terça-feira, 26 de novembro de 2019

A Barca


A voz que havia dentro de mim calou-se. Perdi aquela vontade que sempre tinha de cantar. Conseguiram apagar até mesmo esta, que era a última chama a arder dentro de mim. Mataram meu último sonho. 

Esmagaram a minha vontade com suas mentes fechadas, destruíram toda e qualquer sombra do sagrado que havia em tal arte do belo. A beleza que conduz ao que é bom, justo e verdadeiro deu lugar a simplória expressão animalesca dos sentidos imediatos. Não há contemplação, não há virtude, não há dedicação. Há apenas o entoar enfadonho e monótomo de notas agudas e acordes melódicos que pretendem despertar arrepios e lágrimas, numa expressão da mais baixa arte que, ao invés de elevar, apenas hipnotiza e conduz a histeria coletiva.

Já não quero mais cantar, senão que o faço pela obrigação moral que há em meu peito. A responsabilidade não me deixa abandonar o barco que há muito naufragou. A arte deu lugar ao orgulho de cada um. O amor foi substituído pelo rancor. 

A quem culpo? Talvez a mim, que não soube guiar como deveria. Mas também culpo aqueles que transformaram a arte numa promoção pessoal e não numa promoção da virtude, da soberania divina. 

Humanos, sejam humildes perante Deus! Não queiram ser maiores do que a Mãe e Mestra da Verdade, não queiram acreditar que sabem o que é melhor para as almas do que aquela cuja única missão no mundo é salvar as almas. 

A monotonia que criticas é aquela que purifica a monotonia de seus pecados. A lentidão das notas que consideras sem graça é aquela que melhor entra no coração do homem sem despertar ser apetites bestiais, mas elevando sua virtude ao altar de Nosso Senhor. 

Mas a arte se matou, e a voz que havia dentro de mim se calou. Já não quero mais cantar, já não há mais brilho em minha voz, senão que sobraram apenas os sussurros inefáveis de um homem que murmura contra a própria sorte, abandonado pelos seus que o deixaram sozinho na barca de Pedro. Continuo a navegar, mas esta tornou-se uma viagem solitária, isto até perceber que não estou sozinho de verdade, mas faço companhia aquele que na cruz clamou a Deus "Meu Deus, por quê me abandonaste?"

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