segunda-feira, 3 de março de 2025

Cuidado

Mas é claro que haveria decepção, mesmo que as expectativas não fossem altas assim, mesmo que eu não tivesse nenhum plano realmente plausível para fazer a respeito disso. 

Foi apenas uma impressão rápida, um clarão que logo se apagou. Um sorriso fugaz, aparentemente tímido, de olhos fechados, que se desfez como miragem no deserto, como sonho de uma noite de verão ao acordar num sobressalto. Shakespeare já dissera, com muito mais propriedade lírica que eu, que essas alegrias têm fins violentos, falecendo no triunfo. Isto é, quando chegam ao seu auge, é que encontram seu fim, como rei que morre subitamente depois de construir o maior e mais próspero dos reinos, deixa servos felizes, povo bem cuidado, mas parte sozinho, violentamente tirado de todos.

É assim, esses amores, se é que podemos chamar assim, passam como os pássaros, não sabemos de onde vieram e nem para onde vão, em que paragens ou agrestes escarpados vão sobrevoar, em que arvores de doces frutos eles hão de pousar. Sabemos apenas que não mais os veremos, voarão rumo ao horizonte, e ficaremos aqui, terra seca, a sonhar com algum jardim fecundo de cristalinas fontes, que nunca veremos. 

Já começo a escrever sob efeito de remédios, tenho ensaio a noite, mas não quero ver o dia que se antecederá até lá. Estou sozinho e dopado, completamente desinteressado com o mundo ao meu redor, embora o céu demonstrasse sinais de que pudesse chover mais tarde, mas agora o sol já brilha forte. Sou invadido de pensamentos, e acho que não entenderam quando falei a respeito do meu encantamento no dia anterior. Me preocupa não conseguir mais passar dias sem os remédios, eles se tornaram minha fuga permanente da realidade, e como a realidade está sempre aqui, eu sempre quero fugir, fugir, para o mais longe possível, para um lugar tão profundo dentro de mim que ninguém mais poderá ver. 

Primeiramente senti uma guarda baixa com relação a mim, ele que sempre fora tão hostil, sorriu e me cumprimentou, não por educação, pois já estivemos em diversas ocasiões semelhantes e ele apenas me ignorou, embora admita que algo disso vem de minha insegurança e daquela tosca vontade dos espíritos mesquinhos de querer ser aprovado. Sendo ele um primor de beleza, eu sinto que não sou digno de sua amizade. Mas dessa vez foi diferente.

Fiquei profundamente tocado também com a forma como ele agiu em relação aqueles que precisavam de cuidado. Naquele momento eu não vi um rapaz, uma criança praticamente, mas vi a potencialidade de uma vocação: o cuidado. São poucos os que a têm, é verdade, mas essas pessoas, de coração inflamado de caridade, amam ao outro independente de suas mazelas, e se compadecem delas. É algo realmente belo, sinal de santidade, cada vez mais raro e, por isso mesmo, prorrompe em tantas lágrimas. Pela primeira vez eu vi naquele rapaz mais do que sua beleza exterior.

Nenhum comentário:

Postar um comentário