terça-feira, 12 de julho de 2022

Resgate

Como sempre ficaram algumas impressões após o último episódio de KinnPorsche e, como elas não cabiam na resenha que escrevi resolvi colocá-las à parte, assim como fiz com algumas reflexões posteriores sobre The Miracle of Teddy Bear, eu gosto quando uma obra deixa uma forte impressão em mim, assim como os ritos de pequenos mistérios essas impressões são o primeiro passo de uma cadeia de compreensão mais profunda. No caso, o entendimento sobre a natureza e as mazelas do espírito humano se mostraram fortes e, por meio dessas cenas, eu me senti um pouco mais capaz de encarar essas realidades. 

A primeira delas é o que já disse sobre Pete e Vegas. O Vegas foi criado como um monstro, o seu pai sempre exigiu dele os resultados perfeitos, o que significava agir com frieza e crueldade em qualquer circunstância para nunca perder para a família principal. Seu pai projetou nele todo o rancor que nutria pelo irmão mais velho e por isso ele cresceu sentindo-se sempre inferior, primeiro pela exigência do pai e, depois, pelas constantes afirmações do mesmo de que ele não era digno, mesmo após tanto esforço, mesmo após ele ter abandonado todo resquício de humanidade ele ainda não era bom o bastante pra ouvir uma palavra de aprovação do pai. Ele só tinha o Macau, e até ele o seu pai dizia não ser bom o bastante.

Por isso ele se tornou o que vimos, impiedoso, sádico, traiçoeiro. Isso explica, embora eu ache que mesmo assim não justifique, porque ele é tão complexo. Muitas pessoas simplesmente fizeram a leitura de que ele é um psicopata, mas se fosse assim ele não teria terminado como terminou. E aí é que entra o Pete.

Mesmo em cativeiro, depois de todas as sessões de tortura, com o corpo todo ferido, ele ainda conseguiu olhar pro Vegas e sentir compaixão. Ele viu o Vegas que se preocupava com o ouriço, o Vegas que era humilhado pelo pai mesmo depois de fazer tudo o que ele havia mandado, e ele viu a dor que aquele homem escondia por trás daquela máscara de monstro. 

Eu não estou dizendo que o Vegas era simplesmente um coitado, e eu continuo achando que a tortura que ele fez o Pete passar de fato foi coisa de monstro. Mas ele foi um homem obrigado a se entregar a esse lado negro, por assim dizer. Isso nada mais do que é uma representação extrema da queda do homem, do homem que busca poder e reconhecimento, em última palavra: orgulho. 

Mas o Pete enxergou além disso e, quando ele conseguiu se libertar e decidiu voltar e sentar ao lado do seu torturador, ele deu o primeiro passo para trazer de novo luz para aquele coração tão transtornado e destruído. De certo modo a destruição que o Vegas impôs ao Pete era um reflexo inconsciente da destruição da sua própria alma, mas ao ver a gentileza do outro em lhe entregar uma flor, em perguntar se ele estava bem depois de uma visita do pai, ele aos poucos foi percebendo que dentro de si reacendia uma chama. Mesmo sem perceber eles já ficavam à vontade um com o outro, porque a presença do Pete ali afugentava os fantasmas que tanto assustavam o outro.

Isso o deixou confuso, e ele explodiu uma vez mais com o Pete, que aproveitou o descontrole pra fugir, assustado em ver as feras se soltando de novo e achando que seus esforços tinham sido em vão. Vegas recai mais uma vez para o lado do pai e resolve aderir ao plano de invadir a casa da família principal mas, ao ver seu pai morto e o plano fracassado, depois de ter sido machucado pelo próprio Pete, ele se desespera e pensa em tirar a própria vida, não vendo mais significado na sua própria existência, percebendo que todo seu esforço fora em vão, agora que ele não tinha mais um pai para tentar agradar e nem outra pessoa para cuidar. Mas sua visão estava errada.

E foi a voz de Pete que o trouxe de volta. Ao implorar que ele parasse de dizer que perdeu tudo se ele, Pete, ainda estava ali depois de tudo o que havia acontecido. Ao dizer que estava com fome Pete na verdade dizia que precisava dele, que precisava de seu cuidado, e da gentileza que ele mesmo não era capaz de enxergar mas que ele sabia que estava ali.

Pulamos então pro desfecho, finalmente. Vegas pergunta mais uma vez do motivo de Pete não ter ido embora e ele responde que seguiu seu coração, apenas isso, ao que o outro responde que ele agora é a pessoa mais importante da vida dele. E ele sabe que agora tem um novo motivo pra viver: cuidar de Pete e Macau. A cena final depois do beijo, do irmão mais novo se juntando a eles num abraço foi uma coisas mais belas que eu já vi, de uma delicadeza ímpar. 

Aquele monstro foi exorcizado, as trevas se dissiparam, e o calor dos corações de Pete e Macau trouxeram a luz de volta para ele. Agora são uma família, agora podem juntos superar todos os traumas, todas as dores, agora podem juntos recuperar aquilo que tinha sido perdido na queda. É muito claro aqui como a virtude, a esperança e o amor, puderam recuperar o que parecia perdido. Mas é assim que as coisas são. O calor do coração pode dobrar o aço mais duro, penetrar no mais fundo dos abismos. É uma mensagem para não desistir daqueles que parecem ter se perdido no caminho. Lá no fundo ainda podem ser resgatados se houver alguém disposto a enxergar neles a luz que eles mesmos já não conseguem ver.

Por fim outra coisa que me marcou foi quando vimos Kim cuidando de Chay, mesmo sem que esse percebesse a presença do outro. Chay ainda se sentia traído, usado, e não queria mais envolver-se com o filho mais novo da máfia, e tinha sido claro quando disse que não queria mais ver o outro. Kim, no entanto, continuou cuidando dele, mesmo no seu silêncio.

Kim é um artista, ele não consegue se expressar claramente, apenas por meio de ações. Ele não foi capaz de responder a declaração de Chay, nem no estúdio e nem na casa. Na primeira ele respondeu com um beijo e na segunda ele desconversou, e o outro entendeu. No perigo ele estava disposto a tudo para salvar o outro, mostrando que os sentimento era sim recíproco. Ele entrou só com um guarda-costas na armadilha que o Vegas tinha preparado e, com sangue no olho, matou sem hesitar pra salvar o pequeno. No bar, ele deu cabo de uma dúzia de homens sozinho, como uma verdadeira máquina, e o que me deixou marcado foi uma imagem dele sentado, na penumbra, só observando o Chay que se distraia com um jogo e nem percebeu que corria risco de morte ali. 

É bonito ver esse amor doação tão forte, que se arrisca sem pensar duas vezes pelo amado, e que o observa em silêncio, por mais que isso machuque, respeitando o espaço e tempo do outro. Ao final, ele se expressa como sabe melhor: com uma música, e dessa vez Chay não apaga como fez com o contato antes, ele chora, e Kim sem chorar, guarda o sentimento mais uma vez no peito, para deixá-lo sair quando o outro resolver perdoá-lo ou, se for necessário, para fortalecer seus punhos em caso de perigo. Quem ama não sabe calcular, e ele não se importa de esperar pelo outro. 

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