domingo, 3 de julho de 2022

Dies Irae

Eu não queria ver esse meu lado, queria que ele continuasse quieto ou que desaparecesse por completo. Mas eu  passei pelo espelho há alguns minutos e a imagem que eu vi não foi o meu reflexo, mas era a imagem de um demônio sedento por sangue. 

Detesto quando algumas situações extremas me fazem reagir de forma inesperada, mas eu tentei ficar quieto e em silêncio, tentei dar as costas mas não foi possível, eu recuei e, ao girar nos calcanhares de volta eu explodi sem me dar conta do que acontecia. 

Minha visão turvou-se, eu via como que através de lentes vermelhas, senti meu sangue ferver e tornar-se veneno mais uma vez, como há muito já não acontecia. E então aquela porção que eu mantive silenciosa por tanto tempo veio à tona. 

Minha garganta explodiu e eu apertei minhas mãos com tanta força que pude sentir a carne cortando mas, naquele momento, mesmo que isso custasse minha dignidade e minha liberdade eu quis usar as mãos, usar de toda a minha força contra aquele demônio que estava a minha frente. Eu queria socar aquela cara imunda até que não restasse nada além de pedaços do crânio e da sua massa encefálica espalhada pelo chão da cozinha e entre meus dedos, o seu sangue quente formando uma poça profana a se espalhar. E assim silenciaria aquela voz maldita, que só sabe trazer o horror, como uma profetisa do próprio satanás. 

Eu não fiz nada além de gritar, mas aquelas palavras, cada sílaba delas, continua um ódio equivalente a um tiro de canhão, que eu desejava que acertasse em cheio aquele corpo e o destroçasse completamente, lançando membros a esmo. Naquele momento eu queria poder destruí-la completamente, transformá-la em poeira da forma mais dolorosa e doentia possível, eu queria que ela perdesse, pouco a pouco, a forma humana que ela ostenta de forma mentirosa, ela não é humana, ela é apenas pura maldade, não há nada de bom numa pessoa tão baixa, numa criatura tão pavorosa que até mesmo o senhor do inferno se recusaria a receber. 

Quando eu acordei, já sem voz e com as mãos trêmulas eu vi que tinha piorado tudo, eu não ajudara em nada e só tinha tornado a situação ainda mais caótica. Eu me revelei, na verdade, um grande idiota, guiado pelas paixões, sucumbindo a fúria que subiu pela minha garganta enquanto eu desejava, com todas as forças destroçar a garganta dela com as minhas próprias garras, para nunca mais ouvir os impropérios sacrílegos daquela serva do diabo. 

E então, consternado pelo meu lapso de fúria, eu me calei, e estou até agora em silêncio, muito embora em meu coração eu ainda deseje coisas terríveis, muito embora eu esteja tomado do espírito de vingança e ainda deseje ver as entranhas dela espalhadas pelo chão. Esse é o destino que ela merecia, destino de só quem traz desarmonia, o mesmo destino dos Asuras que vivem pela violência e guerra constantes no ciclo das seis existências, destroçando uns aos outros por eras intermináveis, criaturas abjetas, horrendas, bestiais, em nada diferentes daquela que hoje despertou o meu ódio.

A brutalidade que há no meu coração é o que eu gostaria que não existisse. Me sinto como uma besta que só deseja se saciar, que só descansa depois de esfolar a sua vítima e de enforcá-la com seus próprios intestinos. E essas são apenas algumas das imagens que aparecem na minha mente. E, mesmo que eu tenha dito que não queria ser assim, esses pensamentos continuam, a raiva continua, e a minha ira continua alimentando o fogo donde eu queria lançá-la para ouvir os seus gritos de desespero, como ela faz com minha mãe. 

De todas as coisas mais estúpidas que eu fiz na vida, sem sombra de dúvidas, a que me causa mais arrependimento é de ter pedido por uma irmã, tendo recebido não uma cruz, mas uma legião inteira de demônios dentro daquele corpo luxurioso para atormentar a família. 

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