histórias de horror. 

Minha existência pouco a pouco desvanece, como quem olha um reflexo na água que se torna turva. Logo não é mais do que um amontoado de cores sem sentido. Sentimentos sem sentido. Ser sem sentido.

"Amo os grandes rios, pois são profundos como a alma do homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranquilos e escuros como os sofrimentos dos homens. Amo ainda mais uma coisa de nossos grandes rios: sua eternidade. Sim, rio é uma palavra mágica para conjugar eternidade." (João Guimarães Rosa)

Nenhum comentário:

Postar um comentário