segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

À Prova de Fogo

"Erra muito menos quem, com olhar sombrio, considera esse mundo uma espécie de inferno e, portanto, só se preocupa em conseguir um recanto à prova de fogo." (Schopenhaeur) 

Eu não consigo entender o que a letra da música diz, não entendo uma só palavra de alemão, mas é um ciclo de canções bem tristes, esse de Schubert. Um barítono acompanhado por um piano melancólico entoa notas pesadas, como um longo adágio lamentoso, que combina bem com a atmosfera escura do meu quarto, levemente iluminado de verde por conta da pouca luz que passa pelas cortinas. Também combina a chuva que cai lá fora, já há um bom tempo. Gosto muito desse clima, ameno, em contraste com o calor desagradável e seco da maior parte do ano. Ao meu ver poderia ficar assim o tempo todo.

Mas esse tempo chuvoso também é complicado em alguns aspectos: no momento aqui em casa estamos sem carro, o que praticamente inviabiliza o transporte, já que passamos a depender de aplicativos ou de transporte público, o que é uma lastima. Como no momento não estou trabalhando eu ainda posso me permitir sair apenas quando necessário, mas quando conseguir um emprego eu já imagino o sacrifício que será, levantar cedo todos os dias para me espremer num ônibus. 

Há sempre um lado negativo, e esse é um forte aspecto gnóstico que hoje, durante a aula, eu notei na minha personalidade. O pessimismo tantas vezes niilista do meu ser é facilmente identificável, mas eu nunca tinha notado a fortíssima influência gnóstica que isso significa. Ignorava-a, simplesmente. 

Aquela impressão profunda de que apenas o retorno a uma única existência sem divisões das diversas consciências humanas, a constatação de que esse universo é tão hostil que a existência da humanidade é absolutamente inviável, isso é uma marca indelével em mim que, por alguma ignorância quase invencível, eu não percebia ser pura gnose. 

Mas como superar isso? Sei bem que o cristianismo em mim também é forte, e Deus quando viu toda sua criação disse que aquilo era bom, mas eu, no entanto, não consigo ter essa mesma visão, senão que me tornei incapaz de enxergar qualquer coisa boa nesse mundo. Daí minha completa dificuldade em me relacionar com o outro. Sempre desconfiado, sempre me irritando com pormenores, sempre vendo no outro um reflexo da miséria humana que muitas vezes enxergo em mim mesmo. 

Tomo um exemplo de minha vida: Já há uns bons anos eu me dedico a cantar na igreja. Começou quase como uma brincadeira, mas aos poucos eu fui assumindo essa responsabilidade com seriedade. Estudei, me formei e tentei até o último dia melhorar, um pouquinho que fosse. Aprendi centenas de músicas, sem exagero, testei vários arranjos, novas possibilidades, organizei um número incontável de missas. Mas sempre me via sozinho nessa missão, por mais que houvessem várias outras pessoas comigo. 

Sempre encarei a liturgia como um serviço de excelência, não porque tudo deva ser executado perfeitamente, e deve, mas que devemos sempre buscar executar com excelência, afinal a liturgia é sempre orientada a Deus. Por isso a minha atenção para as regras, para aquilo que era ensinado e não simplesmente para aquilo que eu mesmo queria. Mas nunca entenderam isso, e sempre tentaram transformar numa ação pessoal, que refletisse não o que deveria ser, o que já fora previamente estabelecido oficialmente e que é nossa única garantia de retidão, mas sempre um reflexo das preferências de cada um, e apenas isso. O lúdico, o puramente sentimental tomava o lugar do correto. E eu nunca me consegui fazer entender. 

Isso mostra a incapacidade de tantos para com observarem uma verdade objetiva, de a cobrirem com um véu da própria subjetividade, onde o que eu sinto é mais importante do que o que me pedem, independentemente de os outros sentirem ou não, ignorando completamente o fato de que nosso trabalho ali não é fazer os outros sentirem o que sentimos, mas fazer sentirem aquilo que propõe a liturgia, e que frontalmente diferente do que sentimos. 

Viver isso durante tantos anos me trouxe um profundo descontentamento para com esse serviço. Não seria exagero dizer que agora me incomoda sequer pensar nesse assunto. Não porque tentei pouco ou porque criei preguiça, mas porque estou tão convencido da maldade do coração do homem e da sua vontade de fazer sempre o que lhe pareça melhor sem levar em consideração nenhuma outra realidade ou necessidade objetiva que eu não acredito que exista uma forma de mudar, não acredito que as coisas possam melhorar. Se chegamos no ponto de que uma pessoa sugere que se cante uma música da umbanda na missa sem que isso causasse espanto e horror, é porque qualquer senso das proporções dentro das pessoas morreu e já não há nada que se possa fazer. 

E em quantos outros aspectos isso não se aplica? A minha família que não percebe o futuro promissor da minha irmã na vida do crime, que apenas começou quando aceitaram uma criminosa condenada para morar dentro de casa sem nenhuma obrigação a cumprir e sem nenhum questionamento da sua moral. Ou a indolência em mudar de vida, em nome de uma humildade irreal que não nos torna humildes, mas que apenas nos sacrifica em nome de uma paciência vazia e frívola. 

Essas ideias se impregnaram em mim de tal modo que eu já nem sei mais como se combina essa gnose ao cristianismo que há em mim. Essa tensão, essa contradição interna do meu ser, é com essas forças contraditórias que tenho convivido, e talvez seja essa constante batalha, pelo controle do absoluto niilismo ou pela supremacia do mundo que é bom, que eu me vejo exausto. Claro, eu me tornei um resultado da estranha dialética entre ambos. Alguém que não vê mais razão para nada mas que ainda assim continua seguindo em frente, mesmo que sob passos módicos. 

E isso não é nada mais do que um inferno. Ser obrigado a ver essas coisas todos os dias, encarar uma existência que exige posicionamento, que exige conviver com toda a sorte de desgraçados, eu não vejo como isso pode dar certo, e talvez seja tarde demais para perceber que esse gnosticismo já está marcado profundo demais em mim. 

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