sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Sobre os anseios

Passos rápidos, o dia finalmente terminou, a noite de sexta começou! O que farei nas minhas parcas horas de descanso? Uma dose avantajada de benzodiazepínicos e pizza, além de muito refrigerante. Penso ser uma recompensa justa, depois de uma semana de esforços desmedidos para manter uma postura de trabalhador responsável e consciente de meu papel social.

São poucas as horas em que posso me esquecer daquele trabalho penoso, das vozes gastas com alunos desinteressados, de assuntos tediosos. São poucas as horas que posso me dedicar a apreciar com atenção uma boa música, um concerto de Tchaikovsky ou uma sinfonia de Mahler quem sabe. São poucas as horas sem o peso incômodo de viver em sociedade sobre minhas costas. 

Posso fechar os olhos e sentir o cheiro doce da terra molhada pela chuva em algum lugar perto daqui. Um dos meus cheiros favoritos. Posso deixar minha mente viajar com os acordes do piano que me levam para longe daqui. Uma terra fria, uma terra distante de outros tempos, um amor proibido e impossível como todos os outros. Um amor torrencial, daqueles que nos fazem esquecer de tudo quanto existe para se entregar aos braços fortes e suados daquele que repentinamente apareceu e mudou tudo ao seu redor. 

Minha cama ficou a minha espera durante todo o dia. Aguardando-me para me abarcar em uma calorosa noite de sonhos. Eu havia me esquecido o quanto é bom sonhar. O quanto é doce fugir dessa realidade amarga e cinzenta para me aventurar pelos bosques primaveris e pelas belas pradarias dos recessos de minha consciência. Oh, doce sonho que me permite esquecer a ânsia que me sobe a garganta cada vez que me torno consciente de minha existência patética e caótica!

Não quero me importar com as comemorações do povo lá fora que solta fogos pela liberação de bandidos condenados. Não quero me preocupar com essas realidades terrenas e baixas, me interesso pelas verdades eternas, superiores que habitam o sobrecéu. 

De que me adianta, ocupar dessas coisas terrenas e passageiras? O homem está condenado a confusão, a eternos embates. Desde a Torre de Babel fomos condenados a não nos entendermos nunca. Não há razão para lutar contra isso. Deixe que se matem, todos e cada um deles. Eu morrerei sozinho, na companhia apenas da solidão que me acompanha por não ter encontrado pares nesse mundo. 

O hyperuranium me aguarda para desvendar suas formas eternas e imutáveis. Desejo contemplar não mais que a perfeição bela e verdadeira. Mas, enquanto tal dia não chega, me contento com um céu um pouco abaixo daquele que almejo, um céu de sonhos onde ao menos vislumbro as silhuetas daquelas verdades no amor que imagino eu um dia possa vir a existir em minha existência, preenchendo assim o vazio que há bem no âmago de meu ser e que me assusta desde meu primeiro pensamento. 

Acabei na companhia de Chopin que, como uma pluma sobre o piano me faz viajar naquelas belas paisagens da Polônia, com seus grandes campos de canola, onde amores impossíveis tornam-se realidade entre os arpejos graciosos do solista que imprime sua alma em cada nota. Assim também eu coloco em cada palavra de cada frase um pouco do meu eu, desse eu que se expressa numa palavra: anseio! Mesmo nos dias mais deprimentes e cinzas, mesmo quando a desesperança me tomou por completo eu ainda anseio algo, mesmo que seja o fim, mas há em mim um anseio que nunca se extingue, nunca se desvanece, apenas se transmuta, seja num desejo ardente de viver e amar, ou num desejo de ser, conhecer ou até mesmo desaparecer. 

E é isto, o dia finalmente terminou e é chegada a noite de sexta, a noite onde posso me libertar das amarras demoníacas do materialismo puro e barato que faz de mim mais um dentre tantos que se consomem por alguns poucos momentos de prazer. E é exatamente isto que vou fazer, deixar-me levar pelos compassos delicados de uma breve pausa entre um corre corre e outro de meu cotidiano fatídico e fastioso. 

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